sexta-feira, 12 de novembro de 2010

CINEMA E LITERATURA

Rubem Fonseca

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Os jovens, da minha geração, queriam ser poetas. Mas alguns sonhavam com a poesia porque o cinema era um sonho que parecia impossível. Hoje os jovens sonham, e se realizam, com o cinema. Eu sempre gostei de cinema, mas tornei-me apenas um cinéfilo. Só fui me envolver com essa atividade depois de ter escrito duas dúzias de livros. Mas o meu envolvimento tem sido como roteirista, não obstante eu deva confessar que gostaria também de ser diretor.
Já escrevi roteiros baseados em romances ou contos meus – A grande arte, O caso Morel, que infelizmente não foi terminado; Bufo&Spallanzani; Relatório de um homem casado e acabo de escrever o roteiro de Diário de um fescenino. Já escrevi roteiros originais (Stelinha, A extorsão) e, finalmente, escrevi roteiros baseados em romances dos outros – O homem do ano, baseado no livro O matador, de Patrícia Melo e dirigido por José Henrique Fonseca.
O que foi mais difícil?
O mais difícil é fazer um roteiro baseado em obra literária já publicada, como no caso de O homem do ano. Até nos casos em que eu mesmo havia escrito a obra literária, como Bufo&Spallanzani, o roteiro foi mais difícil de escrever. Se vocês perguntarem ao Jean-Claude Carrière, que já escreveu dezenas de roteiros, o que foi mais trabalhoso e difícil de fazer, o roteiro de The unbearable lightness of being, baseado no livro de Milan Kundera, ou o roteiro original de Le charme discret de la bourgeoisie, ele responderá que foi o roteiro baseado no romance do Kundera.  
Um roteiro é escrito várias vezes. Isso, aliás, é comum na feitura de textos literários em geral, principalmente na poesia. (Um poema nunca termina de ser escrito, ele é abandonado, como disse Valèry, o que vale para os textos literários também). Consta que Platão escreveu a primeira frase de A república cinqüenta vezes. Flaubert ficou trinta anos escrevendo A tentação de santo Antonio. Poderia citar dezenas de exemplos dessa fúria revisória, nos vários gêneros literários, mas toda citação excessiva de nomes, até em textos acadêmicos, é uma chatice.
Com os roteiros cinematográficos ocorre a mesma coisa, a diferença é que além do autor do roteiro, outras pessoas participam dessa revisão, quase sempre o diretor do filme, notadamente aqui no nosso país, e também o produtor. Isso aconteceu comigo, quando trabalhei, entre outros, com os Tambellini (pai e filho, em épocas diferentes), a Suzana Amaral, o Walter Salles, o Miguel Faria, e, mais recentemente, com o José Henrique Fonseca.
O que queremos todos nós envolvidos nesse processo?  Os mais pretensiosos (e todo aquele que quer criar alguma coisa deve ser "pretensioso", buscar o seu nível de excelência) querem realizar uma obra de arte. Wagner quando compôs suas óperas almejava alcançar aquilo que ele denominava Gesamtkunstwerk – a obra de arte completa, que englobasse a música, a poesia e o drama, a pintura, a arquitetura, a dança. Estávamos no século XIX e se alguma arte poderia megalomaniacamente dizer isso era a ópera.
Já existia uma coisa chamada "lanterna mágica", que havia surgido no século XVII, um foco de luz que iluminava placas de vidro pintadas à mão. Essas imagens eram projetadas numa parede branca e os temas representados estavam ligados à religião. Chamava a atenção tanto de adultos como de crianças. Certamente não era a Gesamtkunstwerk apregoada por Wagner.
Demorou algum tempo até que os irmãos Lumière – August e Louis – no fim do século XIX, 1895, criassem o cinematógrafo, uma espécie de ancestral da filmadora, movido a manivela, utilizando negativos perfurados para registrar o movimento. O cinematógrafo tornou possível a projeção de imagens para o público. Eram imagens em movimento, não aquela coisa parada da lanterna mágica.
Há mais de cem anos, em 28 de dezembro de 1895, ocorreu a primeira exibição pública das obras dos Lumière, no Grand Café, de Paris – A saída dos operários das usinas Lumière, A chegada do trem na estação, O almoço do bebê, O mar foram alguns dos filmes apresentados, que deixaram os espectadores atônitos. As produções eram rudimentares, e, como vimos, documentários curtos sobre a vida quotidiana, de dois minutos de projeção, filmados. A apresentação pública do cinematógrafo marcou oficialmente o início da história do cinema. Porém faltava uma coisa muito importante – o som.  Que somente apareceu três décadas depois, no final dos anos 20.
O invento dos Lumière se desenvolveu. Os cineastas, além dos documentários, partiram para a ficção. Surgiram Max Linder (que teria inspirado Chaplin) e outros comediantes, em vários paises. O americano Edwin S. Porter, em 1903, apresenta um trabalho pioneiro em a Vida de um bombeiro americano e, com O grande roubo do trem, inaugura o western.
Despontam então dois grandes nomes dos primórdios do cinema: George Meliés e David Griffith. Meliés nasceu na França em 1861 e morreu em 1938. Meliés foi um pioneiro na utilização de figurinos, atores, cenários e maquiagem, opondo-se ao estilo documentarista. Realizou os primeiros filmes de ficção, Viagem à lua e A conquista do Pólo, em 1902. O outro precursor é David Griffith, nascido nos Estados Unidos em 1875, onde morreu em 1948. No cinema foi o primeiro a tirar a câmera do tripé e a usar a montagem de uma maneira dinâmica e criativa. Com The birth of a nation (O nascimento de uma nação), de 1915, abriu caminho para a criação da indústria cinematográfica americana. (Dizem que Griffith visualizou o filme inteiro em sua mente e não escreveu um roteiro nem fez quaisquer anotações, mas eu não acredito nisso. Esta sentença "uma idéia na cabeça e uma câmera na mão" é responsável por muita porcaria.) Com Intolerância, de 1916, Griffith fortaleceu o impulso dado com The birth...
Começaram a chamar o cinema de a Sétima Arte. Havia sido encontrada a almejadaGesamtkunswerk do Wagner? Sim? Não?
Não. O cinema era mudo, não tinha a poesia dos textos falados, nem a música, essas formas de arte da maior importância. Como poderia arrogar-se o direito àGesamtkunstwerk? Era um excesso de (bem-vinda) pretensão.
As primeiras experiências de sonorização, feitas por Thomas Edison, em 1889, são seguidas por Auguste Baron (1896) e por Henri Joly (1900), mas os seus sistemas ainda tinham sérias falhas de sincronização imagem-som. O aparelho do americano Lee de Forest, de gravação magnética em película (1907), que permitia a reprodução simultânea de imagens e sons, foi adquirido em 1926 pela Warner Brothers. A companhia produziu o primeiro filme com música e efeitos sonoros sincronizados – Don Juan, de Alan Crosland, e o primeiro com passagens faladas e cantadas, O cantor de jazz (1927), também de Crosland, com Al Jolson, grande nome da Broadway. E ainda o primeiro inteiramente falado, Luzes de Nova York, de Brian Foy (1928). No ano seguinte, 1929, o cinema falado já representava 51% da produção americana. Outros centros, notadamente França, Alemanha, Suécia e Inglaterra começaram a explorar o som. A partir de 1930, Rússia, Japão, Índia e os países da América Latina recorrem à nova descoberta. A adesão de quase todas as produtoras ao novo sistema abalou convicções, causou o afastamento de atores e diretores. A linguagem cinematográfica teve que ser reformulada. Diretores importantes, como Charlie Chaplin e René Clair, entre outros, resistiram, dizendo que o cinema não precisava da fala dos artistas. Mas os dois acabaram aderindo, como sabemos, não obstante o cinema falado de Chaplin seja muito inferior ao que ele fazia antes. Alguns de seus filmes, como A Countess from Hong Kong (1967)  eA King in New York (1957) são extremamente decepcionantes.
Durante a I Guerra Mundial, a produção de filmes concentra-se em Hollywood, na Califórnia, onde surgem os primeiros grandes estúdios. Dos anos 1930 até hoje a maior parte da produção mundial converge para Hollywood, mas muitos centros espalhados por todos os continentes produzem obras que merecem destaque.
Afinal, o que é o cinema, hoje? É chamado de a sétima arte, o que é correto. Mas ainda não podemos chamar o cinema de Gesamtkunstwerk, obra de arte completa. O cinema é, por enquanto, uma arte híbrida. E o problema principal é que o filme depois de algum tempo fica "datado", um bom filme antigo não é fruído com a mesma admiração, como ocorre com as outras boas obras de arte. Pode-se ouvir Mozart, ou reler o Dom Quixote, ou contemplar a capela Sistina com o mesmo prazer da primeira visita. No cinema, um filme antigo, com algumas raras exceções, pode ser visto apenas como curiosidade histórica. (Há casos de sofisticados cinéfilos que gostam e revêem filmes antigos, descobrindo novidades neles). Essa datação que o cinema sofre me parece ser o problema que exige que a sétima arte, ou "the industry", como os americanos a definem, seja um objeto de consumo renovado incessantemente. Pensem nisso, meus leitores do Portal Literal.
Para finalizar este artigo que já se estendeu demasiadamente, quero abordar a adaptação cinematográfica de obras literárias.
Antes de mais nada devo dizer que escrever para o cinema é diferente de qualquer outra forma de expressão escrita. Os elementos visuais são tão importantes quanto as descrições e diálogos. Como o investimento é muito grande, o roteiro tem que ser do agrado do produtor. E, como disse acima, o diretor também sempre interfere e o roteiro sempre passa por diferentes tratamentos, que levam em consideração uma porção de aspectos, um deles, talvez o mais importante, a aprovação do público. O escritor de ficção não tem que se incomodar com isso. Contudo, sem a imaginação dos roteiristas, boas histórias nunca são contadas no cinema. O cineasta e teórico russo Lev Vladimirovich Kulechov, que introduziu a arte da montagem, afirma em seu livro A arte do cinema que cinema é basicamente argumento e montagem, ou seja, as duas figuras mais importantes do filme são o roteirista e o montador. Eu concordo com ele, quanto à importância fundamental do roteirista, mas acredito que a figura do diretor é ainda mais importante. Reconheço que o cinema é, como diz a propaganda, "a maior diversão", que o cinema é a sétima arte. Ainda que não seja a obra de arte total é uma arte que usa as outras artes como suportes, da melhor maneira possível.
Mas, apenas para provocar, faço a seguinte pergunta: O que é mais importante como Arte, a palavra escrita – poesia, ficção, teatro – ou o cinema? Qual das duas pode atingir um nível de excelência mais elevado?
Que tal, apenas como exercício, compararmos as vantagens da literatura e as do cinema? Vamos, brevemente, examinar isso.
Vantagens da literatura:
1 - Polissemia e participação criativa. O David Neves, quando resolveu filmar a minha história Lúcia McCartney, disse-me que tinha a Lúcia "perfeita, exatamente como você a descreve no livro" e marcou um almoço nosso. A Lúcia, "exatamente como eu a descrevia no livro", segundo o David, era a Adriana Prieto, uma mulher jovem de cabelos louros, olhos azuis, lábios finos, um rosto bonito que lembrava as atrizes européias nórdicas. "Não é igualzinha?", perguntou o David. Evitei responder. Na verdade eu não descrevo a Lúcia na minha história, ela pode ser branca, mulata, negra, magra ou gorda. Porque essa é a grande riqueza da literatura, a participação do leitor, que preenche as lacunas deixadas pelo autor, do leitor que  usa a sua imaginação recriando a história que leu, reinventando os personagens. O cinema não permite isso. A Lúcia era, axiomaticamente, uma linda e elegante mulher loura de olhos azuis. O espectador não precisava (nem podia) usar a sua imaginação. O leitor compartilha do livro não apenas estética e emocionalmente, ele tem uma participação criativa. Ele sempre "reescreve" o livro, à sua maneira.
2 - Permanência. Vejam que tipo de reação despertam os filmes clássicos, Grifith, e outros. Eles ficam "datados".
3 - O filme necessita da palavra escrita, até o cinema mudo precisava. Lembram-se de Kulechov – argumento e montagem?
4 – Literatura é tão importante que diretores do mainstream, como Scorsese, Spielberg e outros, aconselham os diretores a lerem, por considerarem a leitura importante para o trabalho que realizam. Nenhum escritor aconselha outros escritores a irem ao cinema, por ser importante para o trabalho que fazem. Há uma frase interessante do escritor Gore Vidal que, além de romancista famoso escreveu vários roteiros. Vidal afirma: "Cinema é roteiro. Uma coisa é certa: o roteiro é fundamental para o filme. Assim como para o corpo humano uma boa e simétrica estrutura óssea é que vai permitir ao corpo ser bonito e atraente, no cinema isso é feito pelo roteiro". Cinema é argumento e montagem, estou repetindo Kulechov. Chaplin usava menos de dez por cento do que ele filmava, o resto era cortado na sala de montagem.
Vantagem do cinema:
Tem que haver uma razão para a popularidade do cinema.
Com exceção de alguns poucos ensaístas franceses rabugentos, não me lembro de nenhum escritor, músico, pintor que não goste de cinema, todo mundo gosta de cinema. Talvez porque, mesmo tendo por enquanto falhado em tornar-se aGesamtkunstwerk wagneriana, é a arte que mais se aproxima desse ideal, e talvez, um dia, venha a deixar de ser uma arte apenas híbrida para tornar-se uma arte completa.
Concluo, agora realmente, fazendo uma relação, breve – e arbitrária evidentemente – de filmes melhores e filmes piores do que a obra literária.
Alguns filmes melhores do que o livro:
Gone with the Wind ou E o vento levou. O filme dirigido por Victor Fleming é melhor do que o romance da Margareth Mitchell.
The Godfather. O filme de Francis Ford Coppola é melhor do que o livro do Mario Puzzo, do mesmo nome. 
Blade Runner. O filme de Ridley Scott é melhor do que o livro do criativo Philip K. Dick, Do Androids Dream of Electric Sheep? no qual se baseia. (Não usaram o nome do livro porque, para os produtores, não devia ser muito comercial).
Filmes piores do que o livro:
Eles são tantos, os filmes piores do que os livros, que seria cansativo arrolar todos aqui. Todos os filmes baseados em Homero, Proust, Kafka, Joyce (com uma ressalva), Tolstoy, Tchecov, Remarque, Victor Hugo, Poe, Thomas Mann, Hemingway, Fitzgerald, não importa a categoria literária, pode até ser romance policial como os de Wilkie Collins, Raymond Chandler, Dashiell Hammett são inferiores ao original literário.
Como sempre, existem exceções, filmes que mantêm o mesmo nível do original literário, como Berlin Alexanderplatz (Alfred Döblin/Fassbinder), The Dead(Joyce/Huston – a ressalva que fiz acima), entre outros.
Essas listas de filmes ocupariam um montão de páginas. Meus leitores do Portal Literal que façam as deles.

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