Denis Johnson
Primeiro Capítulo:
Hoje, às três da madrugada, mataram o presidente Kennedy. O marinheiro Houston e os outros dois recrutas ainda dormiam quando correram pelo mundo as primeiras notícias. Havia um pequeno bar na ilha, um pardieiro com enormes ventiladores no teto, um balcão e uma máquina de pinball; os dois fuzileiros que tocavam o negócio foram acordá-los para contar o que sucedera ao presidente. Então se sentaram com os três marujos nos beliches da cabana Quonset reservada para militares em trânsito e ficaram tomando cerveja e observando o ar-condicionado a gotejar água numa lata de café. A Rádio das Forças Armadas da baía de Subic passou a noite no ar, divulgando boletins sobre o inconcebível assassinato.
Agora, no fim da manhã, ao penetrar a selva de Ilha Grande empunhando uma espingarda calibre 22 emprestada, o marinheiro-aprendiz William Houston Jr. começava a se sentir sóbrio outra vez. Diziam que uns javalis selvagens vagavam naquela reserva militar insular que era tudo o que ele conhecia das Filipinas até então. Não sabia o que sentir por aquele país. Só queria caçar um pouco na mata. Diziam que lá havia javalis.
Ia pisando com cuidado, pensando nas cobras e tentando não fazer barulho, pois queria ouvir os javalis antes que o atacassem. Sabia que estava uma pilha de nervos. De toda parte chegavam dezenas de milhares de ruídos silvestres, os gritos das gaivotas e o distante rumor das ondas. Se ele parasse um minuto para escutar, chegaria a detectar a pulsação abafada no calor da própria carne e o ranger do suor no ouvido. Se ficasse imóvel por dois segundos, os insetos o encontrariam e se poriam a zunir junto à sua cabeça.
O marinheiro Houston apoiou a espingarda numa pequena bananeira, tirou a faixa da testa, torceu-a, enxugou o rosto e descansou um pouco, enxotando os mosquitos com o pano e coçando o saco distraidamente. Ali pero, uma gaivota parecia brigar consigo mesma, uma série de ganidos de protesto interrompidos por contraditórios gritos mais graves que soavam como Rá! Rá! Rá! E algo que passou de uma árvore para outra lhe chamou a atenção. Com o olhar fixo nos galhos da árvore, uma seringueira, Houston estendeu o braço para alcançar a espingarda. A coisa se mexeu outra vez. Então ele viu que era uma espécie de macaco não muito maior do que um chihuahua. Não chegava a ser um javali, mas até que valia a pena vê-lo, agarrado ao tronco da árvore pela mão esquerda e os dois pés, cavando a cortiça fina com ar de miúda e exasperada pressa. O marinheiro Houston enquadrou o magro dorso do animal na mira da espingarda. Ergueu o cano alguns graus, apontando para a cabeça do macaco. Sem pensar em absolutamente nada, puxou o gatilho.
O bichinho jogou-se contra a árvore, braços e pernas estirados enfaticamente, e a seguir, abraçando o próprio corpo como se quisesse coçar as costas, caiu no chão. O marinheiro Houston ficou horrorizado com as convulsões que presenciou. Apoiando o braço no chão, o macaco ergueu o corpo e sentou contra o tronco da árvore, as pernas bem esticadas, como uma pessoa a descansar de um trabalho pesado.
Houston avançou alguns passos e, a poucos metros de distância, viu que o pêlo do macaco brilhava muito e que o movimento das folhas, no alto, dava-lhe uma coloração castanho-avermelhada na sombra e loira na luz. O animal olhava de um lado para outro, a respiração rápida, custosa, a barriga a se dilatar tremendamente a cada alento, qual uma bexiga. O tiro tinha sido baixo, saíra pelo abdômen.
O marinheiro Houston sentiu a própria barriga partir-se ao meio. "Caramba!", gritou para o macaco, como se isso melhorasse o estado constrangedor e odioso do animal. Sentiu que sua cabeça ia estourar se a manhã continuasse a arder na selva à sua volta, se as gaivotas insistissem em gritar, se o macaco seguisse olhando para os lados com cautela, virando a cabeça e os olhos pretos como uma pessoa interessada no desenrolar de uma conversa
qualquer, de uma discussão qualquer, de uma briga qualquer que a selva ou a manhã-ou o momento-estava tendo consigo. Aproximando-se, largou a espingarda no chão e pegou o animalzinho nas mãos, uma a lhe segurar o traseiro; a outra, a cabeça. Fascinado, mas logo com repugnância, percebeu que o macaco estava chorando. A respiração lhe saía aos soluços, e as lágrimas lhe escorriam dos olhos quando ele piscava. Olhou para lá e para cá, mostrando-se tão pouco interessado pelo marinheiro Houston como por tudo quanto via. "Ei", disse o rapaz, mas o macaco não deu sinal de ouvi-lo.
O coração do bichinho aninhado em suas mãos parou de bater. Ele chegou a sacudi-lo, mas sabia que era inútil. Sentiu-se culpado de tudo e, sem ninguém por perto para se inteirar do que quer que fosse, chorou como criança. Tinha dezoito anos.
Ao voltar para o bar à beira-mar, Houston viu que um cardume de águasvivas tingia de violeta a praia cinzenta, centenas delas, cada qual mais ou menos do tamanho da mão de um homem, ondulando-se, translúcidas sob o sol. O pequeno porto da ilha estava deserto. Nenhum barco ia para lá, a não ser
a balsa da base naval do outro lado da baía de Subic. Poucos metros mais adiante, erguia-se um par de choupanas de bambu diante da faixa de areia sob árvores magníficas, esporádicas florzinhas roxas sobre os telhados. De dentro de uma delas chegavam os gemidos de um casal fazendo amor, uma puta, imaginou Houston, e um marinheiro. Acocorado na sombra, ele ficou escutando até que os dois parassem de rir, parassem de respirar; então um lagarto começou a gargantear no beiral da choupana: um breve trinado anunciativo e, a seguir, uma série de ásperas risadinhas entrecortadas-tchec-co; tchec-co; tchec-co...
Ao cabo de algum tempo, o homem saiu, um quarentão com corte de cabelo militar, toalha enrolada na cintura e um cigarro preso entre os dentes; e lá ficou, imóvel, segurando a toalha na barriga, os olhos voltados para uma coisa próxima, mas invisível, e a oscilar. Com certeza um oficial. Segurando o cigarro com o polegar e o indicador, deu uma tragada, e uma névoa lhe envolveu o rosto.
"Mais uma missão cumprida."
A porta da choupana vizinha se abriu, e uma filipina nua, a mão no sexo, disse: "Ele não gosta da coisa".
O oficial gritou: "Ei, Lucky".
Um asiático baixinho apareceu à porta, estava fardado.
"Você negou fogo?"
O homem respondeu: "Isso dá azar".
"Carma", corrigiu o outro.
"Pode ser", disse o rapazinho.
O oficial se dirigiu a Houston: "Topa uma cerveja?".
Houston queria não estar lá, mas só então percebeu que se esquecera de ir embora, e agora o homem estava falando com ele. Com a mão livre, o oficial
jogou fora o cigarro e empurrou a toalha para o lado. Disse-lhe-enquanto soltava quase em linha reta um jorro que espumou na terra, destruindo a bituca-"Se você gosta do que está vendo, é só dizer".
Sentindo-se tolo, Houston entrou no bar. Lá dentro, duas jovens filipinas com vestidos de estampas alegres estavam jogando fliperama e falando tão depressa, enquanto as pás enormes giravam no alto, que ele quase perdeu o equilíbrio. Sam, um dos fuzileiros, estava atrás do balcão. "Cala a boca, cala a boca", disse. Ergueu a mão, que segurava uma espátula.
"E eu disse alguma coisa?"
"Espera." Sam aproximou a cabeça do rádio e, como um cego, concentrou-
se no som. "Pegaram o cara."
"Foi o que disseram antes do café da manhã. Eu já estou sabendo."
"Não é só isso."
"Ok", disse Houston.
Tomou água gelada e ficou escutando o rádio, mas, naquele momento, estava com tanta dor de cabeça que não conseguia entender uma palavra. Pouco depois, o oficial chegou com uma vistosa camisa havaiana, acompanhado do jovem asiático. "Coronel, já fisgaram o homem", anunciou Sam. "O nome dele é
Oswald."
O coronel disse: "Que porra de nome é esse?"-aparentemente tão indignado com o nome do assassino quanto com sua atrocidade.
"Um bom filho-da-puta", rosnou Sam.
"Filho-da-puta mesmo", concordou o outro. "Eu quero é que cortem o saco dele. Quero que recheiem o rabo dele de chumbo." Enxugando as lágrimas sem constrangimento, disse: "Oswald é o nome ou o sobrenome?".
Houston pensou que primeiro tinha visto o oficial mijar no chão, agora o via chorar.
Sam se voltou para o asiático. "Senhor, a gente aqui é muito hospitaleira.
Mas geralmente não serve militares filipinos."
"Lucky é do Vietnã", informou o coronel.
"Do Vietnã. Se perdeu?"
"Não, não me perdi", disse o rapaz.
"Esse cara já é piloto", explicou o coronel. "Capitão da Força Aérea do Vietnã do Sul."
Sam perguntou ao jovem capitão: "É mesmo? Por acaso vocês estão em guerra por lá? Guerra?-bada-bada-bada". E, empunhando uma submetralhadora
invisível, agitou as mãos em uníssono. "Estão ou não estão?"
O capitão desviou a vista do norte-americano, formulou as frases mentalmente, ensaiou-as, tornou a olhar para ele e disse: "Não sei se estamos em guerra. Muita gente morreu".
"É isso aí", concordou o coronel. "Isso é que conta."
"O que você está fazendo aqui?"
"Treinamento com helicópteros."
"Você não tem idade nem para pilotar velocípede", riu-se Sam. "Quantos
anos?"
"Vinte e dois."
"Eu vou servir uma cerveja para o japoronga aí. Gosta da San Miguel? Se
ofendeu porque te chamei de japoronga? É um vício que eu tenho."
"Chama ele de Lucky", disse o coronel. "O cara está pagando, Lucky. O
que é que vai?"
O rapaz enrugou a testa e, depois de deliberar intimamente, cheio de mistério,
pediu: "Uma Lucky Lager".
"E que cigarro você fuma?", perguntou o coronel.
"Eu gosto do Lucky Strike", disse o asiático, e todos riram.
Súbito, Sam olhou para o jovem marinheiro Houston como se o estivesse reconhecendo e perguntou: "Cadê a minha espingarda?".
Houston demorou um instante para compreender as palavras. Mas logo
disse: "Merda".
"Cadê?" Sam não parecia particularmente interessado-apenas curioso.
"Merda", repetiu o marinheiro Houston. "Vou buscar."
Teve de voltar à selva. Tanto calor e umidade quanto antes. Os mesmos animais faziam o mesmo barulho, e a situação seguia igualmente terrível, ele estava longe dos lugares da sua memória, e a marinha ainda seria dona dele durante dois anos, e o presidente, o presidente do seu país continuava morto-mas o macaco desaparecera. A espingarda de Sam estava jogada no mato, tal como ele a tinha deixado, e não havia sinal do macaco. Um bicho o levara.
Houston temia vê-lo novamente, de modo que foi com alívio que voltou para o bar sem ter de olhar para o que fizera. No entanto, sabia, sem muita aflição nem mal-estar, que nunca mais iria se livrar daquela imagem. O marinheiro Houston foi promovido uma vez e depois rebaixado. Viu de relance algumas grandes capitais do Sudeste asiático, percorreu ruas quentes, abafadas, nas quais as lanternas oscilavam ao sabor da brisa rançosa, mas nunca
ficou em terra o tempo suficiente para se desacostumar do balanço do navio, somente o necessário para ficar confuso, para ver caras vibrantes e ouvir risos
sofridos. Terminada a viagem, alistava-se em outra, encantado sobretudo com o poder de criar seu destino com uma mera assinatura. Houston tinha dois irmãos mais jovens. James, o mais próximo dele em idade, alistou-se na infantaria e foi mandado para o Vietnã; uma noite, pouco antes de terminar sua segunda viagem na marinha, Houston tomou um trem da base naval de Yokosuka, no Japão, para a cidade de Yokohama, onde tinha combinado de se encontrar com James, no Peanut Bar. Foi em 1967, mais de três anos depois do assassinato de John Kennedy.
No vagão, sentiu-se um verdadeiro gigante, olhando por cima das cabeças de cabelo preto como breu. Os pequeninos passageiros japoneses o encararam sem alegria, sem dó, sem vergonha, até que ele sentisse como se lhe estivessem torcendo o pescoço. Desembarcou e tomou um caminho reto, no chuvisco noturno, acompanhando os molhados trilhos do bonde até o Peanut Bar.
Estava ansioso por dizer alguma coisa em inglês. O Peanut Bar era grande e estava lotado de marujos e desleixados tripulanes da marinha mercante. As vozes eram densas em sua cabeça; a fumaça, densa em seus pulmões. Avistou James perto do palco e foi ter com ele, a mão estendida para um aperto. "Vou embora de Yokosuka, cara! Volto a embarcar!", foi a primeira coisa que disse.
O conjunto musical abafou as palavras do irmão mais velho-um quarteto japonês de imitadores dos Beatles, todos de indumentária branquíssima, com franja. James, à paisana, estava sentado a uma mesinha, olhando para eles, alheio a tudo que não fosse aquele espetáculo, e Bill jogou um amendoim na boca.
James apontou para os músicos. "Que coisa mais ridícula." Teve de gritar para ser ouvido, ainda que mal.
"O que você queria? Isto aqui não é Phoenix."
"Quase tão ridículo quanto você vestido de marinheiro."
"Eles me dispensaram há dois anos, e eu me realistei. Sei lá-resolvi me
realistar."
"Estava bêbado?"
"É, completamente bêbado."
Bill Houston ficou surpreso ao ver que o irmão já não era um garotinho. Usava o cabelo cortado rente, coisa que tornava seu maxilar mais largo e forte, e mantinha o corpo empinado, quase sem se mexer. Mesmo à paisana, era um soldado.
Pediram canecos de chope e concordaram que, fora certas coisas esquisitas, os dois gostavam do Japão-muito embora, até então, James tivesse passado seis horas no país, entre um vôo e outro, e na manhã seguinte fosse tomar o avião para o Vietnã-ou, pelo menos, gostavam dos japoneses. "Vou te contar", disse Bill quando o conjunto fez uma pausa e um pôde ouvir o outro, "os japas deixaram isto aqui uma jóia. Mas lá nos trópicos, cara, é uma meleca. As pessoas têm merda na cabeça."
"Foi o que me disseram. Vou ver."
"E a guerra?"
"O que tem a guerra?"
"O que eles dizem?"
"Em geral, dizem que a gente fica dando tiro em árvores, e as árvores atiram de volta."
"Mas, sério. Aquilo lá é foda, não é?"
"Isso eu só vou saber quando estiver lá."
"Está com medo?"
"No treinamento, eu vi um cara acertar outro cara sem querer."
"Verdade?"
"Na bunda, dá para acreditar? Foi um acidente."
Bill Houston disse: "Eu vi um cara matar outro em Honolulu".
"Como, num combate?"
"Não, é que o filho-da-puta estava devendo uma grana para um outro
filho-da-puta."
"Onde foi, num bar?"
"Não. Que bar o quê. O cara deu a volta na casa do outro, chegou no fundo e gritou para ele aparecer na janela. A gente estava passando por ali e ele me
disse: 'Espera aí, eu preciso acertar uma dívida com aquele pilantra'. Eles conversaram um pouco e então o cara que estava comigo meteu bala no da casa. Encostou a pistola na tela da janela, cara, e pá, assim, de uma vez. Uma 45 automática.
O sujeito caiu de costas dentro do quarto."
"Está brincando."
"Não estou, não."
"Sério mesmo? Você viu?"
"A gente saiu para dar uma volta. Eu não imaginei que ele fosse apagar alguém."
"O que você fez?"
"Só faltei cagar nas calças. Ele virou, guardou a pistola debaixo da camisa e disse: 'Vem, vamos tomar uma'. Como se não tivesse acontecido nada."
"E o que você disse?"
"Achei melhor nem tocar no assunto."
"Sei. Achou melhor. O que você disse, porra?"
"Ah, o problema é que eu não sabia o que ele achava de me ter por testemunha.
Foi por isso que perdi o embarque. Ele ia no nosso navio. Se eu tivesse embarcado com aquele cara a bordo, ia passar um mês e meio sem poder fecharos olhos."
Enquanto bebiam de seus canecos, os irmãos se puseram a vasculhar a mente em busca de um assunto sobre o qual conversar.
"Quando aquele cara levou o tiro na bunda", disse James, "entrou em choque imediatamente."
"Porra. Quantos anos você tem?"
"Eu?"
"É."
"Quase dezoito."
"O exército deixou você se alistar só com dezessete anos?"
"Não. Eu menti."
"Não está com medo?"
"Estou. Não o tempo todo."
"Não o tempo todo?"
"Nunca vi um combate. Quero ver a coisa de verdade, a merda de verdade.
Estou muito a fim."
"Seu porra-louca de merda."
O conjunto voltou a tocar, começando com um número dos Kinks intitulado
"You Really Got Me":
You really got me...
You really got me...
You really got me...
Os dois irmãos não tardaram a brigar por alguma coisa sem importância, e Bill Houston entornou o caneco de chope no colo de uma pessoa sentada à mesa vizinha-uma japonesinha que encolheu os ombros e fez uma cara triste e humilhada. Estava em companhia de uma amiga e também de dois americanos, dois rapazinhos que não souberam como reagir.
Enquanto a bebida escorria pela borda da mesa, James tentava desajeitadamente endireitar o caneco vazio, dizendo: "Isso acontece às vezes. Acontece". A moça não fez um único movimento para se secar. Ficou olhando para o colo.
"O que é que há com a gente afinal?", perguntou James ao irmão, "será que a gente pirou de vez? Sempre que a gente se junta acontece uma coisa ruim."
"Eu sei."
"Uma cagada."
"É, só cagada mesmo. Porque a gente é da mesma família."
"Do mesmo sangue."
"Essa bosta não me interessa mais."
"Deve interessar um pouco", insistiu James, "do contrário, por que você ia fazer essa puta viagem para se encontrar comigo em Yokohama?"
"É", concordou Bill, "no Peanut Bar."
"No Peanut Bar!"
"E por que eu perdi o meu navio?"
"Perdeu?"
"Ele ainda deve estar lá. Mas tomara que já tenha zarpado."
Bill Houston sentiu os olhos se encherem de lágrimas, sufocado por uma súbita emoção com a vida e com aquele país em que todo o mundo dirigia à esquerda.
James disse: "Eu nunca gostei de você".
"Eu sei. Eu também não."
"Eu também não."
"Sempre te achei um imbecil filho-da-puta", disse Bill.
"E eu sempre te detestei", rebateu seu irmão.
"Puxa, desculpa", pediu Bill Houston à japonesa. Tirou uma nota da carteira e jogou-a na mesa molhada, de cem ienes ou de mil, não conseguia ver.
"É o meu último ano na marinha", explicou à moça. Teria lhe dado mais dinheiro, mas estava com a carteira vazia. "Eu atravessei esse oceano e morri. Eles podem muito bem levar os meus ossos. Estou completamente diferente."
Naquela tarde de novembro, no dia seguinte ao do assassinato de John Kennedy, o capitão Nguyen Minh, o jovem piloto da Força Aérea do Vietnã, mergulhou de máscara e snorkel a pouca distância da praia de Ilha Grande. Era a sua nova paixão. A experiência se parecia com a que devia ser a de um pássaro no ar: planar sobre uma paisagem, impelido pela ação de seus próprios membros, voar de verdade, coisa bem diferente de pilotar uma aeronave. Os pés-depato deram-lhe um grande impulso quando ele deslizou acima de um enorme cardume de peixes-papagaio que se alimentava num recife, a multidão de
pequenos bicos a tamborilar no coral feito um aguaceiro. Os homens da marinha norte-americana gostavam de scuba e mergulho e haviam danificado todo
o coral, tornando os peixes tão ariscos que o cardume desapareceu num piscar de olhos quando ele se aproximou.
Minh não era um grande nadador e, sem os outros por perto, pôde se entregar ao medo que deveras sentia. Tinha passado toda a noite anterior com a prostituta que o coronel fizera questão de pagar. A garota dormiu no chão; ele, na cama. Não a quisera. Não confiava muito nas filipinas.
Então, no fim da manhã daquele dia, foram ao bar e souberam do assassinato do presidente dos Estados Unidos, John Fitzgerald Kennedy. As duas filipinas ainda estavam com eles, cada uma delas agarrada a um dos poderosos braços do coronel, como que tentando prendê-lo à terra até que conseguisse controlar a surpresa e a dor. Passaram toda a manhã a uma mesa, escutando os noticiários. "Pelo amor de Deus", dizia o coronel. "Pelo amor de Deus." À tarde, ele se animou e tomou muita cerveja. Minh procurou não exagerar na bebida, mas quis ser educado e acabou ficando bem tonto. As garotas se foram, retornaram, o ventilador a girar no teto. Um recruta da marinha muito jovem juntou-se a eles, e alguém perguntou a Minh se era verdade que uma guerra
estava sendo travada em algum lugar no Vietnã.
Naquela noite, o coronel quis trocar as garotas, e Minh decidiu lhe fazer companhia, como na véspera, só para deixá-lo satisfeito e mostrar que estava
sinceramente agradecido. Em todo caso, a segunda garota era a sua preferida. Mais bonita aos seus olhos e falava melhor o inglês. Mas pediu para deixar o arcondicionado ligado. Ele preferia desligado. Não conseguia ouvir as coisas com o ar-condicionado funcionando. Gostava de janelas escancaradas. Gostava do barulho dos insetos batendo na tela. Não havia telas assim na casa de sua família no Delta do Mekong, nem mesmo na casa do tio em Saigon. "O que você quer?", perguntou a moça. Tratava-o com muito desprezo.
"Sei lá. Tira a roupa."
Eles se despiram e ficaram deitados lado a lado na cama de casal, no escuro,
só isso. Minh ouviu um marinheiro americano, algumas portas mais adiante,
conversando em voz alta com um amigo, talvez contando um caso. Não conseguiu
entender uma palavra, embora considerasse seu inglês muito bom.
"O do coronel é bem grande." A garota lhe estava apalpando o pênis. "Ele
é seu amigo?"
Minh respondeu: "Sei lá".
"Não sabe se ele é seu amigo. Por que está com ele?"
"Sei lá."
"Quando você o conheceu?"
"Há uma semana ou duas."
"Quem é ele?", quis saber a moça.
Minh disse: "Sei lá". Abraçou-a para que ela parasse de lhe tocar o sexo.
"Você só quer corpo-corpo?"
"O que é isso?"
"Só corpo-corpo." A garota se levantou e foi fechar a janela. Passou a
palma da mão no ar-condicionado, mas não tocou nos botões. "Me dá um
cigarro", pediu.
"Não. Eu não tenho."
Ela pôs o vestido, calçou as sandálias. Não usava roupa de baixo. "Me dá um trocado."
"O que quer dizer isso?"
"O que quer dizer isso?", repetiu a garota. "O que quer dizer isso? Me dá um trocado. Me dá um trocado."
"É dinheiro?", perguntou Minh. "Quanto?"
"Me dá um trocado", insistiu ela. "Quero ver se ele me vende cigarro. Quero dois maços-um para mim e um para a minha prima. Dois maços."
"Pede para o coronel."
"Um Winston. Um Lucky Strike."
"Com licença. Hoje está fazendo frio", disse ele. Levantou-se e se vestiu. Saiu à varanda. Ouviu às suas costas o barulhinho da moça lá dentro, às
voltas com a bolsa, colocando-a na mesa. Ela uniu as mãos, esfregou-as, e um perfume saiu pela janela aberta, pairou no ar, e Minh o inalou. Sentiu um
zumbido no ouvido, as lágrimas lhe turvaram a vista. Ele se livrou de um pigarro denso, inclinou a cabeça e escarrou entre os pés. Estava com saudade de sua terra.
Quando se alistou na força aérea e foi logo transferido a Da Nang para o treinamento de oficial, com apenas dezessete anos, passou várias semanas chorando toda noite na cama. Agora fazia quase três anos que pilotava caças, desde os dezenove. Dois meses antes, completara vinte e dois, e podia esperar prosseguir com as missões de vôo até que uma delas o matasse. Mais tarde, estava na varanda, sentado numa cadeira de lona, o corpo inclinado, os antebraços apoiados nos joelhos, fumando-na verdade, tinha um maço de Lucky Strike -, quando o coronel voltou da boate, abraçando as duas garotas. A acompanhante de Minh trazia um maço na mão e o agitava alegremente.
"Quer dizer que hoje você foi explorar o fundo do mar?"
Sem entender bem a pergunta, Minh respondeu: "É".
"Já entrou num daqueles túneis?", perguntou o coronel.
"Que é isso?-túneis."
"Túneis", disse o coronel. "O Vietnã está coalhado de túneis. Já entrou num deles?"
"Ainda não. Acho que não."
"Nem eu, meu filho", disse o coronel. "Queria saber o que tem dentro."
"Eu não sei."
"Ninguém sabe."
"Os comunas usam os túneis", disse Minh. "O vietminh."
Então o coronel voltou a lamentar o presidente morto, pois disse: "Este mundo cospe fora um homem tão maravilhoso como se fosse veneno". Minh tinha notado que era possível passar muito tempo conversando com o coronel sem perceber que ele estava bêbado.
Conhecera-o poucos dias antes, à entrada do campo de manutenção de helicópteros na base de Subic e, desde então, os dois passaram a se encontrar continuamente. Ninguém lhe apresentou o coronel-o próprio coronel se apresentou -, e parecia não ter nenhum vínculo oficial com ele. Estavam alojados com dezenas de oficiais em trânsito no quartel de um complexo originalmente construído, mas logo abandonado, segundo o coronel, pela Agência Central de Inteligência norte-americana. Minh sabia que valia a pena associar-se a ele. Tinha o costume de detectar as situações, as pessoas, como sorte ou azar. Bebia Lucky Lager, fumava Lucky Strike. O coronel o apelidara de "Lucky". "John Kennedy era um belo homem", disse o coronel. "Foi isso que acabou com ele."
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