quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Trecho do livro Fúria, de Salman Rushdie

furia

 

O professor Malik Solanka, historiador de idéias aposentado, irascível criador de bonecos, e desde o seu recente aniversário de cinqüenta e cinco anos, celibatário e sozinho por (mui criticada) vontade própria, em seus anos prateados se viu vivendo uma idade dourada. Lá fora, um verão longo, úmido, a primeira estação quente do terceiro milênio, torrava e transpirava. A cidade fervia de dinheiro. O valor dos aluguéis e das propriedades nunca haviasido tão alto, e na indústria de roupas o que se dizia era que a modanunca estivera tão na moda. Novos restaurantes abriam de horaem hora. Lojas, representantes exclusivos, galerias batalhavampara satisfazer a estonteante demanda por produtos cada vez maisrecherchés: azeites de oliva de produção limitada, saca-rolhas detrezentos dólares, veículos Humvees personalizados, o últimosoftware antivírus, serviços de acompanhantes que ofereciam contorcionistas e gêmeas, instalações de vídeo, arte marginal, xales leves como pluma feitos com a pelugem do queixo de cabritos montanheses extintos. Tanta gente estava reformando seus apartamentos que os preços dos estoques de acessórios e complementos de alta classe dispararam. Havia listas de espera para banheiras,maçanetas, madeiras de lei importadas, lareiras em estilo antigo, bidês, mármores. Apesar da recente queda no valor do índice Nasdaq e das ações da Amazon, a nova tecnologia dominava a cidade: ainda se falava de start-ups, de IPO, de interatividade, do futuro inimaginável que acabara de começar. O futuro era um cassino, todo mundo estava apostando, e todo mundo esperava ganhar.

Na rua do professor Solanka, jovens brancos ricos passeavam nas roupas baggy por baixo das rosáceas dos pórticos, estilosamente simulando indigência enquanto esperavam os bilhões que sem dúvida lhes viriam em algum momento próximo. Havia uma jovem alta, de olhos verdes, de malares centro-europeus pronunciados que chamou particularmente a atenção de seu olho sexualmente abstinente, mas ainda ativo. Seu cabelo loiro-ruivo saía espetado como o de um palhaço de debaixo do boné preto de beisebol D'Angelo Voodoo, os lábios eram cheios e sardônicos, ela riu grosseiramente por trás de uma mão displicente quando o europeu, quase dândi, pequeno Solly Solanka passou girando a bengala, de chapéu panamá e terno de linho cor-de-creme em seu passeio da tarde. Solly: o apelido de faculdade que ele nunca apreciara, masque não havia conseguido perder inteiramente.

‘‘O senhor aí. O senhor, com licença.’’ A loira chamava por ele, num tom imperioso que exigia resposta. Seus acompanhantes puseram-se em alerta, como uma guarda pretoriana. Ela estava quebrando uma regra da vida na cidade grande, audaciosamente, segura de sua força, confiante de seu território e de seu bando, sem nada temer. Aquilo era só bravata de menina bonita, uma bobagem. O professor Solanka parou e virou o rosto para a deusa ociosa do portal, que continuou, irritantemente, a entevistá-lo. ‘‘O senhor anda muito. Quer dizer, cinco, seis vezes por dia eu vejo o senhor indo para algum lugar. Sentada aqui, vejo que o senhor vai, vem, sem cachorro, e nunca volta com alguma amiga, com alguma compra. O horário também é estranho, trabalhar é que osenhor não está indo. Então, pensei assim: por que ele está sempreandando sozinho? Tem um cara na cidade batendo com um blocode concreto na cabeça das mulheres, o senhor quem sabe já ouviufalar, mas se eu achasse que o senhor era um maluco desses, nãovinha conversar. E o senhor tem sotaque inglês, o que é interessante também, certo? A gente até seguiu o senhor umas vezes, mas osenhor não estava indo para lugar nenhum, só andando por aí, passeando. Me deu a impressão de que estava procurando alguma coisa, e aí pensei em perguntar o quê. Só para fazer amizade, boa vizinhança. O senhor é meio misterioso. Para mim, pelo menos.’’

Uma súbita ira brotou dentro dele. ‘‘O que eu estou procurando’’, rugiu, ‘‘é que me deixem em paz.’’ Sua voz tremeu com uma raiva muito maior que a intromissão merecia, uma raiva que o deixava chocado cada vez que percorria seu sistema nervoso, como uma enchente. Ao ouvir sua veemência, a jovem recuou, recolhendo-se ao silêncio.

“Cara”, disse o maior e mais protetor dos guardas pretorianos, seu amante, sem dúvida, seu loiro centurião oxigenado, ‘‘para um apóstolo da paz o senhor está cheio é de guerra.’’

Ela o fazia lembrar de alguém que não conseguia identificar, e a pequena falha de memória, o ‘‘momento de maturidade’’, incomodou-o furiosamente. Felizmente ela não estava mais ali, ninguém estava, quando voltou do carnaval caribenho com o chapéu molhado e ensopado até os ossos, depois de ser apanhado desprevenido por uma rajada de chuva firme e quente.

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