Na noite de sábado, peguei o trem para São Paulo com mais três camaradas, dois que eu nem me lembro e o Guarani. Descemos na Estação da Luz na manhã do domingo, o domingo em que seria a passeata, junto com gente que vinha de tudo quanto era lado, de Santos, do Sul, do Rio, de Minas, estivadores do tamanho daquelas estátuas realistas-socialistas ao lado de funcionários públicos com óculos fundo-de-garrafa e musculatura de louva-deus – tinha de tudo. Na estação, já começamos a sentir o clima. Estava um dia bonito, e como tínhamos algumas horas para matar antes da passeata propus um passeio pela cidade, que eu não conhecia, mas o Guarani disse que o combinado era irmos direto para a casa de um camarada nosso, um gráfico chamado Enzo, que morava no Brás. Lá seria a concentração de alguns companheiros, almoçaríamos de graça antes de seguir num grupo maior para a Praça da Sé. Chegamos antes das dez e a casa já estava cheia. Era uma casa modesta, branca de janelas amarelas, mas tinha um quintal espaçoso com algumas árvores, uns bancos compridos de madeira debaixo de videiras, gaiolas de passarinho. Enzo, um italiano de fisionomia severa, bigodão, nos recebeu meio seco, mas a hospitalidade foi mais que garantida pela mulher dele, que era uma dona muito simpática, muito sorridente. Veio da cozinha de avental sujo avisar que o cardápio era macarronada com polpetone, me lembro disso como se fosse o almoço de ontem. No quintal, nos juntamos a um grupo que já devia ter vinte pessoas ou mais, todo mundo bebendo vinho. O Enzo tinha duas filhas, Francesca e Gina, que eles chamavam bem à italiana, Frantchesca e Djina. Duas deusas, uma Sophia Loren e uma Gina Lollobrigida, que ficavam zanzando lépidas de pés descalços, indo de grupinho em grupinho com os garrafões, enchendo copos, fazendo piadas, rindo para todo mundo. Mas este lugar é o paraíso, eu me lembro de ter pensado, enquanto o Guarani me cutucava para ir com calma na bebida. Isso não é festa, ele disse, deixa a festa para depois do trabalho. O trabalho era a porradaria contra os integralistas. Confesso que não segui à risca o conselho de Guarani e estava zonzo quando saímos da casa de Enzo rumo à guerra. Gina e Francesca também foram. Isso me deixou preocupado quando nos aproximamos do nosso ponto de encontro, que seria no Largo de São Bento, observados à distância por batalhões de policiais a cavalo, e eu comecei a ver gente com soco-inglês, porrete na mão, outros levando livros do Lênin, A Classe Operária, A Plebe ou A Manha enrolados em canudos, como se fossem para matar moscas. Mas a maioria de mãos abanando mesmo, olhos brilhantes de confiança e só. E precisava mais? Entendi então que ninguém estava preocupado com detalhes como força física ou experiência em escaramuças de rua, tinha muita mulher no meio, tinha até criança. Aquilo era uma festa cívica. Perdi Gina e Francesca de vista, mas relaxei. Um frisson absolutamente irresponsável, delicioso, percorria as fileiras antifascistas: era chegada a hora de acertar contas com aquela escória. Tínhamos gosto de sangue na boca, minha cabeça girava e eu acho que não era mais só por causa do vinho. Se Hitler e Mussolini estavam fora do alcance de nossos paus e pedras, os camisas-verdes de Plínio Salgado não estavam.
Eu seguia os comandos de companheiros que não conhecia, tudo uma confusão de gente e palavras de ordem, e já não via nem o Guarani nem conhecido nenhum. Mas sabia que o caos era apenas aparente. A estratégia militar tinha sido traçada pelo João Cabanas e pelo Roberto Sisson, caras que entendiam do riscado. Tinha pontos de concentração no Largo João Meneses, no pátio do Convento do Carmo, na Praça Ramos de Azevedo… Você conhece o centro de São Paulo? Dizem que a passeata dos galinhas-verdes chegou a tomar dois quilômetros da Brigadeiro Luiz Antônio, coisa de oito mil pessoas, não sei se é verdade. Só sei que, chegando na Praça, com mulheres e crianças fazendo o papel de abre-alas, bandeiras do Sigma tremulando, aquele rio verde começou a ser comprimido nas duas margens pelos rochedos vermelhos. Se eles eram oito mil, quantos seríamos nós? E a troca de insultos começou. Foi um tal de morra! pra cá, viva! pra lá, alguns mais esquentadinhos já começaram a sair no tapa ali mesmo. De repente, ouvimos tiros, mas era impossível saber de onde tinham vindo. Sentindo-se seguros com a proteção policial, que era de centenas de homens, uma fartura que eu nunca tinha visto de bombeiros, cavalarianos e policiais civis armados, os oradores integralistas começaram a discursar na escadaria da catedral debaixo de uma vaia de ensurdecer. Plínio Salgado, que não era besta, não apareceu, ficou com o rabo entre as pernas na sede do partido. Era impossível ouvir qualquer coisa. Eu comecei a suar em bicas no meio daquela panela de pressão, o sal me entrava nos olhos deformando tudo. De repente, bem claro, como se viesse do céu, um som picotado e inconfundível que até então eu só conhecia dos filmes de guerra: uma rajada de metralhadora. Por instinto, dei meia-volta e ia sair correndo, mas fui salvo do vexame por uma velhota de xale preto nos ombros, cara soturna de siciliana, que naquele momento me pareceu a própria Morte. Ela me agarrou o braço e disse: Coragem, homem. Sem graça, murmurei: É que eu preciso ir ao banheiro. Sei, respondeu a velha, já está se cagando. Tentei salvar a honra com um riso de desdém, mas tratei de sair rapidamente de perto da bruxa. De todo modo não fugi, tinha passado o impulso de covardia. Fui caminhando com lentidão estudada para a direita, na direção de um grupo mais denso onde naquele momento, em cima de um caixote, começava a improvisar um pequeno comício paralelo um sujeito que eu reconheci das fotos dos jornais que lia na casa do meu tio João Mateus: era Edgard Leuenroth, o grande líder anarquista. Fiquei por ali, aplaudindo cada palavra dele como se aplaudisse meu próprio passado. Percebi que pequenos comícios como aquele iam pipocando em outros pontos da praça. E de repente o tiroteio rebentou de vez.
Nunca se soube quem começou. As balas zuniam, corria gente para todo lado, e tome pop-pop-pop. Fui procurar proteção atrás de uma árvore e no caminho vi que a velha com cara de siciliana continuava impassível em seu lugar, plantada lá com seus sapatos pretos: era a única pessoa parada no meio daquele redemoinho de gente, como se fosse o próprio eixo da roda de insanidade em que se transformara a Praça da Sé. Vi pessoas caindo, não sei se porque tinham sido alvejadas ou porque tropeçavam mesmo, mas de uma forma ou de outra eram pisadas por quem vinha atrás, e ouvi gritos de dor, uivos de pânico, ordens contraditórias, por aqui, calma, para cima, é agora, socorro! De repente, um garoto camisa-verde mais desorientado cruzou na minha frente e sem pensar eu lhe mandei um murro bem no meio do nariz. Ele caiu de joelhos e começou a chorar feito um bebê, o sangue jorrando. Muito bem, companheiro, senti tapinhas nas costas quando finalmente alcancei a árvore que mantinha na mira. A dor em minha mão era aguda.
Os tiros tinham ficado mais esparsos, o frenesi começou a baixar. Alguém gritou que os galinhas estavam batendo em retirada, e era verdade: a Praça da Sé excretava jatos verdes por todos os poros, uma cena linda. Alguns arrancavam as camisas enquanto corriam, tentando se livrar da cor que os denunciava, e essas peças infames eram coletadas por companheiros eufóricos, que as erguiam como troféus, berrando: Vitória! Vitória!
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