segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Kalki

Por Gore Vidal

kalkidev 

 

MORGAN DAVIES ME LEVOU AO AEROPORTO na sua limusine com motorista. - Faz parte de meu contrato - afirmou orgulhoso. Ele vivia competindo com Clay Felker. Eu nunca soube o motivo.

Porém Morgan fora generoso comigo. Eu não estava mais falida. E também estava espantada. - Ainda não tenho pista alguma sobre Kalki. - Quando em dúvida, seja honesta. Não acreditarão em você.

- Achei que você tinha ido visitar aquele ashram em Santa Monica Boulevard.

- Ashram. Sim. Passei um dia lá. Todos eles acreditam que ele seja deus na terra. Mas ainda não sei por quê.
- E quanto a drogas?

- Não vi nada. Nem senti o cheiro de nada.

A experiência toda me deixara perplexa. Os discípulos de Kalki (os mandalis, como gostavam de ser chamados) estavam absolutamente convictos de que o fim do mundo chegara e que precisavam se purificar, não apenas através da oração, mas pela abstenção de carne, sexo, drogas e álcool, de modo a renascerem no próximo ciclo da humanidade. Os verdadeiramente santos se tornariam Iluminados como o Buda e alcançariam o Nirvana, que não é absolutamente nada.

- Isso realmente te agrada? - perguntei a Neil, um ex-professor de ginástica. Ele tinha cabelos ruivos nos antebraços, que faziam lembrar os das pernas de tarântulas. Não havia absolutamente nenhuma vibração entre nós. Estávamos sentados no que antes fora a sala de controle da rádio. Do outro lado da janela de blindex havia um grande estúdio, de onde costumavam transmitir orquestras sinfônicas. Agora o estúdio estava cheio de homens e mulheres de aspecto banal, com roupas de ginástica, blue jeans ou calções de banho. Cada um deles na posição de lótus da ioga. Um disco de George Harrison tocando cítara fornecia a música de fundo. A música em primeiro plano era de um sujeito numa túnica amarela. Cantava em sânscrito. Tive a mesma sensação de desânimo que tivera ao assistir a uma reunião de sensity training em Esalen, no ano anterior.

- Isso não vem ao caso. - Neil me exibiu um insípido sorriso cientológico. - Quero dizer, não precisa te agradar. Você é que precisa se conformar às normas, porque o show já terminou. E por isso que Kalki está aqui. A era do homem está prestes a terminar. Precisamos nos purificar. - Não era positivamente uma religião da esperança. Mas convenhamos, para sermos justos, o cristianismo jamais foi uma farra de foliões em relação ao aqui-e-agora.

Neil acompanhou-me até o meu carro. - Pode estar certa que eu te invejo, por conseguir conhecê-lo - disse ele. Eu lhe contara a respeito de minha missão.

- Alguma mensagem para ele? - perguntei, dando-lhe um divertido e radiante sorriso weisseano.

Porém Neil venceu o round. - Não se pode mandar uma mensagem para a mensagem. - Em seguida ele me deu um lótus branco de papel. - Isto - explicou ele franzindo a testa - é um símbolo de Nosso Senhor Vishnu. -Eu tinha razoável certeza de que ele aprendera a cantilena de orelhada, porque palavras-chaves como "símbolo" não lhe haviam sido evidentemente explicadas. - Que nasceu do lótus. Quando o lótus chegar a todos os homens, este mundo acabará. Tem também - acrescentou ele em sua entonação especial - um número impresso no interior de uma folha aí. Se seu número for escolhido, você poderá ganhar um prêmio em dinheiro. Por isso preste atenção aos jornais. Os prêmios em dinheiro estão sendo entregues desde agora até o fim. - Perguntei-lhe quando seria isso, mas Neil disse que não lhe haviam informado.

Observação cultural para historiadores futuros: o ânimo da maior parte do mundo no ano passado era escatológico. As coisas estavam em decadência e a entropia em pé de guerra. Em vista deste estado de espírito prevalecente, aquelas seitas que prometiam salvar algumas almas do desastre iminente gozavam de popularidade. Naquele dia no ashram em Santa Monica, cheguei à conclusão de que Kalki era uma espécie de Testemunha de Jeová hindu. Fiquei impressionada com a certeza, a felicidade e a estupidez de Neil. Delas são feitos os reinos da terra, quando não do céu. Kalki era um especulador astuto.

No aeroporto Morgan me beijou na boca. - Eu te amo - mentiu. - Chegue lá antes da CBS. É só o que eu quero, Teddy. - Morgan não era um sujeito ambicioso.

Ao sobrevoarmos o Havaí, senti um baque no assento a meu lado. Sentara-se um hindu - da Índia - alto, magro, idoso. Usava um terno escuro riscado. Deu-me um sorriso radiante. A fileira superior de seus dentes eram um branco como só o plástico consegue ser. A fileira de baixo era amarelada e irregular. O branco dos olhos era de um dourado pálido, enquanto a íris era de bronze escuro. Graças a H.V. Weiss, eu descrevo - e descrevo. Especialmente personagens importantes. Este será um personagem importante na minha história? Sim.

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