terça-feira, 27 de julho de 2010

Não Me Abandone Jamais

Kazuo Ishiguro

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Um trecho:

PRIMEIRA PARTE

Me chamo Kathy H. Tenho trinta e um anos e sou cuidadora há mais de onze. Tempo demais, eu sei, mas eles querem que eu fique mais oito meses, até o fim do ano. O que dará quase exatos doze anos de serviço. Sei que o fato de ser cuidadora há tanto tempo não significa necessariamente que meu trabalho seja considerado fantástico. Houve alguns ótimos cuidadores que receberam ordem de parar depois de dois ou três anos apenas. E eu conheço pelo menos um que ficou os catorze anos completos, apesar de ter sido um desperdício total de espaço. Portanto, minha intenção aqui não é me vangloriar. Mas não resta a menor dúvida de que eles estão satisfeitos comigo e de modo geral não tenho do que me queixar. Meus doadores sempre foram muito melhores do que eu esperava. Todos se recuperaram com uma rapidez impressionante e quase nenhum chegou a ser classificado como "agitado", nem mesmo antes da quarta doação. Muito bem, talvez eu esteja me vangloriando um pouco agora, admito. É que significa um bocado para mim poder dar conta direito do trabalho, sobretudo essa parte dos doadores continuarem "calmos". Desenvolvi uma espécie de instinto em relação a eles. Sei quando devo permanecer por perto oferecendo consolo e quando é melhor deixá-los em paz; quando escutar o que têm para falar e quando tão-somente encolher ombros e dizer-lhes que não se entreguem ao desânimo.

De todo modo, não estou reivindicando nada de muito grandioso para mim. Conheço cuidadores que trabalham tão bem quanto eu e que não recebem nem a metade dos créditos. Se você for um deles, entendo o motivo de possíveis ressentimentos — em relação a meu conjugado, meu carro e, acima de tudo, ao fato de eu mesma escolher os que vão ficar sob meus cuidados. Sem falar que sou de Hailsham — o que por si só muitas vezes é suficiente para deixar as pessoas de mau humor. Elas dizem, a Kathy H.? Ela escolhe o pessoal a dedo, e sempre da turma dela: gente de Hailsham ou de algum outro estabelecimento igualmente privilegiado. Não é à toa que ela tem uma ficha excelente. Nem sei quantas vezes já escutei isso, e posso imaginar que você ouviu muitas mais, de modo que talvez haja um fundo de verdade aí. Mas não fui a primeira a poder escolher, e duvido que seja a última. De qualquer forma, já fiz minha parte, cuidando de doadores trazidos de tudo quanto foi lugar. Até eu terminar meu serviço, não se esqueça, terei completado doze anos, e só nos últimos seis é que eles me deixaram escolher.

E por que não me deixariam? Cuidadores não são máquinas. Nós tentamos fazer o melhor possível para cada um dos doadores, mas no fim o serviço é exaustivo. Paciência e energia têm limite, e isso vale para todo mundo. De modo que quando surge a oportunidade de escolher, claro que você vai optar por pessoas semelhantes a você. Isso é natural. Eu não teria tido a menor condição de continuar fazendo o que faço durante tanto tempo se porventura deixasse de nutrir sentimentos pelos meus doadores em cada uma das etapas percorridas. Além do mais, se eu não tivesse obtido permissão de escolher, não poderia ter me reaproximado de Ruth e Tommy depois de tantos anos, não é mesmo?

Nos dias que correm, claro, há cada vez menos doadores conhecidos, o que significa que na prática não tenho escolhido tanto assim. E, como eu sempre digo, quanto menos ligação existe com o doador, mais difícil fica fazer o serviço; portanto, mesmo que eu sinta falta de ser cuidadora, acho correto dar finalmente por encerradas minhas atividades no final do ano.

Ruth, por falar nisso, foi apenas a terceira ou quarta doadora que pude escolher. Já havia uma cuidadora designada para ela, na época, e lembro-me que foi preciso uma certa dose de coragem de minha parte. Mas no fim dei um jeito, e assim que a vi de novo, naquele centro de recuperação de Dover, nossas diferenças — ainda que não tivessem exatamente sumido do mapa — não me pareceram nem de longe tão importantes quanto tudo o mais: o fato de termos crescido juntas em Hailsham, o sabermos e nos lembrarmos de coisas que ninguém mais sabia ou das quais ninguém mais se lembrava. Foi dessa época em diante, imagino, que comecei a buscar nos doadores pessoas conhecidas no passado e, sempre que possível, de Hailsham.

Houve épocas, no decorrer desses anos todos, em que tentei esquecer Hailsham e me convencer de que não seria bom ficar olhando tanto para trás. Porém num determinado momento simplesmente parei de resistir. E isso teve a ver com um doador em particular, de quem tomei conta certa feita, no meu terceiro ano como cuidadora; com a reação dele quando comentei que era de Hailsham. Ele tinha acabado de sair da terceira doação, que não dera muito certo, e já devia saber que não iria se safar. Embora mal conseguisse respirar, me olhou e disse: "Hailsham. Aposto como era um lugar lindo". Na manhã seguinte, batendo um papinho na tentativa de distraí-lo daquilo tudo, perguntei de ondeele era; o doador mencionou algum lugar em Dorset e sua expressão, por baixo da pele manchada, passou a um tipo bem diferente de esgar. Foi então que caí em mim e percebi a vontade imensa que ele tinha de não se lembrar de nada. Tudo o que ele queria era que eu falasse de Hailsham.

Portanto, durante os cinco ou seis dias que se seguiram, contei-lhe tudo o que ele quis saber, enquanto, do leito, ele me ouvia fascinado, com um leve sorriso nos lábios. Falei dos nossos guardiões, das caixas com as coleções que eram guardadas debaixo da cama, do futebol, das partidas de rounders, do caminho estreito que contornava todos os cantos e recantos externos do casarão, do lago com os marrecos, da comida, da vista que tínhamos das janelas da Sala de Arte pela manhã, com os campos cobertos de bruma. Às vezes ele me fazia repetir vezes sem conta a mesma coisa; algo que eu mencionara no dia anterior voltava a ser alvo de perguntas, como se ele nunca tivesse escutado uma única palavra sobre o assunto. "Vocês tinham um pavilhão de esportes?" "Quem era seu guardião predileto?" De início, pensei que fosse apenas efeito dos remédios, mas depois me dei conta de que ele estava bem lúcido. Mais do que ouvir falar de Hailsham, ele queria se lembrar de Hailsham como se Hailsham tivesse pertencido a sua própria infância. Sabia que estava perto de concluir, de modo que me fazia descrever as coisas de forma que elas penetrassem de fato em sua lembrança. A intenção dele, talvez— durante as noites insones devido aos remédios, à dor e à exaustão —, era tornar indistintos os contornos que separavam as minhas memórias das suas. Só então compreendi, compreendi de fato, quanta sorte tivéramos — Tommy, Ruth, eu, na verdade todos nós.

Ainda hoje, dirigindo pelas estradas do interior, vejo coisas que me fazem lembrar de Hailsham. Às vezes, passando por um trecho sob neblina ou descendo a encosta de algum vale, ao divisar parte de um casarão ao longe, e até mesmo quando vislumbro o desenho formado por um grupo de choupos plantados no alto de um morro, logo me ocorre pensar: "Talvez seja ali! Achei o lugar! Aquilo é Hailsham, só pode ser!". Depois percebo que é impossível e sigo adiante, com os pensamentos vagando por outras paragens. Em especial, há os pavilhões. Vejo-os por todo o interior, sempre erguidos ao lado de um campo de esportes — pequenas construções pré-fabricadas, pintadas de branco, com uma fileira de janelas numa altura absurda, bem lá em cima, enfiadas quase debaixo dos beirais. Acho que eles devem ter construído um monte desses pavilhões nos anos 50 e 60, época em que muito provavelmente também construíram o nosso. Toda vez que passo perto de um, olho comprido para ele durante o tempo que for possível, e qualquer dia ainda vou causar um acidente por causa disso, mas não consigo evitar. Não faz muito tempo, eu rodava por um trecho deserto de Worcestershire e vi um, ao lado de um campo de críquete, tão parecido com o nosso em Hailsham que cheguei até a fazer o retorno e voltar para dar uma segunda olhada.

Adorávamos nosso pavilhão de esportes, talvez porque nos trouxesse à mente aquelas deliciosas casinhas que apareciam em tudo quanto era livro ilustrado, quando éramos crianças. Lembro-me de nós, ainda nos anos Júnior, implorando aos guardiões para que dessem a aula seguinte lá, e não na sala habitual. Mais tarde, quando cursávamos o Sênior 2 — quando tínhamos doze para treze anos —, o pavilhão se tornou nosso esconderijo predileto, nosso e dos nossos amigos mais íntimos, quando queríamos fugir de tudo e de todos em Hailsham.

O pavilhão era suficientemente grande para abrigar dois grupos distintos sem que um incomodasse o outro — no verão, um terceiro grupo podia ficar na varanda. Mas o ideal é que você e seus amigos ficassem com o lugar só para si, de modo que era muito freqüente haver discussões e empurra-empurra. Os guardiões viviam nos dizendo para agirmos com civilidade a respeito, mas na prática era preciso contar com personalidades fortes no grupo para ter alguma chance de conseguir exclusividade no pavilhão durante um recreio ou um período livre. Eu própria não era do tipo franzino, mas desconfio que foi de fato graças a Ruth que conseguimos nos reunir lá com a freqüência com que nos reuníamos.

Em geral não fazíamos mais que nos aboletar nas cadeiras e nos bancos — éramos cinco, seis quando Jenny B. ia junto — e bisbilhotar sobre a vida alheia. Havia um tipo de papo que só tinha possibilidade de acontecer quando estávamos escondidas lá no pavilhão; só então podíamos conversar sobre alguma coisa que estivesse nos preocupando, assim como também podíamos acabar às gargalhadas ou num arranca-rabo danado. Na maior parte das vezes, era uma forma de descontrair um pouco, ao lado das amigas do peito.

Nessa determinada tarde à qual me refiro agora, estávamos em pé sobre banquinhos e bancos, amontoadas em volta das janelas altíssimas. Isso nos dava uma visão muito boa do Campo de Esportes Norte, onde cerca de doze meninos, do nosso ano e do Sênior 3, se preparavam para jogar futebol. O tempo estava claro, mas devia ter chovido pouco antes, porque me lembro da luz do sol cintilando na superfície da relva enlameada.

Alguém comentou que não devíamos espiar daquela maneira assim tão óbvia, mas nós mal recuamos da janela. E então Ruth falou: "Ele não desconfia de nada. Olha só para ele. Ele de fato não desconfia de nada".

Quando Ruth disse isso, olhei para ela em busca de algum sinal de reprovação ao que os meninos iriam fazer com Tommy. Mas no segundo seguinte Ruth deu uma risadinha e falou: "Idiota!".

Percebi então que para Ruth e para as outras qualquer coisa que os meninos resolvessem fazer não nos dizia respeito em absoluto; nossa aprovação não vinha ao caso. Estávamos reunidas em volta das janelas naquele momento não porque ansiássemos por ver Tommy ser humilhado de novo, e sim porque simplesmente tínhamos ouvido falar do complô mais recente e sentíamos uma leve curiosidade de acompanhar sua concretização. Naquele tempo, acredito que os assuntos particulares dos meninos mal arranhavam a superfície das nossas preocupações. Para Ruth e para as outras, a distância entre eles e nós era enorme, e é bem provável que eu visse as coisas sob esse mesmo prisma.

Ou talvez essa minha lembrança esteja meio equivocada. Pode ser que já na época, ao ver Tommy correndo pelo campo com aquela sua indisfarçável expressão de deleite no rosto por ter sido aceito de volta, prestes a participar do jogo em que era tão bom, eu tenha sentido uma pequena pontada de dor. O fato é que me lembro muito bem de ter reparado na camisa que ele usava, comprada no Bazar do mês anterior, uma pólo azul-clara da qual tinha o maior orgulho. Lembro-me de ter pensado: "O Tommy é muito burro mesmo, vindo jogar futebol com ela. Vai ficar imprestável, e aí então como é que ele vai se sentir?". Em voz alta, eu disse, para ninguém em especial: "O Tommy está com aquela camisa. A pólo preferida dele".

Não creio que alguém tenha me escutado, porque estavam todas rindo de Laura — a grande palhaça do grupo —, que imitava, uma após a outra, as expressões que surgiam no rosto de Tommy enquanto ele corria, gesticulava, gritava, chutava. Os outros meninos todos se movimentavam pelo campo naquele ritmo propositadamente lânguido de quem está fazendo o aquecimento, mas Tommy, na sua emoção, parecia já estar em plena partida. E eu então disse, um pouco mais alto que da última vez: "Ele vai ficar tão chateado se estragar aquela camisa". Dessa vez, Ruth me ouviu, mas deve ter pensado que eu estava fazendo algum tipo de piada, porque riu de um jeito meio forçado e logo em seguida fez algum gracejo.

Àquela altura os meninos já haviam parado de chutar a bola e estavam todos reunidos, imóveis no campo enlameado, com o peito arfando para cima e para baixo, suavemente, enquanto esperavam o início da escalação. Os dois capitães que surgiram eram do Sênior 3, embora todo mundo soubesse que Tommy jogava melhor do que qualquer um deles. Em seguida foi feita a primeira escolha e o vencedor encarou o grupo.

"Olha só para ele", falou alguém atrás de mim. "Ele tinha certeza absoluta de que ia ser o primeiro escolhido. Olha só para ele!"

De fato, havia algo de cômico na expressão de Tommy naquele momento, algo que fazia você pensar, bem, de fato, se ele vai se comportar de forma assim tão tola então bem-feito, ele merece o que está por vir. Os outros meninos fingiam não estar dando a mínima para o processo de escolha, fingiam não se incomodar com os respectivos lugares na escalação dos times. Alguns conversavam baixinho com os colegas, outros reajustavam o laço dos cadarços e alguns apenas fitavam os pés, amassando o barro. Tommy, porém, olhava ansiosamente para o menino do Sênior 3 como se seu nome já tivesse sido chamado.

Laura continuou seu teatro durante toda a escalação, imitando as diferentes expressões que passavam pelo rosto de Tommy: a animada ansiedade do início; a preocupação aturdida depois de quatro escolhas sem que seu nome tivesse sido chamado; a mágoa e o pânico quando começou a desconfiar do que estava de fato acontecendo. Eu porém não via muito bem o que Laura fazia porque estava vigiando Tommy; só sei das palhaçadas dela porque as outras não paravam de rir e de incentivá-la a prosseguir. E então, depois de Tommy ter sido largado sozinho em campo, enquanto os outros meninos disfarçavam a risada, ouvi Ruth dizer:

"Chegou a hora. Segurem firme. Sete segundos. Sete, seis, cinco..."

Ela nem precisou terminar. Tommy explodiu num berreiro infernal e os meninos, que já então riam abertamente, começaram a correr na direção do Campo de Esportes Sul. Tommy deu alguns passos atrás do bando — difícil dizer se o instinto lhe dissera para ceder ao ímpeto e sair em perseguição raivosa ou se havia entrado em pânico por ter sido deixado para trás. De um modo ou de outro, estacou logo em seguida e ficou ali fuzilando os jogadores com olhares irados, o rosto escarlate. Depois começou a berrar e xingar — ma barafunda incoerente de palavrões e insultos.

Já tínhamos assistido a suficientes acessos de Tommy, àquela altura, de modo que descemos dos nossos banquinhos e nos espalhamos pelo salão. Tentamos conversar sobre outras coisas, mas Tommy não parava de fazer escarcéu lá fora e, apesar do esforço inicial para ignorá-lo, com algumas reviradas de olho, ao fim e ao cabo — é provável que bem uns dez minutos depois de descermos dos banquinhos —, estávamos de volta às janelas.

Não dava mais para ver os outros meninos e os comentários de Tommy já não eram endereçados a ninguém em particular. Ele se limitava a rugir e agitar os braços para lá e para cá, para o céu, para o vento, para o mourão de cerca mais próximo. Laura disse que talvez estivesse "ensaiando seu Shakespeare". Uma outra chamou a atenção para o jeito como ele erguia um pé do chão, apontando-o para fora, "feito um cachorro fazendo xixi". Na verdade, eu já tinha reparado nesse movimento dele, mas o que me preocupava era que toda vez que ele batia o pé no chão respingava barro na canela. Pensei outra vez em sua preciosa camisa, mas havia uma boa distância entre nós e não dava para eu ver se ela também estava muito salpicada de barro.

"Imagino que seja meio cruel", Ruth disse, "o jeito como eles provocam o Tommy. Mas a culpa é toda dele. Se aprendesse a manter a calma, todo mundo deixaria ele sossegado."

"Eles continuariam a provocá-lo do mesmo jeito", disse Hannah. "O Graham K. é tão enfezado quanto o Tommy, mas isso só faz as pessoas tomarem o maior cuidado ao lidar com ele. As pessoas pegam tanto no pé do Tommy porque ele é um vadio."

Logo depois estavam falando todas ao mesmo tempo, comentando que Tommy nunca nem tentava ser criativo, que ele não apresentara nada para a Permuta de Primavera. Desconfio que, àquela altura, a verdade é que todas nós torcíamos em segredo para que algum guardião aparecesse e tirasse Tommy dali. Embora não tivéssemos participado daquele último plano para irritar Tommy, havíamos ocupado nossos assentos na primeira fila da arena e estávamos começando a nos sentir culpadas. Entretanto não houve nem sinal de guardião, de modo que continuamos a desfiar motivos para explicar por que Tommy merecia tudo o que lhe acontecia. Porém na hora em que Ruth olhou o relógio e disse que, embora ainda restasse um tempinho, seria melhor voltarmos, ninguém levantou objeções.

Tommy continuava a plenos pulmões quando saímos de lá. O casarão ficava à esquerda e, uma vez que ele se achava parado no meio do campo, bem na nossa frente, não havia necessidade de passar perto. Mesmo porque ele estava de costas e, pelo visto, nem se dera conta da nossa presença. Eu, porém, enquanto minhas amigas seguiam contornando o campo de esportes, fui me desviando na direção dele. Sabia que elas ficariam intrigadas, mas continuei indo — mesmo quando escutei a voz de Ruth me dizendo, num cochicho urgente, que voltasse.

Desconfio que Tommy não estava acostumado a ser interrompido durante seus acessos, porque a primeira reação dele quando me aproximei foi olhar fixamente para mim durante um segundo antes de retomar o berreiro. Era como se estivesse interpretando alguma coisa de Shakespeare e eu tivesse entrado no palco durante a apresentação. Mesmo quando falei: "Tommy, sua camisa boa. Você vai estragar ela toda", não obtive o menor sinal de que havia me escutado.

De modo que estendi a mão para tocar seu braço. Mais tarde as outras meninas diriam que ele tinha feito de propósito, mas eu tinha certeza absoluta de que não fora por querer. Seus braços continuavam se agitando para lá e para cá e não havia como ele saber que eu iria tocá-lo. De todo modo, ao erguer o braço, ele empurrou minha mão para o lado e me atingiu na lateral do rosto. Não doeu nada, mas deixei escapar uma exclamação de surpresa, assim como a maioria das meninas.

Foi nesse momento que Tommy finalmente se deu conta de mim, das outras meninas, de si mesmo, do fato de estar ali no meio do campo se comportando daquela maneira, e me olhou com uma expressão meio idiota no rosto.

"Tommy", eu disse, com bastante severidade. "Tem barro na sua camisa toda."

"E daí?", ele resmungou. Mas, mesmo enquanto pronunciava isso, baixou os olhos, reparou nos salpicos marrons e por pouco não soltou um grito de alarme. Foi então que reparei na expressão de surpresa estampada em seu rosto por eu saber de seus sentimentos pela camisa pólo.

"Não fique preocupado com o barro", eu disse, antes que o silêncio se tornasse humilhante demais para ele. "Isso sai. Se não conseguir tirar você mesmo, leve para Miss Jody."

Ele continuou examinando a camisa, depois disse, mal-humorado: "Além do mais, isso não é da sua conta".

A impressão que eu tive foi que Tommy se arrependeu na hora desse último comentário. Ele me olhou todo encabulado, como se esperasse de mim alguma palavra de conforto. Mas eu já tivera uma dose mais que suficiente de Tommy para um só dia, sobretudo com as meninas me vigiando, e — e até onde me era dado saber — com uma quantidade bem maior de gente me espiando das janelas do casarão. De modo que dei as costas com um gesto de pouco-caso e fui para perto de minhas amigas.

Ruth pôs o braço em volta dos meus ombros quando nos afastamos. "Pelo menos você conseguiu fazer com que ele baixasse a bola. Você está bem? Criatura mais louca."

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