quinta-feira, 16 de novembro de 2006

O mundo-cão das crianças "bruxas" de Kinshasa


Dentre as crianças do mundo inteiro, os meninos de ruas do Congo talvez sejam os mais sofridos e ameaçados, frutos da guerra e vítimas das mais diversas perseguições
Ao anoitecer, quando todo habitante de Kinshasa que tem apreço pela sua vida acelera o passo para retornar logo para uma moradia tão distante quanto precária, eles ficam sozinhos pelas ruas detonadas do bairro residencial da Gombe. Alguns deles não têm muito mais do que 10, 12 anos, mas eles têm todo o tempo do mundo. A rua, com a sua penumbra e seus perigos, é o seu domicílio. Durante o dia, eles tentam ganhar alguns trocados encerando sapatos, ou ainda ameaçando os automobilistas nos engarrafamentos. De noite, eles lavam a louça nos restaurantes ou insistem para guardar os carros.

Encafuado na sombra, Alphonse, com cara de criança, porém raiva de adulto, oferece os seus serviços não longe do quartel-general da ONU. Depois da morte da sua mãe, das conseqüências da Aids, a nova mulher do seu pai o botou para fora de casa. Nos últimos dois anos, ele nunca voltou para lá.

Durante os anos 90, uma música do cantor-compositor Papa Wemba batizou esses rebentos do asfalto congoleses. Para todos, eles se tornaram então os "shégués", uma provável adaptação local de "Che Guevara", com tudo o que este símbolo inclui de audácia e violência, só que despido da sua mitologia revolucionária. Ao longo dos últimos dez anos, as guerras que degradaram Kinshasa a flamejante ao nível de uma metrópole dilacerada produziram uma multidão desses moleques.

"Eles são 30.000, ou até mesmo 50.000, espalhados por todo o país. É um verdadeiro exército", resume um dirigente político congolês. "Eles cresceram nas ruas e nada têm a perder".

Todas essas crianças abandonadas que se tornaram delinqüentes da rua, e vêm sendo acusados de bruxaria constituem um concentrado arrasador de todas as chagas da sociedade congolesa, a parte mais visível do imenso reduto de mendigos, criminosos e deficientes físicos e mentais em que Kinshasa se transformou.

Integrantes de um exército de reserva à disposição de todos os manipuladores políticos, dispostos a vender sua capacidade destrutiva a quem oferecer a maior quantia, ao mesmo tempo vítimas e delinqüentes, os shégués surgiram dos seus esconderijos sombrios todas as vezes que a população quis interferir na atual campanha da eleição presidencial, cujos resultados devem ser divulgados nesses dias.

Fuzilada e seqüestro em massa

Por um punhado de francos congoleses, uma camiseta ou até mesmo um discurso no qual são apontados "os estrangeiros" como responsáveis pelas suas desgraças, os shégués podem perturbar uma manifestação, aumentar o tamanho de uma platéia durante um comício, se infiltrar nas fileiras dos adversários do seu "benfeitor", criar um clima de insegurança para então acusar o adversário de tê-lo provocado.

"Olhe só para eles", grita, preocupado, um comerciante à espreita, perto da sua janela que dá de frente para a Rotunda Forescom, um dos pontos sensíveis da cidade. "Quando eu os vejo se reunirem desse jeito, sei que eventos importantes estão por acontecer".

A última vez que isso aconteceu foi no sábado, 11 de novembro, quando assessores e simpatizantes do candidato Jean-Pierre Bemba, que as pesquisas apontam como derrotado frente ao seu adversário neste segundo turno, o presidente em final de mandato Joseph Kabila, acabavam de denunciar os "erros sistemáticos" na contagem dos votos. Alguns pequenos grupos de adolescentes e de jovens queimaram então pneus nos arredores da residência de Jean-Pierre Bemba, o que provocou reações das forças da polícia.

No decorrer de uma fuzilada que durou três horas, três civis e um policial foram mortos. Durante a noite seguinte, 337 jovens, dentre os quais 87 menores foram seqüestrados e enviados para longe de Kinshasa, "para serem iniciados aos trabalhos do campo".

Antes disso, em 19 de setembro, no dia que se seguiu ao incêndio nas dependências de um canal de televisão que pertence a Jean-Pierre Bemba, os moleques de ruas haviam fornecido sua ajuda para as milícias deste último, para protestar contra aquilo que eles apresentavam como um atentado. Pneus haviam sido queimados, armas de fogo haviam sido disparadas para o alto, enquanto os "capacetes azuis" (soldados das forças de manutenção da paz) e os tanques da Missão de Observação das Nações Unidas no Congo (Monuc) foram assediados.

"Eles tomaram posse das ruas, atacavam os táxis, aterrorizavam as pessoas, bloqueando as saídas da rua e impedindo-as de passar", conta uma testemunha. "Aqui, o Estado é quase sempre ausente e todos sabem que podem perder a vida por quase nada, qualquer besteirinha".

Esse confronto foi seguido por um seqüestro em massa que envolveu 800 pessoas, das quais 181 crianças. Essas últimas foram rapidamente libertadas após a intervenção da Unicef (Agência da ONU para a proteção e o amparo das crianças) e de organizações de defesa dos direitos humanos, para a grande irritação da imprensa governamental, que já se prontificava a acusar grupos de shégués manipulados pelos amigos de Jean-Pierre Bemba de serem os principais responsáveis pela insegurança ambiente.

"Nós não os controlamos", se defende Thomas Luhaka, o secretário executivo do Movimento pela Liberação do Congo (MLC), o partido de Jean-Pierre Bemba. "Os shégués consideram que o MLC, que é o partido da oposição, luta contra a autoridade, então eles ficam do nosso lado. Mas nós não os incentivamos. Se nós fizéssemos isso, haveria o risco de eles se voltarem contra nós".

Num país onde, do eleitor de base até o ministro, o apoio político é negociado em dinheiro em todos os escalões, os shégués se tornaram "bodes expiatórios muito convenientes. A classe política como um todo os manipula", constata Josué Remoué, o coordenador da campanha "Criança das ruas" conduzida pela organização internacional Médicos do Mundo, a qual apóia ações de proteção sanitária, de atendimento e de re-inserção em Kinshasa. "O papel que eles exercem nas manifestações é amplamente exagerado, enquanto o seu grau de politização é muito menor do que afirmam. Sem os shégués e os inúmeros pequenos 'bicos' que eles fazem, a cidade não conseguiria funcionar".

A exploração política que é feita desses jovens sem rumo nem domicílio fixo ocultaria assim um imenso escândalo social: a duplicação, no espaço de dez anos, desta população de crianças entregues à própria sorte e perseguidas por aqueles mesmos que deveriam protegê-las, os membros das "forças da ordem".

Não raro, policiais recrutam shégués, meninos e meninas, e deles se servem como isca ou como espreitadores para proteger casas e lojas de assaltos; eles os ameaçam para extorquir-lhes o produto dos seus pequenos furtos, e deles abusam sexualmente. Esta descrição é o produto dos múltiplos testemunhos que foram colhidos pela organização de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch (HRW), num relatório publicado em abril.

Em relação ao diagnóstico, todos os observadores concordam: a miséria e os deslocamentos forçados que ocorreram em conseqüência da guerra acabaram aniquilando as diferentes formas de solidariedade familiar, enquanto o número de órfãos foi multiplicado por dez, em razão da Aids e da queda do índice de esperança de vida para aquém de 50 anos.

Exorcismos

"É quase sempre a mesma história", conta o responsável de uma ONG (organização não-governamental). "O tio ou o padrasto que recolheu a criança faz de tudo para se livrar dela, uma vez que ele não tem como assumir as despesas em que ela implica. Ele procura um argumento para justificar o seu afastamento e encontra um pastor que lhe oferece um prontinho: esta criança é um bruxo".

As crianças, e mais particularmente as que sofrem de distúrbios do comportamento, suplantaram as mulheres idosas entre os alvos das acusações de bruxaria, explica o relatório da HRW. Basta que uma desgraça desabe sobre uma família, e lá vai para o pelourinho a criança turbulenta, que ela seja enurética ou fruto de um primeiro casamento. Se a Aids tiver contaminado um dos seus pais, foi ela que a transmitiu de uma forma ou de outra.

Com isso, a criança não só é órfã, como ela também se torna rejeitada. As acusações de bruxaria que têm como alvo os shégués prosperaram no mesmo ritmo da proliferação das "Igrejas do Despertar", especializadas no exorcismo dos espíritos maléficos. Os seus pastores auto-proclamados exigem uma remuneração não só para apontar quem dos membros de uma família é bruxo, como também, depois, para "libertar" a criança em questão.

"Nós fomos proibidos de comer qualquer coisa durante três dias", explicou Bruno, 12 anos, à HRW. "No quarto dia, o profeta colocou as nossas mãos acima de uma vela para nos forçar a confessar". Não faltam exemplos de tortura física: crianças chicoteadas, obrigadas a caminhar sobre cacos de vidro, ou trancadas por longas horas no escuro: os depoimentos sobre os maus-tratos são unânimes. Assim como aqueles que denunciam a falência das instituições - escola, serviços sociais, justiça - que poderiam ajudar a limitar os estragos.

Contudo, a questão da bomba social que esses batalhões de jovens violentos e desesperados constituem nem sequer chegou a ser abordada durante a campanha eleitoral. Num Congo que está preocupado em sobreviver e onde tudo precisa ser reconstruído, inclusive a dignidade das populações, os shégués não suscitam praticamente nenhuma compaixão. Antes, eles despertam a cólera e a angústia.

(Direto da Folha de São Paulo)

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