terça-feira, 26 de janeiro de 2010

trecho do livro O Quarteto de Alexandria

de Lawrence Durrell

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Balthazar

Já havia escurecido quando dispensei o táxi na praça Mohammed Ali e caminhei até o departamento da Prefeitura onde fi cava o gabinete de Nimrod. Ainda estava atônito com o rumo tomado pelos acontecimentos e oprimido com a idéia dos possíveis desdobramentos — reforçando as advertências e ameaças dos últimos meses, nos quais eu vivera unicamente para uma pessoa — Justine. Ardia de impaciência por revê-la.

As lojas já estavam iluminadas e os balcões dos cambistas estavam cercados de marinheiros franceses impacientes por trocar seus francos por comida e vinho, seda, mulheres, rapazes ou ópio — toda sorte de descuido compreensível. O gabinete de Nimrod fi cava nos fundos de um edifício antigo, ao fim da rua. Parecia deserto àquela hora, cheio de corredores vazios e gabinetes abertos. Todos os funcionários haviam saído às seis, quando termina o expediente. Meus passos arrastados ecoaram pela portaria abandonada. Era estranho ingressar num prédio da polícia de forma tão desimpedida. Ao final do terceiro corredor cheguei à porta de Nimrod e bati. Ouviam-se vozes em seu interior. Seu gabinete era uma sala ampla, até majestosa, com janelas que davam para um pátio vazio onde algumas galinhas passavam o dia inteiro cacarejando e ciscando no chão de terra. Uma palmeira solitária e ressecada erguia-se no meio do pátio, proporcionando alguma sombra no verão.

Como ninguém respondeu, abri a porta e entrei — e detive-me em seguida; a escuridão e a luz brilhante fizeram-me pensar que um filme estava sendo exibido. Mas era apenas o imenso epidiascópio projetando na parede as imagens ampliadas das fotografias que Nimrod retirava de um envelope. Ofuscado, entrei na sala e identifiquei Balthazar e Keats na penumbra fosforescente que rodeava a máquina, seus perfis recortados na luz magnética da poderosa lâmpada.

— Ótimo — disse Nimrod, virando a cabeça e estendendo-me uma cadeira —, sente-se. — Keats sorriu para mim, parecendo empolgado e cheio de uma satisfação misteriosa. As fotografias que estudavam com tanto cuidado haviam sido tiradas por ele no baile dos Cervoni. Tão ampliadas, pareciam afrescos distorcidos que se materializavam e desapareciam na parede branca. — Veja se pode ajudar-nos com a identificação — pediu Nimrod, ao que me sentei e, obediente, voltei o rosto para as imagens brilhantes das silhuetas de dezenas de monges dementes, dançando juntos.

— Essa não — disse Keats. A luz branca do magnésio ateara fogo aos contornos das figuras encapuzadas.

Dilatadas até aquele tamanho enorme, as fotografias pareciam uma nova forma de arte, mais macabras que qualquer fruto da imaginação de um Goya. Uma nova iconografia — pintada com fumaça e clarões de flash. Nimrod trocava as imagens sem pressa, demorando-se em cada uma delas.

— Nenhum comentário? — perguntava antes de expor perante nossos olhos mais um fac-símile ampliado da vida real. — Nenhum comentário?

Para fins de identificação, eram inúteis. Oito fotografias, no total — cada uma delas um terrível simulacro de uma festa mórbida celebrada por sátiros vestidos de monges em alguma cripta medieval, orientados por Sade!

— Ali está o anel — alertou Balthazar assim que a quinta fotografia surgiu na parede. Um grupo de vultos encapuzados, agitando-se freneticamente com os braços dados, surgiu diante de nós, inexpressivos como sépias ou os monstros grotescos que por vezes nos espreitam em meio à escuridão dos aquários. Seus olhos eram fendas desprovidas de sentido, sua alegria um arremedo de emoções humanas. Então é assim que os inquisidores se divertem em suas horas de folga! Keats suspirou, desesperado. Um dos vultos tinha a mão pousada sobre o braço coberto de negro do vizinho. Um pequeno borrão branco indicava o trágico anel de Justine. Nimrod descreveu toda a cena para si mesmo com o tom de um homem que faz uma medição.

— Cinco mascarados... algum lugar perto do bufê, enxerga-se o canto... e a mão. Pertence a Toto de Brunel? Que acham? — Olhei com atenção.

— Creio que é possível — opinei. — Justine usa esse anel em outro dedo. Nimrod, triunfante, exclamou:

— Rá! — e acrescentou — Aí está um detalhe importante. — Sim, mas quem seriam os outros vultos que o flash arrancara do nada? Examinávamos com atenção, recebendo em troca o olhar vazio de suas fendas aveludadas. Pareciam atiradores de elite.

— Não adianta — suspirou Balthazar, e Nimrod desligou a máquina. Após um instante de completa escuridão a sala foi iluminada por uma lâmpada elétrica comum. A mesa de Nimrod estava coberta de páginas datilografadas à espera de assinaturas, o procès-verbal, sem dúvida. Sobre um quadrado de seda cinzenta, repousavam objetos diretamente relacionados com o que nos angustiava: o alfinete maciço, com sua horrenda pedra azul e o anel ebúrneo de minha amante, que nem mesmo então eu conseguia encarar sem sentir um aperto no peito.

— Assine aqui, por favor — pediu Nimrod, indicando uma página —, depois de ler. — Cobriu a boca para tossir e acrescentou em voz baixa: — E pode levar o anel.

Balthazar estendeu-me o anel. Estava frio, coberto por uma ligeira camada de pó para impressões digitais. Limpei o anel na gravata e guardei-o em meu casaco, no bolso do relógio.

— Obrigado — falei, e sentei-me diante da mesa para ler o relatório policial, enquanto os outros acendiam cigarros e conversavam em voz baixa. Ao lado das páginas datilografadas havia outra, escrita na caligrafia genérica e nervosa do general Cervoni. Era a lista de convidados para o baile de Carnaval, que ecoava a poesia majestosa dos nomes que tanto vieram a significar para mim, os nomes dos alexandrinos. Escute:

Pia dei Tolomei, Benedict Dangeau, Dante Borromeo, coronel Neguib, Toto de Brunel, Wilmot Pierrefeu, Mehmet Adm, Pozzo di Borgo, Ahmed Hassan Paxá, Delphine de Francueil, Djambulat Bey, Athena Trasha, Haddad Fahmy Amin, Gaston Phipps, Pierre Balbz, Jacques de Guéry, conde Banubula, Onofrios Papas, Dmitri Randidi, Paul Capodistria, Claude Amaril, Nessim Hosnani, Tony Umbada, Baldassaro Trivizani, Gilda Ambron...

Murmurei os nomes durante a leitura da lista, adicionando mentalmente a palavra "assassino" a cada um deles, apenas para ver se parecia encaixar. Somente quando cheguei ao nome de Nessim fiz uma pausa e olhei para a parede escura — para nela projetar sua imagem como se fosse mais uma fotografia a ser analisada. Ainda enxergava a expressão em seu rosto no momento em que o ajudei a entrar no carro — o rosto sereno e malicioso de alguém que descansa após ter gasto uma imensa dose de energia.

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