segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

"ABRIU A BLUSA..."

17385084 "Eu não quis saber, mas soube que uma das meninas, quando já não era menina e não fazia muito voltara de sua viagem de lua-de-mel, entrou no banheiro, pôs-se diante do espelho, abriu a blusa, tirou o sutiã e procurou o coração com a ponta da pistola do próprio pai, que estava na sala de almoço com parte da família e três convidados. Quando se ouviu a detonação, uns cinco minutos depois da menina ter abandonado a mesa, o pai não se levantou de imediato, mas ficou alguns segundos paralisado com a boca cheia, sem se atrever a mastigar nem a engolir nem, menos ainda, a devolver o bocado ao prato; quando por fim se levantou e correu para o banheiro, os que o seguiram viram como, enquanto descobria o corpo ensangüentado da filha e levava as mãos à cabeça, ia passando o bocado de carne de um lado ao outro da boca, sem saber ainda o que fazer com ele. Levava o guardanapo na mão e não o soltou até que ao cabo de um instante reparou no sutiã atirado no bidê e aí cobriu-o com o pano que tinha à mão ou tinha na mão e que seus lábios haviam manchado, como se lhe envergonhasse mais a visão da peça íntima do que a do corpo caído e seminu com o qual a peça estivera em contato até há muito pouco tempo: o corpo sentado à mesa ou se afastando pelo corredor ou em pé. Antes, com gesto automático, o pai havia fechado a torneira da pia, a da água fria, que estava aberta e com muita pressão. A filha estivera chorando enquanto se punha diante do espelho, abria a blusa, tirava o sutiã e procurava o coração, porque, estendida no chão frio do banheiro enorme, tinha os olhos cheios de lágrimas, que não tinham sido vistas durante o almoço nem podiam ter brotado depois de cair sem vida. Contra seu costume e o costume geral, não tinha passado o ferrolho, o que levou o pai a pensar (mas brevemente e quase sem pensar, enquanto engoliu) que talvez sua filha, enquanto chorava, estivesse esperando ou desejando que alguém abrisse a porta e a impedisse de fazer o que tinha feito, não pela força, mas com sua simples presença, pela contemplação de sua nudez em vida ou com uma mão no ombro. Ninguém no entanto (exceto ela agora, e porque já não era uma menina) ia ao banheiro durante o almoço. O seio que não tinha sofrido o impacto estava bem visível, maternal e branco e ainda firme, e foi para ele que se dirigiram instintivamente os primeiros olhares, mais do que nada para evitar dirigir-se ao outro, que já não existia ou era só sangue. Fazia muitos anos que o pai não via aquele seio, deixou de vê-lo quando se transformou ou começou a ser maternal, e por isso não se sentiu apenas espantado, mas também perturbado. A outra menina, a irmã, que ela sim o havia visto mudado em sua adolescência e talvez depois, foi a primeira a tocá-la, e com uma toalha (sua própria toalha azul-pálida, que era a que tendia a pegar) pôs-se a secar-lhe as lágrimas do rosto misturadas com suor e com água, já que, antes de fecharem a torneira, o jorro ricocheteava contra a louça e haviam caído umas gotas sobre as faces, o peito branco e a saia amarrotada de sua irmã no chão. Também quis, apressadamente, secar-lhe o sangue, como se isso pudesse curá-la, mas a toalha se empapou num instante e ficou imprestável para a tarefa, também se tingiu. Em vez de deixá-la empapar-se e cobrir o tórax com ela, retirou-a imediatamente ao vê-la tão vermelha (era sua própria toalha) e deixou-a pendurada no rebordo da banheira, de onde gotejou. [...]"

Javier Marías, "Coração Tão Branco"

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