terça-feira, 23 de junho de 2009

TERESA

Entrei no elevador, dois sujeitos grandes gordos estavam lá dentro. Um apartamento desse tamanho e só moram lá o velho e aquela vigarista, disse um deles. A filha-da-puta só quer o dinheiro do velho, respondeu o outro, mas ele não morre, noventa anos e não morre, ela deve estar muito decepcionada, já atura o velho há cinco anos.

Depois ficaram calados, saíram na minha frente. Na portaria perguntei ao porteiro, quem são esses dois caras que acabaram de sair? São filhos do doutor Gumercindo, ele respondeu. É a primeira vez que os vejo por aqui, eu disse. Eles não se dão com o velho, respondeu o porteiro. Desde que ele casou com dona Teresa só apareceram agora.

Eu sempre via o doutor Gumercindo saindo de braço com dona Teresa. Eles moravam no apartamento que ficava em cima do meu, costumávamos descer juntos no elevador, então trocávamos amabilidades. Eu abria a porta para eles, que agradeciam amavelmente. Dona Teresa não parecia de jeito nenhum uma mulher que tivesse casado por interesse.

Um dia depois de ouvir a conversa dos filhos no elevador, desci com o doutor Gumercindo e dona Teresa. Sem que percebessem, olhei dona Teresa atentamente. Ela cuidava do doutor Gumercindo com carinho e desvelo, nenhuma outra mulher do prédio tratava o marido daquela maneira.

Um dia o doutor Gumercindo teve um acidente vascular cerebral. Tempos depois, descemos os três pelo elevador, o doutor Gumercindo numa cadeira de rodas.

Vamos passear na praça, disse dona Teresa. Você gosta de passear na praça, não gosta?, perguntou ela. Gumercindo maneou a cabeça afirmativamente. Posso ir junto?, perguntei.

Depois de darmos uma volta pela praça sentamos à sombra de uma árvore. O doutor Gumercindo começou a cochilar e dona Teresa limpou um pouco de saliva que escorria pelos cantos da boca do marido. Notei que os olhos dela se encheram de lágrimas.
Ele era tão cheio de vida, ela disse, com um sorriso triste.

Encontrei-me com eles outras vezes e notei que dona Teresa ficara muito abatida com a doença do marido. Ela tinha setenta anos, mas aparentava muito mais, emagrecera, seu rosto ficara muito pálido. Há casos em que o cônjuge doente acaba matando o que cuida dele.

Fiquei alguns dias em São Paulo fazendo um serviço para o Despachante, um freguês fácil de despachar.

Na volta subi ao apartamento dos velhos. Dona Teresa abriu a porta, seu aspecto era tão doentio que senti-me obrigado a dizer, dona Teresa, a senhora devia arranjar uma enfermeira, alguém para ajudar a senhora a cuidar do doutor Gumercindo.

Ele não quer, ela respondeu, ele quer que eu mesma cuide dele, somente eu, e acho que ele tem razão, uma enfermeira não o trataria como ele merece.

Viajei durante uma semana fazendo outro serviço para o Despachante, esse mais complicado, o freguês tinha um guarda-costas que deu trabalho. Ao voltar tornei a encontrar no elevador os dois filhos grandes gordos do doutor Gumercindo, acompanhados de duas mulheres magras. Eles me cumprimentaram amavelmente e saíram na minha frente.

Aqueles são os filhos e as noras do doutor Gumercindo?

São, respondeu o porteiro, agora estão morando aqui, o doutor Gumercindo morreu, mas o apartamento é grande, dá para morar todo mundo nele. E dona Teresa?, perguntei. Ela não tem aparecido, respondeu o porteiro.

Voltei a encontrar os novos moradores do apartamento do doutor Gumercindo. As duas mulheres tinham cara de putas. Eu conheço putas. Os dois filhos estavam cada vez mais gordos. Falavam dos novos carros que haviam comprado. As duas mulheres estavam vestidas com roupas caras. Esses caras andaram fazendo coisas erradas, pensei. No meu trabalho sou obrigado a sacar quem é perigoso, quem não é, quem é filho-da-puta, quem não é. Eles eram as duas coisas.

Depois de um mês achei estranho não encontrar mais dona Teresa no elevador. Ela gostava de passear na praça, sentar num dos bancos para apanhar sol. Perguntei ao porteiro, tem visto dona Teresa? Não, ele respondeu.

Subi ao apartamento do doutor Gumercindo, toquei a campainha. Uma empregada abriu a porta.

Vim visitar dona Teresa, eu disse. A mulher bateu com a porta na minha cara. Toquei novamente a campainha. Ouvi a voz da empregada, gritando do lado de dentro, dona Teresa não pode receber visitas. Eu gritei, e a senhora não pode abrir a porta para falar comigo? Tenho ordem de não abrir a porta para estranhos, a mulher gritou do lado de dentro.

Dois dias depois voltei ao apartamento de dona Teresa. Sabia que a empregada estava de folga. Era a hora do almoço do porteiro. Antes tirei algo de dentro da maleta de couro onde guardava os folhetos sobre informática. Toquei a campainha e notei que o olho mágico havia escurecido, alguém me olhava de dentro.

Um dos grandões entreabriu a porta. Vim visitar dona Teresa, eu disse. Ela não pode receber visitas, ele respondeu, irritado, dá o fora. Começou a fechar a porta, mas não deixei. Abre essa merda, eu disse, encostando a pistola nos cornos dele.
Em pé na sala estava o irmão dele. Onde é que ela está, seus filhos-da-puta? Ela viajou, balbuciou um deles. Viajou o caralho, eu disse, dando uma porrada com a pistola na cara dele, em cima do nariz.

Dona Teresa estava numa cama dessas de hospital, os dois pulsos amarrados no estrado de ferro. Solta ela, eu disse. Eles soltaram. Senta ela naquela poltrona.

A senhora está bem?, perguntei. Ela maneou a cabeça dizendo que sim. A senhora é capaz de guardar um segredo? Sou, ela respondeu com voz fraca. Um segredo terrível? Sim, seu José, ela respondeu.

Levei os dois grandalhões para o banheiro, mandei entrarem na banheira e dei um tiro na cabeça de cada um. Sempre atiro na cabeça. Tirei as carteiras com cartões de crédito dos bolsos deles. Voltei para a sala.

Matei aqueles canalhas, ninguém pode saber, que fui eu, diga que foi um ladrão. Sim, ela respondeu.

Fui ao quarto das putas e peguei as jóias das gavetas. Depois saí, deixando a porta aberta.

No meu apartamento botei aquele bagulho todo em várias sacolinhas de supermercado. Coloquei tudo na minha maleta de couro, saí, peguei um táxi, saltei bem longe, noutro bairro, joguei cada saco numa lata de lixo diferente.
Quando voltei para casa havia uma grande movimentação no prédio. Assaltaram o apartamento do doutor Gumercindo, disse o porteiro, mataram os dois filhos dele.

É mesmo? Como isso foi possível?

Foi na hora do meu almoço, respondeu o porteiro.

E dona Teresa?

Ela está bem, respondeu o porteiro.

Subi para o apartamento do doutor Gumercindo. As duas putas estavam lá dentro, choramingando.

Vocês podem fazer as malas e ir baixar noutro terreiro, eu disse, o apartamento pertence à dona Teresa.

Quando as duas putas saíram, dona Teresa deu um beijo na minha mão, o senhor é um santo, seu José, vou guardar até morrer o nosso segredo.

Voltei para o meu apartamento. Um santo. Um santo porra nenhuma. Sou um assassino profissional, mato por dinheiro.

Nem sempre.

Ela e outras mulheres – Rubem Fonseca – Companhia das Letras, 2006

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