segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Uma Boneca

Por Paula Parisot

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Este não é o início da história.

Eu poderia dizer, como outros já disseram: a tragédia começou no dia em que nasci. Mas não é tão simples assim.

Às vezes a Baronesa Elisabeth Bachofen-Echt vem me visitar. Porém, o fato de ela não existir não me torna necessariamente uma louca. Porque, nesse caso, toda pessoa com imaginação seria louca.

Eu estava pronta para ir a uma festa com a Amanda. Havia até comprado um livro com a poesia completa de T. S. Eliot para o aniversariante. Sempre faço isso, presenteio as pessoas com as coisas que eu gostaria de ganhar.

"O tempo presente e o tempo passado/ Estão ambos talvez presentes no tempo futuro/ E o tempo futuro contido no tempo passado." Esses versos do T. S. Eliot não me saíam da cabeça. Desembrulhei o livro e, ao abri-lo, deparei com o poema Burnt Norton, dos Quatro Quartetos, cuja primeira frase é essa. Decidi ficar em casa e com o livro para mim. A edição que eu tinha estava em mau estado de tanto ter sido compulsada.

Telefonei para a Amanda e disse que não iria mais à festa com ela.

Tirei a roupa, que vestira especialmente para a festa, e as pulseiras. Removi a maquiagem observando o meu rosto no espelho do banheiro como se aguardasse uma resposta. Por um momento deixei de acreditar que existia, mas ver-me refletida me deu a certeza de que eu continuava viva. Contemplar a minha imagem me tranquilizou, ainda que aquele corpo, dentro do qual eu me abrigava, parecesse estranho. Reparei então nas cicatrizes no meu braço esquerdo e nos meus pulsos. Aceitei-as ao invés de repeli-las. Elas estabeleciam uma junção, uma união profunda comigo mesma.

De cada cem mil pessoas, 750 se ferem propositalmente de diferentes maneiras. Porém, elas não são loucas nem suicidas, conquanto algumas acabem se matando.

Volta e meia alguém me pergunta que cicatrizes são essas na parte superior do meu braço e nos meus pulsos. Por isso, raramente saio sem pulseiras e não gosto de usar camisa sem manga. Como as pessoas são perversas, fazem propositalmente perguntas constrangedoras fingindo uma ingênua curiosidade. E se você rechaça a pergunta te chamam de sem educação. Se diz a verdade - tentei me suicidar, desejei me ferir -, elas suspiram com uma falsa expressão de dó e se desculpam, sentindo-se superiores. Federico foi o único que riu e me deu dentadas bem de leve no pescoço, dizendo, "Bela, Bela, você é impossível".

Federico Sanchéz, meu colega de profissão, divide comigo o apartamento onde temos nossos consultórios. É cheio de vida, muito expansivo e bem articulado, apesar do sotaque portenho. Ele nasceu em Buenos Aires. Quando está feliz contagia a todos com a sua gargalhada eufórica. Beija, abraça e até morde as pessoas de excitação. Contudo, a sua alegria é ocasionalmente substituída pela depressão e pela ansiedade, o que faz a epiderme do seu cotovelo ficar ferida e descascar. Ele sofre de psoríase. Além de amigos, éramos amantes. No entanto, eu não era apaixonada por Federico e, por mais que o estimasse, não o amava.

É irritante descobrir que até eu abuso do verbo amar, esse verbo que pretende dizer tudo e não diz nada.

Já expliquei isso diversas vezes para uma das minhas analisandas, que apelidei de Madame Bovary, porque se chamava Emma como a personagem de Flaubert e era magra, pálida, de olheiras azuladas como, aliás, todas as heroínas tísicas dos romances franceses do século 19. Minha paciente, como a Bovary, certa vez se apaixonou, mas, assustada com a inesperada paixão extraconjugal, não teve coragem de trair o marido e se arrependeu. "Eu devia ter me entregado a ele", repetia sem parar. Eu sabia que, assim como aconteceu com Madame Bovary, não demoraria muito para que minha paciente fosse para a cama com o primeiro estranho que aparecesse. Eu, em silêncio, talvez a incentivasse, a traição quando secreta pode ser benéfica ao casamento. O traidor passa a sentir culpa e a tratar melhor o seu cônjuge.

A minha Emma Bovary também tinha ideias românticas sobre a vida, e em mais de uma ocasião me perguntou, "Todo mundo é capaz de amar?". Expliquei-lhe que todos somos capazes de transferir.

"Não sei o que significa o amor", insistiu a minha Madame Bovary.

"Ninguém sabe", respondi.

No meu aniversário de seis anos o meu avô paterno, um senhor esguio de poucas palavras, sussurrou no meu ouvido, "Vá até a varanda e fique escondida me esperando".

"Pode sair de trás das plantas", disse ele.

Agachada, olhei para o vovô, que me pareceu ainda maior. Ele ajoelhou ao meu lado. Ficamos quase da mesma altura. Então, sem dizer uma só palavra, ele me entregou uma caixa de plástico cilíndrica e transparente, amarrada com laços de fita. Vi através do plástico uma boneca cabeçuda de cabelos loiros cacheados. O corpo da boneca era minúsculo e ela trajava uma roupa prateada.

"Abre", falou.

Fiz o que ele mandou.

No pescoço da boneca havia um coração rosa com um dizer em letras vermelhas. Vovô leu em voz alta o que estava escrito no pingente: "Eu te amo".

"Não mostre o seu presente para ninguém. Essa boneca simboliza o amor."

"Mas, vovô, ela é feia."

"Você vai acabar achando ela bonita."

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Paula Parisot é escritora, autora do livro de contos A Dama da Solidão. Uma Boneca é um trecho de Gonzos e Parafusos, seu primeiro romance, que sairá em março pela editora Leya.

Do site da Revista Bravo.

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