sexta-feira, 25 de junho de 2010

CORRIDA SELVAGEM

J.G. BALLARD

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Dos diários médico-legais do dr. Richard Greville, vice-consultor psiquiátrico da Polícia Metropolitana. 25 de agosto de 1988.


Por onde começar? Tanta coisa se escreveu sobre o Massacre de Pangbourne, como é hoje conhecido na imprensa popular em todo o mundo, que acho difícil encarar esse trágico acontecimento com uma visão clara. Nos últimos dois meses, houve tantos programas de televisão sobre os 32 moradores assassinados dessa luxuosa propriedade no oeste de Londres, e tanta especulação sobre o rapto dos seus filhos, que mal parece haver espaço mesmo para uma única nova hipótese.
Contudo, como me fez ver o secretário-permanente no Ministério do Interior hoje de manhã, praticamente nada se sabe sobre os motivos e identidade dos assassinos. - Digo “assassinos”, dr. Greville, mas pode ter sido apenas um. Disseram-me que algum tipo de fanático das artes marciais pode ter agido sozinho. - Sentado abaixo do retrato de seu mais ilustre antecessor, gesticulou de uma forma sombria. - E quanto ao paradeiro das crianças órfãs, desapareceram por alguma janela no tempo e espaço. Não há pedido de resgate, nem mesmo uma simples ameaça de matá-las...
Parecia quase ofendido, e eu comentei:

- Ainda assim, acho que devemos supor que estão vivas.

- Devemos? Para ser honesto, doutor, eu preferia que você não supusesse nada. Por isso o chamei aqui.
Olhou-me sem esperança, já lamentando a decisão. Como sabíamos os dois, o fato de eu haver sido chamado pelo Ministério do Interior, após meu impopular relatório minoritário sobre os assassinatos de Huengerford, era menos um elogio a mim que um comentário sobre o fracasso da polícia, do CID* e dos serviços de inteligência, não chegando sequer a uma pista solitária para as fontes desse horrível crime. Tão perplexo quanto o secretário-permanente, eu só podia pensar em pedir sua permissão para visitar o local dos assassinatos na Pangbourne Village. A luxuosa propriedade continuava lacrada para a imprensa e o público, mas fora pisoteada por um exército de investigadores pés-de-chumbo.
Esperei-o rabiscar um laissez-passer, meus braços carregados com duas pastas do Ministério do Interior cheias de arquivos na certa inúteis. Então me lembrei dos confortáveis assentos da sala de exibição no porão de Whitehall, e pensando melhor perguntei se podia ver o vídeo da polícia gravado em Pangbourne poucas horas depois do crime.

- O vídeo da polícia? Tudo bem, mas é uma coisa bastante sangrenta. Embora, depois de Hungerford, me atreva a dizer que você tem estômago para esse tipo de coisa, doutor…
Irritado com seu tom, quase recusei. Os figurões no Ministério do Interior e na Scotland Yard me encaravam como um perigoso “dissidente”, demasiado inclinado a pensar por si mesmo e capaz de produzir uma embaraçosa descoberta após outra. Mais tarde, olhando em retrospecto ao rever estes diários para publicação, percebo que foi ali, naquela sala de exibição deserta, que tive o primeiro vislumbre das verdadeiras causas do Massacre de Pangbourne. Fui incapaz de reconhecer o que via, e se no curso de minha investigação pareço demasiado lento na identificação dos culpados, só posso alegar que o que agora parece evidente por si mesmo dificilmente parecia na época. O meu não reconhecimento do óbvio, comum a quase todos os demais envolvidos, é uma medida do verdadeiro mistério do Massacre de Pangbourne

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