A mulher de Botero
João Pontes, o escritor, olhou um dia pela janela ao lado de sua mesa de trabalho, no nono andar de um edifício na Gávea, e viu na cobertura do outro lado da rua, bem à sua frente, entre vasos de planta, uma mulher de Botero. A visão o desagradou, como o desagradavam as mulheres de Botero. Mas logo João a decompôs numa ilusão de folhas amarelas e vasos escuros, tela nublada pela lâmina de vidro que tudo recobria, com seus reflexos e sombras.
Terminou por achar graça: a assombração era um incrível trompe-l’oeil produzido pelo acaso. Concentrou-se então no trabalho por mais meia hora – escrevia seu quinto romance, uma ficção histórica sobre o bando de Lampião – e, mal deixou o olho escapar pela janela atrás de um nome próprio, a palavra cardo, o adjetivo ressequido, lá estava a mulher de Botero outra vez.
Era uma visão súbita, perfeita, de uma nitidez que dava náusea. E de novo, o que era estranho, João a recebeu com a surpresa de um tapa na cara. Não conseguia estar preparado para a mulher de Botero.
Aquilo se repetiu por dias: olhar pela janela, tomar um susto ao ver a mulher de Botero a secar seu progresso penoso do outro lado da rua, como se dissesse: “Escritor? Pois sim…”, e perder mais uma vez o fio da meada de Virgulino, a pegada entre clássica e pop que buscava para o faroeste brasileiro que tinha na imaginação.
Aquela mulher de Botero era ainda mais desagradável do que a média das mulheres de Botero: xale preto, as mãos dois peixes inchados no colo preto, sorrisinho estúpido, o olhar entre frio e lunático – um olhar alienígena, com a hostilidade suprema da indiferença. Aquela coisa toda fofa, teratológica em seu balofismo. Misógina. E sempre chegando de tocaia. Duas semanas depois João parou de escrever.
O que o levou a tomar tal decisão foi o orgulho de autor: tinha perdido o controle da história. Às vezes achava agradável a sensação de estar à deriva em sua própria narrativa, ser levado por ela, mas só quando a direção era mais ou menos a que tinha planejado. E seus planos passavam longe do lugar onde estava agora. A coisa ia descambando de vontade própria de Quixadá para Querétaro: cada cena que lhe saía dos dedos, empurrada pela anterior e já puxando a seguinte, era de um realismo-socialista-quase-fantástico latino-americano de décima terceira categoria. Maria Bonita ficou enorme de gorda, os cangaceiros desenvolveram músculos de peão de Portinari, a luz amarela que tudo banhava era artificiosa, como se fosse de estúdio. Lampião, vanguarda do campesinato, organizava as massas e fundava sovietes. Parou.
Não tinha dúvida de que a culpa era da mulher de Botero. Pensou em atravessar a rua, descobrir o número do apartamento em que ela morava e interfonar. Soaria como um louco, mas, de certa forma, não era pedir tanto: será que a senhora se incomodaria de redecorar a cobertura só um pouquinho, um nada? Um vaso deslocado alguns centímetros seria o bastante para me restituir a felicidade.
Tímido, não atravessou a rua. Dizer o quê, sem soar ridículo: tem o fantasma de uma mulher gorda no seu jardim me impedindo de trabalhar?
Meses depois, já quase esquecido da mulher de Botero, tão acostumado estava a vê-la diariamente em seu habitat sombreado, reparou com uma vertigem que ela se fora. Na cobertura do outro lado da rua havia apenas vasos, folhagens – os centímetros de que precisava chegavam por obra do mesmo acaso que tinha engendrado o virago.
Seu primeiro impulso foi sorrir e pensar que voltaria à história engavetada de Lampião. Mas no instante seguinte ficou sério, sério e abatido, porque soube com clareza que voltaria à história de Lampião apenas para abandoná-la definitivamente logo depois – abandoná-la com tal fúria que só lhe restaria deletar qualquer traço de sua existência.
João compreendeu que era tarde, o livro exterminado: seu faroeste brasileiro era um aborto. E a mulher de Botero já nem estava lá para que ele pudesse mirá-la com ódio.
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