terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Trecho de Os Espiões, de Luis Fernando Veríssimo

Os Espiões

Formei-me em Letras e na bebida busco esquecer. Mas só bebo nos fins de semana. De segunda a sexta trabalho numa editora, onde uma das minhas funções é examinar os originais que chegam pelo correio, entram pelas janelas, caem do teto, brotam do chão ou são atirados na minha mesa pelo Marcito, dono da editora, com a frase “Vê se isso presta”. A enxurrada de autores querendo ser publicados começou depois que um livrinho nosso chamado Astrologia e Amor — Um Guia Sideral para Namorados fez tanto sucesso que permitiu ao Marcito comprar duas motos novas para sua coleção. De repente nos descobriram, e os originais não param mais de chegar. Eu os examino e decido seu futuro. Nas segundas-feiras estou sempre de ressaca, e os originais que chegam vão direto das minhas mãos trêmulas para o lixo. E nas segundasfeiras minhas cartas de rejeição são ferozes. Recomendo ao autor que não apenas nunca mais nos mande originais como nunca mais escreva uma linha, uma palavra, um recibo. Se Guerra e Paz caísse na minha mesa numa segunda- feira, eu mandaria seu autor plantar cebolas. Cervantes? Desista, hombre. Flaubert? Proust? Não me façam rir. Graham Greene? Tente farmácia. Nem le Carré escaparia. Certa vez recomendei a uma mulher chamada Corina que se ocupasse de afazeres domésticos e poupasse o mundo da sua óbvia demência, a de pensar que era poeta. Um dia ela entrou na minha sala brandindo o livro rejeitado que publicara por outra editora e o atirou na minha cabeça. Quando me perguntam a origem da pequena cicatriz que tenho sobre o olho esquerdo, respondo:

— Poesia.

Corina já publicou vários livros de poemas e pensamentos com grande sucesso. Sempre me manda o convite para seus lançamentos e sessões de autógrafos. Soube que sua última obra é uma compilação de toda a sua poesia e prosa, com quatrocentas páginas. Capa dura. Vivo aterrorizado com a ideia de que ainda levarei esse tijolo na cabeça.

Uma ameaça imediata vinha do Fulvio Edmar, autor do Astrologia e Amor, que nunca recebera os direitos autorais pela sua obra. Ele pagara pela primeira edição e achava que deveria receber os direitos integrais de todas as edições depois que o livro estourara. O Marcito não concordava. E eu é que tinha que responder as cobranças cada vez mais desaforadas de Fulvio Edmar. Há anos trocávamos insultos por cartas. Nunca nos encontráramos. Ele já descrevera com detalhes como faria para que meus testículos substituíssem minhas amídalas, quando isso acontecesse. Eu já o avisara que carregava sempre uma soqueira no bolso.

Mesmo as minhas cartas de rejeição mais violentas, minhas diatribes de segunda-feira, terminam com um P.S. amável. Instrução do Marcito. Se a pessoa estiver disposta a pagar pela edição do seu livro, a editora terá enorme prazer em rever sua avaliação etc. etc. Conheci o Marcito na escola. Os dois com 15 perebentos anos. Ele sabia que as minhas redações eram as melhores da turma e me convidou para escrever histórias de sacanagem, que reunia num caderno grampeado, intitulado O Punheteiro, e alugava para quem quisesse levá-lo para casa, com a condição de devolver no dia seguinte sem manchas. Depois da escola passamos anos sem nos ver até que descobri que ele abrira uma editora e fui procurá-lo. Eu tinha escrito um romance e queria publicá-lo. Não, não era de sacanagem. Demos boas risadas lembrando os tempos de O Punheteiro, mas o Marcito disse que, a não ser que eu pagasse pela edição, não tinha como publicar meu romance, uma história de espionagem sobre um fictício programa nuclear brasileiro abortado pelos americanos. A editora estava recém-começando. Ele era sócio de um tio, fabricante de adubo, cujo único interesse na editora era a publicação de um almanaque mensal distribuído entre seus clientes no interior do estado. Mas Marcito me fazia uma proposta. Tinha planos para criar uma editora de verdade. Precisava de alguém que o ajudasse. Se eu fosse trabalhar com ele, eventualmente publicaria meu romance. Não podia pro- meter um grande salário, mas... Me lembrei que ele não dividia comigo o dinheiro do aluguel de O Punheteiro. Ia certamente me explorar de novo. Mas a ideia de trabalhar numa editora me seduzia. Afinal, eu me formara em Letras e na época era funcionário de uma loja de vídeos. Estava com 30 anos. Tinha recém me casado com a Julinha. O João (a Julinha não aceitou que ele se chamasse le Carré) estava para nascer. Topei. Isso foi há 12 anos. Minha primeira tarefa na editora foi copiar um texto sobre camaleões de uma enciclopédia, para incluir no almanaque. Escolha profética: o camaleão é um bicho que se adapta a qualquer circunstância e desaparece contra o fundo. Desde então é isso que eu faço. Leio originais. Escrevo cartas. Redijo quase todo o almanaque para ajudar a vender adubo. Me lamento e bebo. E, lentamente, desapareço contra o fundo.

A editora cresceu. Descobri que o Marcito não era só um filho de pai rico cretino como eu sempre imaginara. Tinha um gosto, que eu jamais suspeitaria num colecionador de motos, pelo Simenon. Depois do sucesso de Astrologia e Amor, começamos a publicar mais livros, na maioria pagos pelo autor. Alguns até vendem, se tivermos sorte ou a família do autor for grande. Vez que outra eu recomendo a publicação de um original que chega à minha mesa. Principalmente se o examino numa sexta- feira, quando estou cheio de boa vontade com a humanidade e suas pretensões literárias, pois sei que o dia acabará na mesa do bar do Espanhol, onde começa o meu porre semanal. Meus três dias de consciência embotada pela cachaça e a cerveja em que me livro de mim mesmo e de mi puta vida. Meu companheiro mais frequente na mesa do Espanhol é o Joel Dubin, que vai na editora duas vezes por semana, quartas e sextas, para fazer a revisão do almanaque ou de provas de eventuais livros em preparação e cujos olhos azuis, dizem, alvoroçam as meninas no cursinho pré-vestibular em que dá aulas de português, apesar da sua baixa estatura. Ele jura que nunca comeu nenhuma aluna, embora prometesse loucas noites de amor às que passassem no vestibular. Sei pouco sobre a vida sexual real do Dubin, fora a certeza de que é melhor do que a minha. As cadeiras do bar do Espanhol têm uma vida sexual melhor do que a minha. Dubin costumava se enternecer por namoradas impossíveis. Certa vez estava quase brigando com uma quando ela perguntou a um garçom se não tinham frisante sem bolinha. Decidiu que não poderia deixá-la solta no mundo, e quase se casaram. Fazia poemas, maus poemas. Se apresentava como “Joel Dubin, poeta menor”. Tinha um poema que repetia sempre para namoradas em potencial, algo sobre ser uma hipotenusa em riste atrás de um triângulo que a acomodasse, e que chamava de “cantada geométrica”. As que entendiam o poema ou sorriam só para agradá-lo ele descartava porque não queria nada com intelectuais. Preferia as que gritavam “O quê?!”

Dubin e eu tínhamos longas discussões, na editora e na mesa do bar, sobre literatura e gramática, e discordávamos radicalmente quanto à colocação de vírgulas. Du- bin é um oficialista, diz que há leis para o uso da vírgula que devem ser respeitadas. Eu sou relativista: acho que vírgulas são como confeitos num bolo, a serem espalhadas com parcimônia nos lugares onde fiquem bem e não atrapalhem a degustação. Não é raro eu re-revisar uma revisão do Dubin e cortar as vírgulas que ele acrescentou ou acrescentar esparsas vírgulas minhas em desafio às regras, onde acho que cabem. No bar, nossas conversas começavam com a vírgula e depois se expandiam, abrangendo a condição humana e o Universo. Ficavam mais vitriólicas e estridentes à medida que nos embebedávamos, até o Espanhol vir pedir para baixarmos a bola. Difamávamos todos os escritores da cidade, com rancor crescente. Ainda hoje não sei se o Dubin me acompanha até o fundo nos meus mergulhos semanais na inconsciência. Não sei como chego em casa nas sextas-feiras. Talvez seja carregado por ele, que não bebeu tanto. Nunca perguntei. No fim das tardes de sábado nos encontrávamos outra vez na mesma mesa do bar do Espanhol e retomávamos a mesma bebedeira e a mesma conversa insana. Era uma maneira de dramatizar nossa própria mediocridade sem saída, uma forma de flagelação mútua pela banalidade. Dubin chamava nossas discussões intermináveis de pavanas para mortos-vivos. Uma vez ficamos quase uma hora gritando um para o outro, a respeito de não me lembro que dúvida gramatical:

— Ênclise!

— Próclise!

— Ênclise!

— Próclise!

— Ênclise!

— Próclise!

Até o Espanhol fazer sinal, de trás do balcão, para baixarmos a bola.

Também não sei como chego em casa nas madrugadas de domingo. Passo os domingos dormindo. A Julinha e

o João iam almoçar na casa da irmã dela. Ficávamos só eu e o cachorro, o Black. A doce Julinha com quem me casei porque estava grávida desapareceu dentro de uma mulher gorda e amarga do mesmo nome e nunca mais foi vista. Aos domingos ela só deixava comida para o cachorro. Se eu quisesse comer, precisava negociar com o Black. Ela não falava mais comigo. O João estava com 12 anos e também não falava mais comigo. Só quem falava comigo era o Black. Pelo menos seu olhar parecia dizer “Eu entendo, eu entendo”. No fim das tardes de domingo vou de novo encontrar o Dubin no bar do Espanhol. Que não é espanhol. Chama-se Miguel e começou a ser chamado de “Dom Miguel” pelo professor Fortuna, e depois de “Espanhol”. O professor Fortuna também não é professor. Frequentava o bar, mas não se sentava conosco. Dizia que não gostava de se misturar, referindo-se não a nós, mas à humanidade em geral. Explicava que chamava o Espanhol de Espanhol porque ele lhe lembrava Miguel de Unamuno, que conhecia pessoalmente. Pelo que sabíamos, Unamuno nunca estivera em Porto Alegre e o professor nunca saíra daqui. Às vezes desconfiávamos que ele nunca saíra do bar do Espanhol. E, mesmo, as idades não combinariam, embora o professor seja bem mais velho do que eu e o Dubin. “Um blefe”, é o que ele dizia de Unamuno. Suspeitávamos que o professor não lera nenhum dos autores sobre os quais tinha opiniões definitivas. Costumava dizer:

— O homem é Nietzsche. O resto é lixo.

— E Heidegger, professor?

Ele esfregava a cara com as duas mãos, invariável prelúdio para uma das suas sentenças categóricas.

— Enganador.

Marx?

— Já deu o que tinha que dar.

Camus?

— Veado.

O professor Fortuna tinha sempre a barba por fazer e vestia um sobretudo cor de rato molhado, fosse qual fosse a estação do ano. Não é um homem feio, mas era tão difícil acreditar nas peripécias sexuais que contava (“aprendi na Índia”) quanto acreditar que lia grego no original, como também afirmava. Dizia que qualquer dia me entregaria para publicação o livro que estava escrevendo, uma resposta à Crítica da Razão Pura com o título provisório de Anti Kant. Sabíamos quase nada da sua vida, mas tínhamos certeza de que o livro não existia e que ele nunca lera Kant. Ou Nietzsche. Dubin e eu frequentemente o envolvíamos em nossas discussões, mesmo quando a sua mesa estava longe da nossa e tínhamos que gritar para que nos ouvisse.

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