sexta-feira, 8 de maio de 2009

as palavras de Lord Byron

O Enterro

gothic-chatty-cathy No ano de 17.., depois de haver meditado por algum tempo sobre a possibilidade de viajar por países que até agora os viajantes não freqüentam muito, parti em companhia de um amigo, ao qual me referirei como August Darvell.

Era uns anos mais velho que eu, um homem de fortuna considerável e família de próspera. Vantagens que ele nem desprezava nem superestimava, graças a sua grande capacidade. Algumas circunstâncias singulares em sua historia pessoal o haviam convertido para em objeto de atenção, interesse e até de estima, que não diminuíam nem seus modos reservados nem as ocasionais mostras de angústia que às vezes o acometiam e o levavam a uma alienação mental.

Eu era todavia um jovem e havia começado a viver cedo; porém mi intimidade com ele era recente: assistimos a as mesmas escolas e universidade; mas seu passo por elas me havia precedido, e ele já se havia iniciado a fundo no que se tem chamado o mundo, enquanto eu estava no noviciado. Durante esse tempo, escutei detalhes em abundância tanto de sua vida passada como da presente e, ainda que nestas narrações havia muitas e irreconciliáveis contradições, podia eu inferir que ele não era um ser comum, senão alguém que, ainda que se esforçasse por não ser conspícuo, seguia sendo notável.

Havia travado conhecimento com ele e tentei conquistar posteriormente sua amizade, porém parecia que esta era inalcançável; os afetos que pudesse haver sentido aparentavam ter-se extinguido. Tive suficientes oportunidades para observar que seus sentimentos eram intensos; pois mesmo quando os podia controlar, lhe era impossível encobri-los por completo; sem embargo, tinha a faculdade de dar a uma paixão a aparência de outra, de modo que resultava difícil definir a natureza do que sucedia em seu interior; e as expressões de seu rosto podiam variar com tal rapidez, ainda que ligeiramente, o que resultava inútil tratar de esquadrinhar sua origem.

Era manifesto como o dominava uma angústia incurável; porém nunca pude descobrir se era causa a ambição, o amor, o remorso ou a pena, um só ou todos juntos, ou apenas por um temperamento mórbido, semelhante a uma enfermidade. Existiam circunstâncias supostas que poderiam justificar sua atribuição a qualquer destas causas; porém como antes disse, estas eram tão contrárias e contraditórias que nenhuma podia considerar-se definitiva.

Se supõe geralmente que onde há mistério existe também a perversidade: não sei como pode ser isto, porém é um fato que não existia o primeiro ainda que não poderia atestar os alcances da segunda —e estava pouco disposto, no que a ele se referia, a crer em sua existência. Recebia minha proximidade com bastante reserva; mas eu era jovem e difícil para o desalento; e, com o tempo, tive êxito ao entabular, até certo ponto, esse vinculo comum e essa confiança moderada dos interesses mútuos e cotidianos que criam e cimentam a comunhão de empenhos, e a frequência de encontros que se chama intimidade ou amizade segundo as idéias de quem utilizam essas palavras para sua expressão.

Darvell havia viajado muito; dirigi-me a ele para que me aconselhasse a respeito da viagem que pretendia realizar. Era meu desejo secreto que se deixasse persuadir a me acompanhar; ademais, era uma perspectiva improvável; baseada na vaga inquietude que havia observado nele e à qual davam renovada força ao entusiasmo que parecia sentir para tais temas e sua aparente indiferença por tudo o que o rodeava muito de perto.

A principio insinuei meu desejo e depois o expressei abertamente: sua resposta, ainda que eu a esperasse em alguma medida, me deu todo o prazer de uma surpresa: aceitou e, ao término dos preparativos necessários, começamos nossa travessia.

Depois de viajar por vários países do sul de Europa, voltamos a atenção para o Leste, de acordo com nosso destino original; e foi em nosso percurso através de estas regiões que ocurreu o incidente que dá ocasião a meu relato.

A complexão de Darvell, que, dada sua aparência, devia haver sido em sua juventude mais robusta que o normal, estava decaindo gradualmente desde algum tempo, sem que nenhuma enfermidade se manifestasse: não tinha tosse nem tísica; contudo, cada dia se debilitava mais; sues hábitos eram moderados, não admitia nem se queixava de fatiga; não obstante, era evidente que se estava consumindo: se volta cada vez mais e mais silencioso e insone e, por fim, se alterou de tão notável maneira que minha preocupação aumentou de maneira proporcional ao perigo que eu considerei lhe ameaçava.

A nossa chegada a Esmirna, nos havíamos proposto ir a uma excursão às ruínas de Éfeso e Sardis, da qual tentei dissuadi-lo devido à sua indisposição —porém em vão: parecia existir uma opressão em sua mente, e uma solenidade em seus modos que não correspondiam com sua ansiedade para seguir com o que eu considerava uma simples viagem de prazer, totalmente inadequado para uma pessoa delicada; porém não me opus mais, e uns dias depois partimos em companhia unicamente de um guia e um carregador.

Havíamos percorrido a metade do caminho até os vestígios e Éfeso, deixando atrás os contornos mas férteis de Esmirna e nos adentrávamos nessa região inóspita e desabitada através dos pântanos e desfiladeiros que levam às poucas choças que subsistem sobre as destroçadas colunas de Diana —as paredes sem teto da cristandade expulsa e mesmo mais recente porém total desolação das mesquitas abandonadas— quando a súbita e vertiginosa enfermidade de meu companheiro nos obrigou a deter-nos em um cemitério turco, cujas lápides coroadas de turbantes eram o único indicio de que a vida humana havia morado alguma vez nesse ermo. A única caravana que vimos havia passado umas horas atrás; não se podia ver nem esperar vestígio algum de povo ou sequer de caravana, e esta “cidade dos mortos” parecia ser o único refúgio para meu desafortunado amigo, que se via próximo a converter-se em seu seguinte morador.

Nesta situação, busquei pelos arredores um lugar no que pudesse repousar com mais comodidade: ao contrário do aspecto usual dos cemitérios maometanos, os ciprestes deste eram escassos, espalhados sobre toda a superfície; a maioria das tumbas estavam destruídas e desgastadas pelos anos: sob uma das maiores e sob uma das árvores mais frondosas, Darvell se apoiou, inclinando-se com grande dificuldade. Pediu água. Eu duvidava que pudéssemos encontrá-la, ainda que me dispusesse ir buscá-la apesar de meu desalento: porém ele desejava que eu permanecesse com ele; e voltando-se para Suleiman, nosso carregador, que fumava com grande tranqüilidade, lhe disse:

—Suleimán, verbena su— ( ou seja, traz-me um pouco de água) e continuou descrevendo-lhe com grande detalhe o ponto onde poderia encontrá-la. Era um pequeno poço para camelos, algumas centenas de jardas à direita. O jenizaro obedeceu.

Disse a Darvell:

— Como sabes isso?

—Por nossa posição— revelou —você deve notar que o lugar esteve habitado alguma vez e não poderia ser diferente se não houvesse mananciais. Ademais, já estive aqui antes.

—Você já esteve aqui! Como nunca o mencionou? E que fazia você em lugar semelhante onde nada pode permanecer um momento mais sem pedir ajuda?

A esta pergunta não recebi resposta alguma. Enquanto isso, Suleimán regressou com a água e deixou o guia e os cavalos na fonte. Parecia que ao mitigar sua sede Darvell reviveu por um momento; e alberguei a esperança de que pudesse continuar, ou pelo menos regressar, e o exortei a tentá-lo.

Ele guardou silêncio. Parecia pôr ordem em seus pensamentos antes de se esforçar para falar.

—Este é o fim de minha jornada —começou— e de minha vida; vim até aqui para morrer; porém tenho uma súplica a fazer: uma ordem que dar, pois tais devem ser minhas últimas palavras. Cumprirás?

—Desde logo; porém tenho melhores intenções.

—Eu não tenho esperanças, nem desejos, senão este: oculte minha morte a todo ser humano.

—Espero que não se presente a ocasião; você se recuperará e…

—Silêncio!, assim deve ser: prometa.

—Sim.

—Jure — aqui pronunciou um juramento de grande solenidade.

—Não há razão para tal, eu cumprirei com seu pedido; e duvidar de mim é…

—Não posso evitar, deve você jurar.

Pronunciei o juramento e isso pareceu aliviá-lo. Tirou do dedo um anel de selo, que tinha gravados alguns caracteres arábicos, e me deu.

—No nono dia do mês — continuou—, precisamente ao meio-dia (o mês que você gostar, porém o dia deve ser esse) você deverá arrojar este anel às fontes de água salgada que alimentam a baia de Eleusis. No dia seguinte, à mesma hora, deverá dirigir-se às ruínas do templo de Ceres e esperar uma hora…

—Para que?

—Já o verá

—Disse você que é o nono dia do mês?

—O nono.

Quando fiz a observação de que o presente era o nono dia do mês, seu semblante mudou e fez pausa. Enquanto estava sentado, debilitando-se visivelmente, uma cegonha com uma serpente no bico pousou sobre uma tumba próxima a nós; e, sem devorar sua presa, dava a impressão de nos observar fixamente. Não sei o que me impulsionou a espantá-la, porém o intento foi inútil; fez alguns círculos no ar e regressou exatamente ao mesmo lugar. Darvell apontou-a e sorriu. Falou —não sei se para si mesmo ou para mim – porém as palavras só foram:

—Está bem.

—Que é que está bem? Que queres dizer?

—Não importa; você deverá enterrar-me aqui esta noite, e no ponto exato em que está parada essa ave. Já conhece você o resto de minhas ordens.

Então começou a dar-me algumas instruções sobre como poderia ocultar melhor sua morte. Quando terminou, disse:

—Vê você essa ave?

—Claro.

—E a serpente que se retorce em seu bico?

—Sem dúvida; não há nada raro; é sua presa natural. Porém é estranho que não a devore.

Riu-se de uma maneira espectral e disse languidamente:

—Todavia não é o momento.

Enquanto falava, a cegonha empreendeu o voo. Segui-a com os olhos um instante: não pude haver tardado mais que em contar dez. Senti aumentar o peso de Darvell, por pouco que fosse, sobre meu ombro e, ao voltar a ver seu rosto, vi que havia morrido.

Impressionou-me a repentina certeza inconfundível: em poucos minutos seu semblante se tornou quase negro. Pudesse atribuir essa mudança tão rápida à ação de algum veneno, se não estivesse consciente de que não teve oportunidade alguma de tomá-lo sem que eu me desse conta. O dia se acercava a seu final, o corpo se decomporia com rapidez. Não restava nada mais que cumprir seu pedido. Com ajuda do iatagán,de Suleimán e de meu próprio sabre, escavamos uma tumba pouco profunda no sitio que Darvell havia indicado: a terra cedeu com facilidade: tempo atrás havia recebido um ocupante maometano.

Cavamos o mais profundo que o tempo permitiu e, arrojando a terra seca sobre tudo o que restava do ser tão singular que acabava de partir, cortamos alguns ramos do cipreste mais verde que crescia na terra menos desgastada que nos rodeava e o colocamos sobre seu sepulcro.

Entre o assombro e a pena, não podia derramar uma lágrima.

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