domingo, 12 de agosto de 2007

O FIM DO ASILO por Isaak Babel



Em Odessa, na época da fome, ninguém vivia melhor do que os asilados do segundo cemitério judeu. Anos atrás, o comerciante de tecidos Kofman ergueu, em memória da sua esposa Isabel, um asilo junto da cerca do cemitério. No café de Falconi, essa vizinhança foi muito festejada. Mas Kofman acertou. Depois da Revolução os velhos e velhas asilados no cemitério monopolizaram os lugares de coveiros, oficiantes e amortalhadores. Arranjaram um caixão de carvalho com um manto e com borlas de prata que alugavam às pessoas pobres.
Nessa época, em Odessa, tinham desaparecido as tábuas. O caixão de aluguer não permanecia inactivo. O falecido jazia na caixa de carvalho, em sua casa e na missa; à campa, descia envolto num lençol. Era uma esquecida lei judia.
Os eruditos assinalavam que não se devia impedir os vermes de tomarem contacto com o cadáver, coisa imunda. «Terra és e em terra te converterás.»
Graças a essa ressurreição da antiga lei, os velhos asilados conseguiram um adicional ao seu racionamento que naqueles anos não se podia sonhar. À noite embebedavam-se na taverna de Zalman Krivoruchka e repartiam as sobras com os vizinhos.
A prosperidade deles não se desfez até ao dia da insurreição das colónias alemãs. Num combate, os alemães mataram Guersh Lugovoi, comandante da guarnição.
Foi enterrado com todas as honras. As tropas vieram ao cemitério com orquestras, cozinhas de campanha e metralhadoras em cima de carros. Perante a campa aberta, pronunciaram-se discursos e fizeram-se promessas.
- O camarada Guersh - esganiçava-se Lionka Broitman, comandante de divisão -, ingressou no partido bolchevique em 1911 e nele realizou missões de propaganda e de ligação. O camarada Guersh começou a submeter-se a represálias, junto com Sónia Yanovskaya, lvan Sokolov e Monoszon em 1913 na cidade de Nikolayev...
Arie-Leib, porteiro do asilo, estava com os seus companheiros na expectativa. Lionka ainda não tinha terminado as suas palavras de despedida quando os velhos começaram a ladear o caixão para voltar o morto tapado com uma bandeira. Lionka tocou furtivamente Arie-Leib com uma espora.
- Fora daqui - disse ele -, fora daqui... Guersh mereceu que a república...
Perante os olhos atónitos dos velhos, Lugovoi foi enterrado com a caixa de carvalho, as borlas e o manto negro que tinha bordados a estrela de David e o verso de um antigo requiem judeu.
- Estamos arruinados como mortos - disse Arie-Leib aos colegas, depois do enterro - estamos nas mãos do faraó...
Foi ter com o gerente do cemitério, Broidin, e pediu-lhe tábuas para um caixão novo e tecido para um manto. Broidin prometeu mas não fez nada. Não estava nos planos de Broidin enriquecer os velhos. No escritório comentou:
- Preocupa-me mais a paragem nos transportes urbanos do que estes especuladores.
Broidin prometeu mas não fez nada. Na taverna de Zalman Krivoruchka choveram sobre a cabeça dele e sobre as cabeças dos sindicalistas dos transportes urbanos as pragas talmúdicas. Os velhos amaldiçoaram o tutano dos ossos de Broidin e dos membros do sindicato, o sémen fresco nas entranhas das suas esposas e desejaram a cada um deles uma forma especial de paralisia e de úlcera.
Os ganhos desceram. Agora o rancho consistia num guisado azul com espinhas de peixe. Como segundo prato cevada sem gordura.
Um velho de Odessa come qualquer guisado, não importa com que esteja feito, mas com a condição de ter loureiro, alho e pimenta. Ali não havia nada disso.
O asilo «Isabel Kofman» teve a sorte dos outros. A cólera dos velhos esfomeados crescia. Descarregaram-na sobre quem de todo em todo não a esperava: a doutora Yudif Shmaiser que veio ao asilo vacinar contra a varíola.
O comité executivo da província tinha decidido a vacina obrigatória. Yudif Shmaiser colocou os seus instrumentos em cima da mesa e acendeu a lamparina do álcool. Diante das janelas erguiam-se os muros cor de esmeralda dos matagais do cemitério. A língua azul de fogo misturou-se com os raios de Junho.
O que estava mais perto de Yudif era Meyer Beskonechni, um velho magro. Meyer observava os preparativos com ar sombrio.
- Deixe-me vaciná-lo disse Yudif levantando a lanceta e começando a libertar dos andrajos o sarmento azul do braço de Meyer.
O velho retirou a mão.
- Não tenho sítio para me vacinar.
- Não o magoarei - gritou Yudif -, neste ponto não dói nada...
- Não tenho sítio - repetiu Meyer Beskonechni.
De um canto do aposento respondeu-lhe um soluço abafado. Soluçava Doba-Leya, antes especialista em circuncisões. Meyer contraiu as faces consumidas.
- A vida é uma porcaria - murmurou -, o mundo é um lupanar e os homens são uns patifes...
As lunetas apertadas no narizinho de Yudif estremeceram, o peito saltou-lhe na bata engomada. Abriu a boca para explicar a importância da vacina, mas Arie-Leib, porteiro do asilo, travou-a.
- Menina - disse ele -, também nós, tal como a menina, fomos paridos por uma mamã. Essa mulher, a nossa mãe, pariu-nos para que vivêssemos e não para que sofrêssemos. Queria que vivêssemos bem e estava dentro da razão, como só uma mãe pode estar. O homem que se contenta com o que lhe é dado por Broidin vale menos do que o material empregado em o fazer. O objectivo da menina é vacinar contra a varíola e portanto vacina com a graça de Deus. O nosso objectivo é viver, não arrastar a vida até ao fim, e cumprimos esse objectivo.
Doba-Leya, mulher de bigodes com cara leonina, chorou ainda mais ao ouvir aquelas palavras. Chorou com voz de baixo.
- A vida é uma porcaria - repetiu Meyer Beskonechni -, e os homens são uns patifes...
O paralítico Simão-VoIf agarrou os manípulos da sua cadeira e, torcendo as mãos, rodou para a porta. O boné voltou-se na sua inchada cabeça avermelhada.
Atrás de Simão-VoIf precipitaram-se para o passeio principal, com rugidos e grandes gestos, os trinta velhos e velhas. Agitavam muletas e bramiam como burros esfomeados.
Ao vê-los, o guarda fechou o portão do cemitério. Os coveiros levantaram as pás com terra e raízes aderentes e detiveram-se, assombrados.
O alarido fez aparecer o barbudo Broidin com polainas, viseira de ciclista e casaco raquítico.
- Malandro! - gritou-lhe Simão-VoIf -, não temos onde nos vacinem... Não temos carne nas mãos...
Doba-Leya mostrou os dentes e rugiu. Avançou para Broidin na sua cadeira de paralítica. Arie-Leib, como sempre, começou com alegorias e parábolas que vinham de longe e seguiam para um objectivo que nem todos alcançavam.
Começou com a parábola do rabino Osia que entregou os seus bens aos filhos, o coração à esposa, o medo a Deus e o tributo a César, só tendo retido para si um lugar debaixo de uma oliveira onde o sol do poente aquecia mais. Do rabino Osia, Arie-Leib passou às tábuas para um caixão novo e para o racionamento.
Broidin alargou as pernas com polainas e ouviu sem levantar os olhos. O valado da sua barba descansava imóvel no peito do dólman: parecia mergulhado em pensamentos tristes e pacíficos.
- Deves perdoar-me, Arie-Leib - Broidin suspirou ao dirigir-se ao sábio do cemitério -, deves perdoar-me se afirmo que não posso deixar de ver em ti um duplo sentido e um elemento político... Não posso, pelo menos, deixar de ver nas tuas costas, Arie-Leib, os que sabem o que fazem, assim como tu sabes o que estás a fazer...
Neste ponto Broidin levantou os olhos que imediatamente se embaciaram com a água branca da ira. Os montículos trémulos das suas pupilas cravaram-se nos velhos.
- Arie-Leib, - disse Broidin com a sua possante voz - lê o telegrama da Tartária, onde avultadas quantidades de tártaros passam fome como loucos... Lê o apelo dos operários de Petrogrado que trabalham e esperam cheios de fome diante dos tornos...
- Eu não posso esperar - interrompeu Arie-Leib -, já não tenho tempo.
- Há pessoas - vociferava Broidin, sem ouvir nada - que vivem pior do que tu e há milhares de pessoas que vivem pior do que os que vivem pior do que tu... Estás a semear desgostos, Arie-Leib, e a surpresa vai-te sufocar. Se vos volto as costas sereis homens mortos. Se sigo o meu caminho e vocês o vosso, morrereis. Morrerás, Arie-Leib. Morrerás, Simão-VoIf. Morrerás, Meyer Beskonechni. Mas antes de morrer, digam-me, pois tenho interesse em sabê-lo: temos aqui o poder soviético ou não temos? Se não temos e me enganei, levem-me ao Senhor Berzon, na Deribásovskaya, esquina da Ekateríninskaya, onde trabalhei de alfaiate todos os anos da minha vida... Diz que me enganei, Arie-Leib...
O administrador do cemitério aproximou-se dos inválidos, disparou contra eles as pupilas iradas que caíram sobre aquele rebanho aturdido e lamuriento como os raios de um projector, como línguas de fogo. As polainas de Broidin rangiam, o suor perlava-lhe o rosto bexigoso; continuava a avançar contra Arie-Leib e pedia a resposta: ter-se-ia enganado ao pensar que tinha chegado o poder soviético?
Arie-Leib calava-se. Esse silêncio podia ter sido a sua perda, mas no final da álea apareceu Fiedka Stepun descalço, com uma camisa de marinheiro. Fiedka tinha sofrido uma contusão perto de Rostov e estava a convalescer numa choça ao lado do cemitério. Tinha um apito ligado a um cordão de polícia cor de laranja e um revólver sem estojo.
Fiedka estava bêbado. Os pétreos caracóis estavam colados à testa e sob os caracóis torcia-se em convulsões a sua cara de pómulos salientes. Aproximou-se da campa coberta com ramos murchos.
- Onde estavas tu, Lugovoi, - disse Fiedka ao defunto - quando eu estava a tomar Rostov?
O marinheiro rangeu os dentes, apitou no seu apito de polícia e tirou o revólver do cinto. A boca enfeitada do revólver iluminou-se.
- Acabámos com os czares - gritou Fiedka -, já não há czares... Portanto, toda a gente vai para a terra sem caixão...
O marinheiro empunhava o revólver. Tinha o peito nu e nele, tatuada, a palavra RIVA e um dragão com a cabeça voltada para o mamilo.
Os coveiros, com as pás erguidas apinharam-se em torno de Fiedka. As mulheres que amortalhavam os mortos saíram das barracas e dispuseram-se a colaborar no alarido com Doba-Leya. Ondas rugidoras batiam contra o portão fechado do cemitério. Os familiares, que tinham transportado os seus mortos em carreta, reclamavam a entrada. Os mendigos batiam com as muletas na grade.
- Acabámos com os czares! - gritou o marinheiro disparando para o ar.
As pessoas lançaram-se através da álea, dando saltos enormes. Broidin empalideceu pouco a pouco. Levantou a mão, aceitou todos os pedidos do asilo, deu meia volta militar e entrou no escritório. O portão abriu-se imediatamente. Os familiares dos mortos empurravam as carretas com destreza através dos caminhos. Cantores fingidos entoaram com falsete estridente o molei rahim nas campas abertas. À noite festejaram a vitória na taverna de Krivoruchka. Deram a Fiedka três quartilhos de vinho bessarabo.
- Vaidade das vaidades! - disse Arie-Leib chocando o copo contra o do marinheiro -, és de coração suave, contigo pode-se viver... E tudo é vaidade...
A dona da casa, a esposa de Krivoruchka, lavava os copos no compartimento contíguo.
- Quando um russo sai com bom carácter é uma verdadeira pechincha.
Saíram com Fiedka já passava da uma da madrugada.
- Vaidade das vaidades - repetia o marinheiro as incompreensíveis palavras em hebraico, enquanto ziguezagueava pela rua Stepovaya -, e tudo é vaidade.
No dia seguinte repartiram entre os velhos do asilo quatro pedaços de açúcar e carne para a sopa. À noite levaram-nos ao teatro da cidade, a um espectáculo dado pelo seguro social. Era a ópera «Cármen». Pela primeira vez na vida os inválidos e os espantalhos sociais viram os palcos dourados do teatro de Odessa, o veludo dos seus balcões, o brilho azeitado dos seus candeeiros. Nos intervalos deram a cada um uma sande de miúdos.
Os velhos regressaram ao cemitério num camião militar. Com estampidos e estrépitos, o camião abriu caminho pelas ruas geladas. Os velhos dormiram com as barrigas cheias. Arrotavam em sonhos, tremiam de saciedade como cães fatigados.
Na manhã seguinte Arie-Leib foi o primeiro a levantar-se. Voltou-se para o oriente, para rezar, e viu na porta um aviso. Naquele papel, Broidin informava que o asilo ia fechar para obras e que todos os asilados se deviam apresentar naquele mesmo dia na secção provincial de assistência social para serem registados em categorias de trabalho.
O sol apareceu por cima das copas do verde souto cemiterial. Arie-Leib levou os dedos aos olhos. Das órbitas apagadas escorreu uma lágrima.
A resplandecente vereda de castanheiros conduzia ao depósito de cadáveres. Os castanheiros estavam floridos, as árvores sustentavam as flores brancas nas suas garras abertas. Uma mulher desconhecida, com um xale muito amarrado ao peito, andava pelo depósito. Tudo ali tinha sido refeito: as paredes tinham sido enfeitadas com ramos de pinheiro, as mesas raspadas. A mulher lavava o corpo de um rapaz, voltava-o com grande agilidade, a água formava um jorro brilhante nas costas de jaspe.
Broidin, com polainas, estava sentado nas escadas do depósito. Tinha aspecto de veraneante. Tirou o boné e limpou a testa com um lenço amarelo.
- Isso mesmo disse eu no Sindicato ao camarada Andréichik - a desconhecida tinha uma voz melodiosa -, não fazemos cara feia ao trabalho... Que tirem informações nossas em Catarinoslav... Catarinoslav conhece o nosso trabalho...
- Não se preocupe, camarada Bliuma, não se preocupe - disse pacificamente Broidin, metendo o lenço amarelo no bolso -, comigo é fácil lidar... Comigo é fácil lidar - repetiu, pousando os olhos brilhantes em Arie-Leib que tinha chegado ao pé da escada - com a condição de não me cuspirem no prato, hã!
Broidin não acabou o discurso: uma caleche puxada por um alto cavalo mouro deteve-se junto do portão. Da caleche apeou-se o chefe dos serviços urbanos com camisa de colarinho revirado. Broidin apoderou-se dele e levou-o para o cemitério.
O velho aprendiz de alfaiate mostrou ao seu chefe a história centenária de Odessa que repousava sob as coberturas de granito. Mostrou-lhe os monumentos e criptas dos exportadores de trigo, dos comissionistas e fornecedores de navios que ergueram a Marselha russa onde se achava o povo de Jadzhibei. De frente para o portão jaziam os Ashkenazi, os Hessen, os Efrussi, sovinas refinados e borguistas filosóficos, os que deram origem às fortunas e às histórias brejeiras de Odessa. Jaziam sob monumentos de mármore rosado, separados por cadeias de castanheiros e de acácias da plebe, amontoada ao pé do muro.
- Não deixavam viver em vida - Broidin bateu num monumento com a bota -, nem deixavam correr depois da morte...
Ganhou ânimo e contou ao chefe dos serviços urbanos o seu programa de reorganização dos cemitérios e o plano de campanha contra a confraria fúnebre.
- E retirem esses daí - disse o chefe, assinalando os mendigos alinhados diante do portão.
- Já se está a proceder - respondeu Broidin -, pouco a pouco está-se a proceder a tudo...
- Ala - disse Mayórov o chefe -, tens as coisas em ordem... Ala...
Endireitou o estribo da caleche e lembrou-se de Fiedka.
- Que barulho foi esse?
- É um rapaz lesionado - disse Broidin, baixando os olhos - e por vezes não se domina... Mas agora já lhe explicaram as coisas e pediu desculpa...
- Tem garra - disse Mayórov ao seu acompanhante ao partir -, briga como é devido...
O cavalo alto levava à cidade a ele e ao chefe de urbanização. Pelo caminho encontraram os velhos e as velhas expulsos do asilo. Iam coxeando, curvados ao peso das suas troixas e caminhavam em silêncio. Soldados desenvoltos mantinham-nos em fileiras. Os carros dos paralíticos chiavam. Um silvo de asfixia, um crepitar submisso escapava-se do peito dos cantores reformados, dos palhaços de bodas, de cozinheiras de circuncisões e dos empregados retirados.
O Sol ia alto. O calor apertava aquele montão de farrapos que se arrastava pela terra. Caminhavam por uma lúgubre estrada de pedra, ao longo de cabanas de adobe, por campos pedregosos, perto de casas abertas de par em par, destruídas pelos projécteis, ladeando a colina da peste. Na Odessa desse tempo a cidade estava ligada ao cemitério por um caminho de uma tristeza indizível.

FIM

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