A Caminho de Assunção, de Rubem Fonseca
Meu dólmã azul-ferrete de alamares brancos estava puído nos punhos e na gola. Minhas botas não tinham saltos, e estavam furadas nas solas. O punho da minha espada partira-se. Os soldados tinham os pés descalços e os uniformes remendados pelas mãos das chinas que seguiam voluntariamente nosso exército ou eram arrebatadas nos povoados que atravessávamos a caminho de Assunção.
O Coronel Procópio, comandante do 2°. Regimento de Cavalaria, recusava-se a nos deixar vestir roupas civis.
Sabemos que o próprio General-Comandante veste sobre o seu uniforme um poncho azul de forro vermelho. E que oficiais e praças gaúchos do 5°. Regimento se vestem de bombachas, ponchos e chapéus de vaqueiro, disse Procópio, na reunião do Estado-Maior.
Procópio era um homem magro, de testa pontuda e queixo fino. Passava as noites lendo na barraca. Diziam que ele não andava bom da cabeça.
Não somos um bando de peões de estância. Somos os Dragões Reais de Minas. Nosso regimento foi criado por Carta Régia.
Quando Procópio gritava, sua voz ficava áspera e rouca. Estávamos em dezembro. Havíamos acabado de atravessar o Chaco e metade do nosso regimento fora dizimado pelo cólera, o beribéri e o tifo. Em meio à marcha rápida para o sul, bivacamos perto das coxilhas de Vileta. O acampamento fervilhava de homens e material de guerra. Íamos atacar Avaí.
Ouvia-se, ao longe, uma paródia obscena do hino da Cavalaria, cantada pelos gaúchos do 5°.
Partimos de madrugada. Raiou um dia de céu azul e nuvens muito brancas. Ao cruzar um desfiladeiro sombrio ouvimos o troar das bocas de fogo inimigas. O alferes Rezende, que crescera comigo em Santo Antônio do Paraibuna, caiu com o pé preso no estribo, a cabeça uma polpa sangrenta, e foi arrastado pelo seu cavalo em disparada até desaparecer num capinzal alto. De entre a macega, os mosquetões inimigos atiravam sem parar. O céu começou a escurecer e logo uma chuva grossa desabou sobre o campo de batalha.
Procópio ordenou uma carga sobre as baterias do flanco esquerdo. Atravessamos um capoeirão, um chão coberto de mata rala. Com as lanças em riste, investimos sobre a artilharia inimiga.
Carreguem, carreguem!, bradava Procópio.
O ruído das patas dos cavalos em galope acelerado e dos nossos gritos era tão forte quanto o estrondo dos canhões. O primeiro que matei estava sem a barretina, os cabelos lisos, de índio, molhados pela chuva.
Muitos dos nossos, os cavalos mortos, combatiam a pé. A lâmina da minha espada brilhava lavada de sangue e chuva. Um artilheiro inimigo, um menino, agarrou meu estribo e me atacou com um facão. Decepei-lhe a mão direita, num golpe seco e hábil.
Aos poucos a luta foi cessando, apenas pequenas escaramuças ocorriam esporadicamente. O exército inimigo havia sido desbaratado. Não se ouvia mais o estrondo dos seus canhões. Dezessete deles haviam sido capturados.
Nas ribanceiras e montes, nas macegas e capoeiras estavam caídos corpos mortos de muitos milhares de homens e animais. Saía do chão um cheiro de terra molhada e sangue e pólvora misturado com a fragrância doce da bosta dos cavalos.
O Coronel Procópio e o Tenente-Coronel Rubião estavam mortos. O Major José Rias assumiu o comando do regimento. Os oficiais e sargentos se reuniram em torno de sua cabeça pelada pelo tifo. A pele do rosto de Rias era pálida como cera de vela de santo e seus olhos, encravados fundo no crânio, brilhavam de febre e loucura. O espírito de Procópio parecia ter entrado no seu corpo. Vamos até Assunção! Viva a Cavalaria!
Um estafeta surgiu para avisar que o General-Comandante estava passando em revista as tropas. José Rias percorreu o acampamento berrando com os homens que estavam deitados, dormindo ou apenas olhando exaustos para o céu.
A cavalo! de pé! Rias dava pontapés no rosto dos que não respondiam às suas ordens, enfiava a espada nas costelas dos recalcitrantes.
Em pouco tempo os homens montaram nos seus cavalos. Aqueles que haviam perdido as montarias perfilavam-se a pé, alguns com os arreios ao lado, a lança na mão direita usada como apoio, para não caírem ao chão de cansaço.
No meio da neblina, do lado norte do campo, surgiu o General-Comandante cavalgando um tordilho, acompanhado de um ajudante-de-ordens. Vestia o poncho azul com forro vermelho, segurava as rédeas na mão esquerda e com a direita mantinha um lenço negro contra o rosto. Um tiro arrebentara seu maxilar e alguns dentes da frente. Havia manchas de sangue no seu poncho. Ele estava enganchado na sela como alguém que tivesse passado a vida inteira naquela posição. Os soldados, obedecendo ao comando de Rias, ficaram em posição de sentido.
O General imobilizou sua montaria e sem soltar as rédeas levantou a mão esquerda pedindo silêncio. Mas ouvia-se apenas o ranger do couro das selas e dos loros, o retinir das esporas e barbelas, o resfolegar dos cavalos contidos pelos freios. O General tirou o lenço do rosto e começou a falar.
Camaradas do 2º. Regimento, Dragões Reais de Minas...
O ferimento da boca não permitia que ele pronunciasse as palavras corretamente. Eu dormitava sobre a minha sela e mal entendia o que ele dizia.
O velho Sargento Andrade, dado como morto, esticado ao lado de uma carreta de munição, as esporas gastas de ferro enfiadas na terra estrangeira, o uniforme roto e sujo de lama, levantou-se, fez uma continência e caiu ao chão. Alguns soldados riram à socapa.
Osório parou de falar. Respondeu a continência olhando o corpo imóvel de Andrade, seu rosto meio escondido pelo lenço negro. Fez um gesto para o ajudante-de-ordens, esporeou o cavalo e partiu num trote curto em direção ao acampamento do 5°.
Por um acaso este conto é o inedito divulgado na revista plaiboy deste mes?
ResponderExcluirNão. Esse conto é antigo. Muito legal, não é?
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