Henry Miller
Trechos:
Hoje sinto orgulho que dizer que sou inumano, que não pertenço a homens e governos, que nada tenho a ver com a maquinaria rangente da humanidade – eu pertenço à terra! (...)
Lado a lado com a espécie humana corre outra raça de seres, os inumanos, a raça de artistas que, incitados por desconhecidos impulsos, tomam a massa sem vida da humanidade e, pela febre e pelo fermento com que a impregnam, transformam a massa úmida em pão, e pão em vinho, e o vinho em canção. Do composto morto e da escória inerte criam uma canção que contagia. Vejo esta outra raça de indivíduos esquadrinhando o universo, virando tudo de cabeça pra baixo, e os pés sempre se movendo em sangue e lágrima, as mãos sempre vazias, sempre se estendendo na tentativa de agarrar o além, o deus inatingível: matando tudo ao seu alcance a fim de acalmar o monstro que lhe corrói as entranhas. (...) E tudo quanto fique aquém desse aterrorizador espetáculo, tudo quanto seja menos sobressaltante, menos terrificante, menos louco, menos delirante, menos contagiante, não é arte. Esse resto é falsificação. Esse resto é humano. Pertence a vida e à ausência de vida.
(...) Se sou inumano é porque meu mundo transbordou de suas fronteiras humanas, porque ser humano parece uma coisa pobre, triste, miseravel, limitada pelos sentidos, restringidas pelas moralidades e pelos códigos, definida pelos lugares-comuns e ismos.
(...) Tenhamos um mundo de homens e mulheres com dínamos entre as pernas, um mundo de fúria natural, de paixão, ação, drama, sonhos, loucuras, um mundo que produza êxtase e não peidos secos.
(...) Que os mortos comam os mortos. Dancemos nós os vivos, à beira da cratera, uma última e agonizante dança. Mas que seja uma dança!
Não tenho dinheiro, nem recursos, nem esperanças. Sou o mais feliz dos homens vivos. Há um ano, háseis meses, eu pensava ser um artista. Não penso mais nisso. Eusou. Tudo quanto era literatura se desprendeu de mim. Não há mais livros a escrever, graças a Deus.
E isto, então? Isto não é um livro. Isto é uma injúria, calúnia, difamação de caráter. Isto não é um livro, no sentindo comum da palavra. Não, isto é um prolongado insulto, uma cusparada na cara da Arte, um pontapé no traseiro de Deus, do Homem, do Destino, do Tempo, do Amor, da Beleza... e do que mais quiserem. Vou cantar para você, um pouco desafinado talvez, mas vou cantar. Cantarei enquanto você coaxa, dançarei sobre seu cadáver sujo...
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