quinta-feira, 5 de abril de 2007


1 ( “Você acha que isso importa?” – “Corte a cabeça” – “Use a corda” - “Hahahahahaha” – “Não, eu disse que não” – “Pregos não doem tanto” – “É o peso da madeira que incomoda” – “Não? O que quer dizer com não? Acha que sua opinião importa?”)

Respire fundo. Respire devagar. Assim. Pegue a faca. Feche os olhos. A faca. E... corte.

Eu não me lembro direito. Como poderia? Eu passo dopado a maior parte do tempo. Quando estou lúcido, há apenas dor. Uma sensação de perdição. Nada demais: apenas um vislumbre do inferno.

É sobre o que eu quero falar: vislumbres.

Eu estava deitado sobre veludo e estava tudo escuro e eu podia ouvir o som abafado da terra batendo contra a madeira – eu sei que estava em um buraco e eu podia sentir o odor de terra putrefata.

Isso foi há três dias. Dias quentes, dias abafados, nuvens carregadas e o sol espiando como um olho amarelo e doente entre as frestas. Vislumbres.

Eu abri a gaveta da escrivaninha e peguei uma garrafa de vinho e um copo sujo e o telefone tocando era estridente.

Era Sexta-Feira Santa. Uma data importante para os Cristãos, pelo que eu soube. Em uma cidadezinha de fim de mundo, quase um povoado, havia uma santa. Eles trouxeram-na para o alto da colina e a crucificaram. Uma menina, ainda. Doze anos. Eles a pregaram na cruz e colocaram cálices para aparar o sangue que gotejava das feridas e ela olhava-os feliz e olhava para o céu branco e brilhante e foi como ela morreu.

Eu me lembro do delegado Tobias, um cara legal – eu me lembro dele gritando quando sua cabeça foi arrancada por um golpe de facão. A cabeça girou, girou e quando parou ficou me olhando com olhos esbugalhados. Acho que foi nessa hora que ele me disse Vai ser um lindo dia.

Mas eu não conseguia tirar os olhos do sangue que se espalhara sob seus cabelos e o sorriso que ele manteve até que me acertaram – e depois eu não vi mais nada.

Eu me lembro do delegado Tobias dizendo para a puta Não, eu disse que não. Ela sorriu e mostrou os peitos, depois se virou e saiu rebolando para os quartos. Uma mulher vulgar, não tinha um rosto bonito, mas o corpo era espetacular. Tobias suspirou, tomou outro copo de cerveja e saiu atrás dela.

Eu me lembro do delegado Tobias me ligando e dizendo Cristo, Porra, você não vai acreditar nisso. Ele me contou da crucificação.

O trem era lento e a paisagem seca. Tobias dormiu quase a viajem toda. Quando chegamos na cidade, garoava e o calor da terra subia para cozinhar-nos. O povo da cidade nos olhava de cara feia e olhares esquivos e superiores.

A menina santa continuava na cruz, apodrecendo. Tomando conta dela, um menino de uns nove anos, carregando uma cartucheira. Ele ignorou-nos. O sangue secara na madeira. De repente o menino ergueu-se e atirou em um corvo que se aproximara dos olhos da santa.

Depois disso, eu me lembro apenas de pedaços de conversas, imagens: vislumbres.

“Você acha que isso importa?” – “Corte a cabeça” – “Use a corda” - “Hahahahahaha” – “Não, eu disse que não” – “Pregos não doem tanto” – “É o peso da madeira que incomoda” – “Não? O que quer dizer com não? Acha que sua opinião importa?” – “Enterrem esse maluco!”

É disso que eu me lembro: Enterrem esse maluco.

No hospício, o doutor me olha demoradamente. Ele diz Eu tenho uma faca...

(...)

Ele corta os pulsos; ele corta a garganta; ele enfia a faca entre as pernas e me mostra seu pau e suas bolas; ele sorri – como Tobias... como a menina santa. Ele sorri e morre.

2 (“Eu não quero morrer porque eu não posso morrer você não entende eu tenho sangue e meu sangue é meu” – “Coagulado” – “Nu” – “Pó” – “Foi-se”)

Em algum lugar, alguém estava chorando. Em algum lugar, alguém estava morrendo. Era uma morte lenta. A pele estava sendo delicadamente arrancada de sua carne. Era um trabalho demorado que não podia ser feito por qualquer um.

Eu não era qualquer um: então, demorei a noite toda. Arranquei cada centímetro da pele do homem sobre a maca. Cada pedacinho menor que um olhar. E ele ainda estava vivo ao amanhecer. É claro que ele não gritava mais. Era uma figura onde eu podia ver cada pedaço de carne, cada órgão, era uma figura onde cada músculo e cada veia podia ser vista a olho nu. Ele não gritava mais porque estava em choque.

Quanto tempo ele viveria sem pele? Não sei – não me importa. Eu fui embora e o larguei sozinho lá, na maca sob a árvore cheia de flores que o vento trazia lentamente para o chão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário