terça-feira, 5 de setembro de 2006

Um conto de Franz Kafka


UM FRATRICÍDIO

Franz Kafka

Ficou demonstrado que um assassinato aconteceu do seguinte

modo:

Schmar, o assassino, por volta das nove horas de uma

noite enluarada, posiciona-se na esquina daquela rua pela qual Wese, a

vítima, ao sair de seu escritório, na rua paralela, terá de dobrar, a

caminho de sua casa.

O ar da noite é de um frio cortante. Schmar, entretanto,

usa uma leve roupa azul, além de trazer o casaco desabotoado. Ele não

sente frio nenhum, mantém-se sempre em movimento. A sua arma

para o crime, meio-termo entre baioneta e faca de cozinha, ele a

segura firme pelo cabo, inteiramente a descoberto. Examina-a à luz da

lua, a lâmina da faca cintila, mas isso não é o suficiente para Schmar;

esfrega-a com força na calçada, provocando faíscas; talvez tenha se

arrependido disso e, para reparar o ato, passa-a como um arco de

violino na sola da bota, enquanto inclinado para a frente, com uma

perna levantada, fica simultaneamente a escutar com atenção o som da

faca sobre a bota e algum som premonitório que viesse da rua.

Por que o cidadão Pallas, que olhava tudo de sua janela,

no segundo andar, bem próximo dali, permitiu que tudo acontecesse?

Indague ao mistério da natureza humana! Com a gola levantada, o

roupão bem atado em torno da barriga volumosa, sacudindo a cabeça,

ele olha para baixo.

E cinco casas adiante, no lado oposto da rua, a senhora

Wese, o abrigo de pele de raposa sobre a camisola, espia a vinda do

marido, que hoje, fora de seus hábitos, está demorando a chegar.

Finalmente soa a campainha da porta do escritório de

Wese, som demasiado alto para uma campainha de porta, que percute

sobre a cidade na direção dos céus, e Wese, o diligente trabalhador

noturno, sai dali para sua casa, ainda invisível naquela rua, apenas

anunciado pelo som da campainha; a seguir o calçamento registra os

seus passos calmos.

Pallas espicha-se um pouco mais para fora; não deve

perder nada. A senhora Wese, tranqüilizada pelo som da campainha,

fecha ruidosamente a janela. Schmar, no entanto, ajoelha-se curvado;

como não tem naquele instante outras partes do corpo descobertas,

pressiona só o rosto e as mãos contra a calçada; enquanto tudo mais

está gelado, Schmar arde.

Precisamente no limite de separação das ruas, Wese se

detém, apenas escorando a bengala na calçada da rua seguinte. Um

capricho. O céu noturno o seduziu, o azul escuro e o dourado. Sem

saber de nada, olha para o alto; sem saber de nada, ergue o chapéu e

alisa os cabelos; nada encontra no alto que mostre um sinal do futuro

que o aguarda; tudo permanece no seu absurdo, inescrutável lugar. A

rigor, é bastante lógico que Wese siga adiante; porém ele segue na

direção da faca de Schmar.

"Wese!", grita Schmar, ficando na ponta dos pés, o braço

estendido, a faca afiada para baixo, em posição. "Wese! É em vão que

Júlia espera por ti!" E à direita no pescoço e à esquerda no pescoço e a

terceira vez fundo no ventre desfere Schmar os seus golpes. Ratos da

água, quando feridos, lançam sons semelhantes aos de Wese.

"Está feito", diz Schmar e atira a já supérflua faca suja de

sangue para a frente da casa mais próxima. "Bem-aventurança do

assassinato! Alívio, alado êxtase ante o escorrer do sangue alheio!

Wese, velha sombra noturna, amigo, companheiro de cervejaria, estás

esvaindo-te no escuro chão desta rua. Por que não és simplesmente

uma bexiga cheia de sangue, para que eu possa sentar sobre ti e

desmanchar-te de uma vez por todas? Nem tudo se realiza, nem todos

os sonhos em botão floresceram, teus sólidos restos ainda jazem aqui,

insensíveis a qualquer pontapé. Que tola resposta deve ser dada à

pergunta que agora representas?"

Pallas, sufocando toda a peçonha em seu corpo, surge de

corpo inteiro, abrindo a porta de duas folhas de sua casa. "Schmar!

Schmar! Eu vi tudo, nada deixei escapar." Pallas e Schmar se

defrontam. Pallas dá-se por satisfeito, Schmar não demonstra nada.

A senhora Wese, com uma multidão de cada lado, avança

apressada com o rosto envelhecido pela choque. O abrigo de pele se

abre, ela se joga sobre Wese, aquele corpo vestido de camisola

pertence a ele. O abrigo de pele que se estende sobre o casal, como a

relva num túmulo, pertence à multidão.

Schmar, contendo com esforço sua última náusea,

pressiona a boca sobre o ombro do policial, que o leva rapidamente

dali.

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