domingo, 20 de maio de 2007

das palavras de poe


O CORAÇÃO DENUNCIADOR

É verdade! Sou muito nervoso. Mas não sou louco. E meu ouvido sempre foi muito bom. A doença não entorpecera meus sentidos. Antes, aguçou-os. Eu ouvia todas as coisas: do céu, da terra. Até do inferno.

Como então, sou louco?

Ouçam: uma idéia penetrou no meu cérebro. Sei lá como. Sei que ficou comigo, dia e noite. E eu gostava do velho. Nunca me fizera mal algum. Eu não desejava nem seu ouro. Não havia motivo. Pensa que era o olhar dele! Sim, era isso. Um de seus olhas se parecia com o de um abutre... de cor azul-pálida, um olho que sofria de catarata. Coberto com uma horrível película. Desbotado. E quando me olhava, meu sangue se enregelava. Foi assim, por isso, que me decidi acabar com o belho. Eu não o matei. Destruí seu maldito olha de abutre que me punha nervoso.

Eu sei tudo o que fiz com o velho. Ninguém pode me chamar de louco. Os loucos nada sabem.
Na semana em que o matei, fui bondoso demais com ele. Todas as noites, à meia-noite, eu ia vê-lo dormindo. Levava comigo uma lanterna com tampa, toda coberta, de modo que nenhuma luz se projetava para fora. A porto do seu quarto eu a abria com cuidado, devagarinho. Só abria o bastante para passar minha cabeça e a lanterna. Eu queria vê-lo deitado. Quando minha cabeça estava bem dentro do quarto, eu abria a tampa da lanterna devagar, cuidadosamente. É. Cuidadosamente. Porque a dobradiça rangia. Também só abria até permitir que um raio de luz caísse sobre o olho. Fiz isso durante sete noites... sempre à meia-noite. E sempre encontrei o olho fechado. Não era possível fazer o que eu queria, assim, dessa maneiro. Não era o velho que me deixava nervoso. Era o seu olho diabólico.

Ele não suspeitava de nada. Porque, quando eu amanhecia, eu era só amabilidade.

Na oitava noite, fui mais cauteloso ao abrir a porta. Ri com gosto, entre os dentes ao me lembrar que podia abrira a porta, vê-lo dormindo e ele nem sequer sonhava com meus atos ou pensamentos secretos...

Desta vez, parecia Ter ouvido. Movera-se na cama. Estaria assustado? Mas continuei. Minha cabeça já estava toda dentro do quarto escuro, todo fechado por medo dos ladrões. Ia abrir a lanterna, quando meu dedo escorregou sobre o fecho de lata. O ruído fez o velho saltar na cama e gritar: "Quem está aí?"

Fiquei parado, em silêncio.

Ouvi-o gemer. Não, não era dor. Era o som sufocado da alma sobrecarregada de medo. Eu conhecia esse som. Quantas vezes , ao bater a meia-noite, este mesmo gemido não saiu de meu próprio peito, aumentando, com seu eco espantoso, os terrores que me dominavam? Entendi o velho e tive pena dele. Devia estar se convencendo de que fora apenas o vento, um rato ou o canto de um grilo. Devia estar tentando animar-se. Tudo em vão, porque a morte estava perto dele. Não via, nem ouvia, mas podia sentir a MINHA presença dentro do quarto.

Esperei muito tempo. Não o ouvi deitar-se. Assim mesmo, arrisquei. Abri a lanterna, com o cuidado de sempre. O raio de luz, como o fio de uma teia de aranha, passou pela fenda e caiu sobre o olho desbotado.
Estava aberto, todo aberto. Então, minha fúria cresceu. Eu via o olho de abutre com perfeita clareza. Não via mais nada. A face ou o corpo de velho. A luz, como por instinto, procurava o maldito lugar.

Agora eu ouvia um som. Baixo, rápido, monótono, como o de um relógio abafado em algodão. Eu sabia: era o coração do velho. Como um tambor estimula a coragem do soldado, ele me aumentava a fúria.

Fiquei quieto, esperando. Mantive fixa a fita de luz sobre o olho do velho. E o tam-tam aumentava. Infernal. Mais alto, mais rápido. O terror do velho devia ser extremo. E o meu? Sabem, sou nervoso. Aquele ruído, àquela hora da noite foi me aterrorizando cada vez mais. E o som crescia. Alto, tão alto que podia ser ouvido por algum vizinho. Era agora! Berrei alto, escancarei a lanterna e pulei para dentro do quarto. Ele guinchou mais uma vez só. Num instante, arrastei-o para o chão e virei a pesada cama sobre ele.

Sorri aliviado. Durante minutos, o coração continuou a bater, com um som surdo. Ninguém ouviria através da parede. Afinal parou. O velho estava morto. Desvirei a cama. Ele era uma pedra. Uma pedra morta. Tudo imóvel. O coração parado. Petrificado. Seu olho morrera.

Pelos cuidados que tomei para ocultar o cadáver, qualquer um poderá concluir que não sou louco. Trabalhei com pressa. Em silêncio. Esquartejei o corpo. Cortei-lhe a cabeça, os braços e as pernas.

Arranquei três tábuas de assoalho do quarto e coloquei tudo entre os vãos. Recoloquei tudo tão bem, com tamanha perfeição, que nem o olho dele poderia descobrir. Nada havia a lavar. Eu fora muito prudente...

Quando terminei, eram quatro horas. Ainda estava escuro, como se fosse meia-noite. Nesse instante, bateram à porta da rua. Desci para abri-la, tranqüilo, pois nada tinha a temer. Entraram três soldados da polícia. Um grito fora ouvido por um vizinho, durante a noite. Havia suspeita de crime, alguém denunciara à polícia, e eles, soldados, ali estavam para investigar.

Expliquei-lhes que o grito fora meu mesmo. Um sonho. O velho estava ausente, no interior. Levei-os a visitar toda a casa. Mostrei-lhes o quarto dele, suas riquezas. Tudo intacto, em segurança. Demorei-me nos detalhes. Mandei que sentassem, para que sentissem minha segurança. Eu próprio coloquei minha cadeira precisamente onde enterrara o cadáver.

Afinal, vi que convencera os soldados. Estavam satisfeitos. E eu muito à vontade.

De repente, senti que eu não estava bem. Devia estar empalidecendo. Desejei que todos se fossem. A cabeça doía, os ouvidos zumbiam. E eles sentados. Conversavam. Eu falava, falava, desenfreado. Tentava abafar um ruído que se tornara cada vez mais alto. E mais, e mais, até que descobri. O barulho não era dentro de meus ouvidos.

Sem dúvida, minha palidez aumentou. Elevei mais o tom de minha voz. E o som mais se avolumava. Um som grave, rápido, monótono... semelhante ao de um relógio abafado em algodão.

Minha respiração tornou-se difícil. No entanto, os soldados não ouviam nada. O som aumentava. Levantei-me. Falei alto, gesticulando com exagero. Andei pelo quarto, enfurecido. Que fazer? Espumei... esbravejei... O barulho se elevava acima de tudo, alto, mais alto...MAIS ALTO! E os homens sorriam, satisfeitos. Não era possível, eles sabiam. Estavam zombando do meu horror!... Não podia suportar por mais tempo, aquela agonia. Qualquer coisa era melhor do que aquilo. Eu devia gritar ou morrer. E gritei. Escutem: mais alto, mais alto!... MAIS ALTO!...

- Miseráveis! Não finjam mais! Confesso o crime! Arranquem as tábuas, aqui.. aqui!... ouçam o bater do seu maldito coração.

Nenhum comentário: