segunda-feira, 16 de julho de 2007


Trecho do livro Shalimar, O Equilibrista, de Salman Rushdie

1. India

Aos vinte e quatro anos a filha do embaixador dormia mal nas noites quentes e sem surpresas. Acordava com freqüência e mesmo quando o sono vinha seu corpo raramente estava em repouso, debatendo-se, agitado, como se quisesse libertar-se de horríveis algemas invisíveis. Às vezes, era assustador como gritava numa língua que não falava. Homens haviam lhe dito isso, nervosos. Não eram muitos os homens que tiveram permissão de estar presentes enquanto dormia. As provas eram, portanto, limitadas, não havia consenso; porém, um padrão veio à tona. Segundo um relato, ela soava gutural, glótico-explosiva, como se estivesse falando árabe. Árabe-noturno, pensou, a língua de sonho de Sherazade. Outra versão descrevia suas palavras como de ficção científica, como Klingon, como uma garganta pigarreando em uma galáxia muito, muito distante. Como Sigourney Weaver incorporando um demônio em Os caça-fantasmas. Uma noite, com espírito de pesquisa, a filha do embaixador deixou o gravador ligado ao lado da cama, mas quando ouviu a voz na fita, aquela feiúra mortal, que era, de alguma forma, ao mesmo tempo familiar e alheia, ficou muito assustada e apertou o botão de apagar, que não apagou nada importante. A verdade ainda era a verdade.

Esses períodos de fala no sono eram, felizmente, breves e quando terminavam ela caía por algum tempo, suada e ofegante, em um estado de exaustão sem sonhos. Então, abruptamente, acordava de novo, convencida, em seu estado desorientado, de que havia um estranho no quarto. Não havia estranho nenhum. O estranho era uma ausência, um espaço negativo na escuridão. Ela não tinha mãe. Sua mãe havia morrido no parto: a esposa do embaixador lhe contara isso e o embaixador, seu pai, confirmara. Sua mãe era caxemirense, e para ela estava perdida, como o paraíso, como a Caxemira, em um tempo anterior à memória. (Considerar os termos "Caxemira" e "paraíso" como sinônimos era um de seus axiomas, que todos que a conheciam tinham de aceitar.) Ela tremia diante da ausência da mãe, uma forma vazia de sentinela no escuro, e esperava a segunda calamidade, esperava sem saber que estava esperando. Depois que o pai morreu - pai brilhante, cosmopolita, franco-americano, "como a Liberdade", ele dizia, seu amado, saudoso, caprichoso, promíscuo, muitas vezes ausente, irresistível pai - ela começou a dormir profundamente, como se tivesse sido absolvida. Perdoados os seus pecados, ou, talvez, os dele. O peso do pecado fora passado adiante. Ela não acreditava em pecado.

Então, até a morte do pai, ela não fora uma mulher fácil de se dormir junto, embora fosse uma mulher com quem os homens queriam dormir. A pressão do desejo dos homens lhe era cansativa. A pressão de seus próprios desejos era em grande parte não aliviada. Os poucos amantes que tinha tido eram de várias maneiras insatisfatórios e, assim (como para declarar encerrado o assunto), ela logo limitou-se a um sujeito bem mediano e chegou a considerar seriamente a proposta de casamento dele. Então o embaixador foi massacrado na porta de sua casa como uma galinha halal para o jantar, sangrando até morrer por causa de um profundo ferimento no pescoço, feito com um único golpe da lâmina do assassino. Em plena luz do dia! Como a arma deve ter cintilado ao sol dourado da manhã, que era a bênção cotidiana da cidade, ou sua maldição. A filha do homem assassinado era uma mulher que detestava bom tempo, mas a maior parte do ano a cidade oferecia pouco mais. Conseqüentemente, ela era obrigada a suportar os longos meses monótonos de sol sem sombras e calor seco, de estalar a pele. Nas raras manhãs em que despertava com um céu encoberto e um vestígio de umidade no ar, ela se esticava sonolenta na cama, arqueava as costas e ficava, brevemente, até esperançosamente, contente; mas ao meio-dia as nuvens haviam invariavelmente se queimado e lá estava de novo o azul-creche desonesto do céu que fazia o mundo parecer infantil e puro, a ruidosa órbita grosseira brilhando em cima dela como um homem que ri alto demais num restaurante.

Numa cidade assim, não era possível haver áreas cinzentas, ou assim parecia. As coisas eram o que eram e nada mais, sem ambigüidade, carentes das sutilezas do chuvisco, da sombra e do frio. Sob o escrutínio de um tal sol, não havia lugar para se esconder. As pessoas em toda parte estavam em exposição, os corpos brilhando ao sol, parcamente vestidas, fazendo lembrar anúncios. Nada de mistérios aqui ou profundidades; apenas superfícies e revelações. Porém conhecer a cidade era descobrir que essa claridade banal era uma ilusão. A cidade era toda traição, toda engano, uma metrópole cambiante, movediça, que escondia sua natureza, guardada e secreta apesar de toda a aparente nudez. Em um lugar desses, até as forças de destruição não precisavam mais do abrigo da escuridão. Elas queimavam no brilho da manhã, cegando o olho, e esfaqueavam a pessoa com luz dura e fatal.

Seu nome era India. Ela não gostava desse nome. Ninguém se chamava Austrália, chamava?, ou Uganda, ou Ingushetia, ou Peru. Em meados dos anos 60, seu pai, Max Ophuls (Maximilian Ophuls, criado em Estrasburgo, França, numa era mais antiga do mundo), fora o mais querido, e depois o mais escandaloso, embaixador americano na Índia, mas e daí?, as crianças não eram punidas com nomes como Herzegovina, Turquia ou Burundi só porque seus pais tinham visitado essas terras e possivelmente se comportado mal nelas. Ela havia sido concebida no Oriente - uma filha ilegítima nascida em meio a uma fogosa tempestade de ultraje que destruíra o casamento de seu pai e encerrara sua carreira diplomática -, mas se isso fosse desculpa suficiente, se fosse legal carregar o fardo de ter como nome o local de nascimento, então o mundo estaria cheio de homens e mulheres chamados Eufrates, Pisga, Iztaccíhuatl ou Wulumulu. Na América, droga, essa forma de dar nomes não era desconhecida, o que abalava um pouco seu argumento e a incomodava mais que um pouco. Nevada Smith, Indiana Jones, Tennessee Williams, Tennessee Ernie Ford: ela dirigia seus palavrões mentais e um dedo médio levantado a todos eles.

"India" ainda lhe parecia errado, dava a sensação de exotismo, de colonialismo, sugeria a apropriação de uma realidade que não era a dela e, insistia para si própria, não lhe servia de jeito nenhum, não se sentia como India, mesmo que sua cor fosse rica e intensa, o cabelo preto e lustroso. Não queria ser vasta, nem subcontinental, nem excessiva, nem vulgar, nem explosiva, nem apinhada, nem antiga, nem ruidosa, nem mística, nem de forma alguma Terceiro Mundo. Bem ao contrário. Queria se apresentar como disciplinada, bem-cuidada, nuançada, interiorizada, não religiosa, discreta, calma. Falava com sotaque inglês. Não era de comportamento acalorado, mas serena. Era essa a persona que queria, que havia construído com grande determinação. Era a única versão dela mesma que qualquer pessoa na América, além de seu pai e dos amantes que haviam se afastado por medo de suas propensões noturnas, jamais vira. Quanto a sua vida interior, sua violenta história inglesa, a ficha eliminada de comportamento perturbado, os anos de delinqüência, os acontecimentos ocultos de seu breve mas movimentado passado, essas coisas não eram assunto de discussão, não eram (ou não mais) de interesse público. Hoje em dia, tinha as próprias rédeas firmes na mão. A criança-problema dentro dela estava sublimada nos interesses de seu tempo livre, as sessões de boxe semanais no clube de box Jimmy Fish, em Santa Mônica e Vina, onde sabia-se que Tyson e Laila Ali treinavam, e onde a fúria fria de seus golpes fazia os lutadores homens pararem para olhar, os treinos semanais com um sósia de Burt Kwouk estilo Clouseau que era mestre da arte marcial Wing Chun, a solidão desbotada pelo sol das paredes negras da galeria de tiro Saltzman Alvo Móvel no deserto, na Palms, número 29, e, o melhor de tudo, as sessões de arco-e-flecha no centro de Los Angeles, perto do nascedouro da cidade no Elysian Park, onde seus novos dotes de rígido auto-controle, que havia aprendido a fim de sobreviver, de se defender, podiam ser usados para continuar no ataque. Ao estender o arco dourado, tamanho olímpico, sentindo a pressão da corda contra os lábios, tocando às vezes a extremidade da flecha com a ponta da língua, sentia uma excitação dentro de si, permitia-se sentir o calor crescendo por dentro enquanto os segundos a que tinha direito para o disparo corriam para o zero, e por fim deixava voar, liberando o silencioso veneno das flechas, satisfeita com o distante ruído surdo de sua arma ao atingir o alvo. A flecha era sua arma preferida.

Mantinha também sob controle a estranheza de sua visão, a súbita alteridade de visão que ia e vinha. Quando seus olhos pálidos transformavam as coisas que via, sua mente dura as transformava de volta. Não se dava ao trabalho de se deter nessa turbulência, nunca falava da infância e dizia às pessoas que não se lembrava de sonhos.

Em seu aniversário de vinte e quatro anos, o embaixador veio à sua porta. Ela olhou da sacada do quarto andar quando ele tocou lá embaixo e viu que estava esperando no calor do dia, usando aquele absurdo terno de seda como um "coronel" francês. E ainda com um buquê de flores. "Vão pensar que você é meu amante", India gritou para Max, "o namorado que vai me seqüestrar do berço." Ela adorava quando o embaixador ficava embaraçado, o dolorido franzir da testa, o ombro direito subindo para a orelha, a mão levantada como para aparar um golpe. Ela o viu se decompor em um arco-íris de cores pelo prisma de seu amor. Ela o viu retroceder ao passado, parado ali embaixo na calçada, cada momento sucessivo da vida dele passando diante dos olhos dela e perdendo-se para sempre, sobrevivendo apenas no espaço estelar na forma de raios de luz fugidios. Era isso a perda, a morte: uma fuga para as formas de ondas luminosas, para a inefável velocidade de anos-luz e parsecs, as distâncias eternamente recuantes do cosmos. Na fímbria do universo conhecido, uma criatura inimaginável colocaria um dia o olho num telescópio e veria Max Ophuls se aproximando, usando um terno de seda e levando rosas de aniversário, para sempre avançando nas marés das ondas de luz. Momento a momento ele a estava abandonando, transformando-se num embaixador de impensáveis alhures distantes. Fechou os olhos e abriu de novo. Não, ele não estava a bilhões de quilômetros entre as galáxias que giravam. Ele estava ali, correto e presente, na rua onde ela morava.

Ele recuperara a pose. Uma mulher de agasalho de corrida virou a esquina na Oakwood e veio trotando na direção dele, avaliando, fazendo os julgamentos fáceis da época, julgamentos sobre sexo e dinheiro. Ele era um dos arquitetos do mundo do pós-guerra, de suas estruturas internacionais, de suas convenções econômicas e diplomáticas concordes. Seu jogo de tênis era forte ainda hoje, nessa idade avançada. O forehand de dentro para fora, sua arma secreta. Aquela silhueta magra de calça branca, com não muito mais que cinco por cento de gordura corporal, podia ainda cobrir a quadra. Fazia as pessoas se lembrarem do velho campeão Jean Borotra: os poucos veteranos que lembravam de Borotra. Olhou com indisfarçável prazer europeu para os seios da corredora americana em seu sutiã esportivo. Quando ela passou, ele ofereceu uma única rosa do enorme buquê de aniversário. Ela pegou a flor e, então, apavorada por seu charme, pela proximidade erótica de seu pronto sorriso de poder, e por si mesma, ansiosamente acelerou o passo e se foi. Amor adolescente.

Das sacadas do prédio de apartamentos, as velhas senhoras da Europa central e oriental também estavam olhando para Max, admiradas, com a lascívia franca da idade desdentada. A chegada dele era o ponto alto do mês. Elas hoje tinham saído em massa. Geralmente se juntavam em pequenos grupos na esquina ou sentavam-se em pares e trios em volta da pequena piscina do pátio, batendo papo, exibindo sem pudor desaconselháveis roupas de banho. Geralmente dormiam muito, e quando não estavam dormindo reclamavam. Haviam enterrado os maridos com quem passaram quarenta ou mesmo cinqüenta anos de vida desconsiderada. Curvadas, fracas, sem expressão, as velhas lamentavam os destinos misteriosos que as haviam feito dar ali, afastadas, do outro lado do mundo, de seus pontos de origem. Falavam línguas estranhas que podiam ser georgiano, croata, uzbeque. Os maridos lhes falharam ao morrer. Eram pilares que desmoronaram, haviam pedido que confiassem neles e trazido as esposas para longe de tudo que lhes era conhecido, para essa terra-lótus sem sombra, cheia de gente obscenamente jovem, essa Califórnia cujo corpo era o templo e cuja ignorância era a felicidade, e depois tinham se mostrado indignos de confiança soçobrando num campo de golfe ou caindo de cara numa tigela de sopa de macarrão, revelando assim a suas viúvas, nesse último estágio de suas vidas, o quanto eram pouco confiáveis a vida no geral e os maridos em particular. À noite, as viúvas cantavam canções da infância no Báltico, nos Bálcãs, nas vastas planícies mongólicas.

Fonte: Vejaonline.

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