terça-feira, 20 de março de 2012

TRECHO Crimes

Ferdinand Von Schirach

schirach, ferdinand von

Fähner
Friedhelm Fähner passara a vida inteira como clínico geral em Rottweil; 2.800 consultas por ano, consultório na rua principal, presidente do Centro Cultural Egípcio, membro do Lions Club, sem antecedentes criminais ou sequer pequenos desvios de conduta. Além da sua casa, tinha outros dois imóveis alugados, um Mercedes Classe E com três anos de fabricação, estofamento de couro e ar-condicionado, cerca de 750 mil euros em ações e obrigações do tesouro e um seguro de vida. Fähner não tinha filhos. Seu único parente ainda vivo era a irmã seis anos mais nova, que vivia com o marido e dois filhos em Stuttgart. A vida de Fähner realmente nada tinha de interessante.
Exceto o caso Ingrid.
Aos 24 anos, Fähner conhecera Ingrid no 60º aniversário de seu pai, que também fora médico em Rottweil.
Rottweil é uma cidade essencialmente burguesa. O estrangeiro que chega não precisa perguntar para saber que a cidade foi fundada pelos Staufer e é a mais antiga do estado de Baden-Württemberg. Com efeito, pode-se encontrar aqui fachadas medievais e lindos brasões do século XVI. Os Fähner sempre viveram aqui. Pertenciam às chamadas primeiras famílias, gerações de conceituados médicos, juízes e farmacêuticos.
Friedhelm Fähner se parecia com o jovem John F. Kennedy. Tinha um rosto afável, e todos o consideravam uma pessoa despreocupada, de bem com a vida. Olhando cuidadosamente, no entanto, percebia-se um quê de tristeza em sua fisionomia, algo de velho e sombrio que não se vê com muita frequência por estas bandas, entre a Floresta Negra e os Alpes da Suábia.
Os pais de Ingrid, farmacêuticos em Rottweil, levaram sua filha à festa de aniversário. Três anos mais velha do que Fähner, ela exibia uma pujante beleza provinciana e seios fartos. De olhos azulados, cabelos negros e pele muito clara, tinha consciência da impressão que causava. Sua voz metálica, de tom singularmente elevado e monocórdio, irritava Fähner. Mas, quando falava baixo, suas palavras soavam como uma melodia.
Não chegara a concluir o ensino médio e trabalhava como garçonete. “Temporariamente”, disse ela a Fähner. Isso não lhe importava. Em outras áreas que mais lhe interessavam, ela já era formada. Até então, Fähner tivera apenas dois breves contatos sexuais com mulheres, que só lhe haviam trazido insegurança.
Imediatamente apaixonou-se por Ingrid.
Dois dias após a festa, ela o seduziu, na volta de um piquenique.
Debaixo de uma marquise, Ingrid deu conta do recado com perfeição. Fähner ficou tão perturbado que, uma semana depois, a pediu em casamento. Sem hesitar, ela aceitou. Fähner era o que se chamava de bom partido; estudava Medicina em Munique, era atraente e carinhoso e estava às vésperas dos primeiros exames finais. Porém, o que mais a atraía era a sua seriedade. Ela não sabia como descrevê-la, mas dizia às amigas que Fähner jamais a abandonaria. Quatro meses depois, estava morando com ele.
Na lua de mel, viajaram para o Cairo, conforme ele desejava. Mais tarde, quando lhe perguntavam sobre o Egito, ele dizia que “não sentira a força da gravidade”, embora soubesse que ninguém o entendia. Lá, ele foi o jovem Parsival, imune aos males do mundo, e foi feliz. Pela última vez em sua vida.
Na noite que antecedeu a viagem de volta, ficaram deitados no quarto do hotel. As janelas estavam abertas, mas o calor persistia; o ar quente parecia estar preso no interior do pequeno aposento. Era um hotel barato, que cheirava a fruta podre, e eles podiam ouvir os ruídos que vinham da rua.
Apesar do calor, haviam feito sexo. Fähner, deitado de costas, acompanhava o movimento do ventilador de teto. Ingrid fumava um cigarro. Virando-se de lado, ela apoiou a cabeça em uma das mãos e pôs-se a contemplá-lo. Ele sorriu. Durante um bom tempo, permaneceram calados.
Então, ela começou a falar. Falou dos homens antes de Fähner, das decepções que tivera e dos erros que cometera, mas sobretudo do tenente francês que a engravidara e do aborto que quase a matara. Estava chorando. Surpreso, ele a abraçou. Em seu peito, sentia o coração dela pulsar, desamparado. Ela confia em mim, pensou.
“Você tem de jurar que vai cuidar de mim. Você não pode me abandonar.” A voz de Ingrid era trêmula.
Comovido, ele tentou acalmá-la. Já o havia jurado na igreja, durante as bodas, era feliz com ela, queria...
Ela o interrompeu bruscamente, e sua voz se elevou, assumindo aquele tom metálico e vulgar. “Jure!”
De súbito, ele entendeu. Não se tratava de uma conversa entre amantes. Num átimo, haviam desaparecido todos os clichês — o ventilador, o Cairo, as pirâmides, o calor do quarto de hotel. Ele a afastou um pouco, a fim de poder olhar em seus olhos, e depois falou. Falou lentamente, e sabia o que estava dizendo. “Eu juro.”
Puxando-a novamente para si, ele a beijou no rosto. E mais uma vez fizeram sexo. Dessa vez foi diferente. Ela se sentou sobre ele e fez dele o que quis. Foram momentos de autenticidade, alheamento e solidão. Ao gozar, ela o esbofeteou. Ele ainda permaneceu acordado por muito tempo, olhando fixamente para o teto. Faltou luz, e o ventilador parou de girar.

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