Walt disse que os mortos se transformavam em relva, mas não havia relva alguma onde enterraram Simon. Ele estava com os outros irlandeses do lado de lá do rio, onde só havia barro, cascalho e nomes escritos em lápides.
Catherine acreditava que Simon tinha ido para o céu. Tinha um medalhão com o retrato e um pouquinho do cabelo dele dentro.
"O céu é o lugar para ele", disse ela. "Ele era bom demais para este mundo." Olhou indecisa para a rua pela janela da sala de visitas, como se esperasse ver uma carruagem reluzente rodando com Simon a bordo, sereno em sua beleza branca como o leite, a acenar e a sorrir, rumando alegremente para o lugar que sempre lhe coubera.
"Se você pensa assim", respondeu Lucas. Catherine acariciou o medalhão. Suas mãos eram afiladas e precisas. Ela era capaz de fazer cerzidos tão delicados que nem dava para ver.
"E no entanto ele ainda está conosco", disse ela. "Você não sente?" Apertava a corrente do medalhão como se fosse um rosário.
"Acho que sim", disse Lucas. Catherine pensava que Simon estava no medalhão, e no céu, e junto com eles ainda. Lucas esperava que ela não julgasse que ele ficaria feliz em ter tantos Simons como concorrentes.
Os convidados tinham partido, e os pais de Lucas já estavam deitados. Apenas Lucas e Catherine continuavam na sala, com o que tinha sobrado. Pratos vazios, a crosta de um pernil. O pernil deveria ter sido para o casamento de Catherine e Simon. Foi uma sorte tê-lo à mão, em vez disso, para o velório.
Lucas disse: "Ouvi o que os tagarelas falavam, a conversa do começo e do fim. Mas eu não falo sobre o começo ou sobre o fim".
Não tivera a intenção de falar como o livro. Nunca queria isso, mas quando estava excitado não conseguia evitar.
Ela disse: "Ah, Lucas".
O coração dele se agitou e bateu contra as costelas.
"Eu me preocupo com você", disse ela. "Você é tão novinho."
"Tenho quase treze", disse ele.
"É um lugar terrível. Um trabalho tão pesado."
"Tenho sorte. Foi bondade deles me dar o emprego de Simon."
"E a escola?"
"Não preciso de escola. Tenho o livro de Walt."
"Você o conhece de cabo a rabo, não é?"
"Ah, não. Tem muita coisa ainda, vou levar anos."
"Você precisa tomar cuidado na fábrica", disse ela. "Você tem que..." Parou de falar, embora seu rosto não tenha mudado. Ela continuou oferecendo seu perfil, que era solenemente belo como o de uma mulher numa moeda. Continuou olhando para a rua pela janela, esperando pelo desfile do séquito celestial, com Simon no alto, o orgulho da família, um novo príncipe dos mortos.
Lucas disse: "Você tem que se cuidar também".
"Não me restou nada mais para cuidar, meu querido. Para mim é só amanhã e o dia seguinte."
Ela colocou de novo a corrente em torno do pescoço. O medalhão desapareceu dentro do seu vestido. Lucas queria lhe dizer - o quê? Queria lhe dizer que estava inspirado e vigilante e corajosamente só, que seu corpo continha seu inquieto coração e algo mais, algo que ele sentia mas não era capaz de descrever: algo poroso, eriçado, movediço, com sombras de pensamento, com desejo e memória; algo de vívido esplendor, um tremeluzir em branco, verde e leve dourado, como estrelas; algo que amava as estrelas porque era feito da mesma substância. Precisava dizer a ela que era impossível, que era intolerável, ser visto sempre como um garoto deformado, estrábico, de cabeça oca e com o costume de falar em espasmos.
Ele disse: "Eu celebro a mim mesmo, e o que eu aceito você aceitará". Não era isso o que queria dizer.
Ela sorriu. Pelo menos não estava zangada com ele. Ela disse: "Agora tenho que ir. Você me acompanha até minha casa?".
"Sim", disse ele. "Sim."
Do lado de fora, na rua, Catherine deslizou a mão para a dobra do cotovelo dele. Ele tentou ficar firme, caminhar de modo viril, embora tudo o que quisesse era estancar o passo, elevar-se como fumaça e flutuar sobre a rua, que estava cheia da sua população noturna, trabalhadores voltando para casa, garotos vendendo seus jornais. O louco sr. Cain andava de um lado para outro em sua esquina, vestido com seu casaco cor de terra, catando distraidamente alguma coisa que fervilhava em sua barba e gritando: "Injúria, ida e esquecida, o que você fez com os corações despedaçados?". A rua estava repleta de seu cheiro característico, esterco e querosene, fumaça acre - alguma coisa estava sempre queimando em algum lugar. Se Lucas pudesse se elevar acima de seu próprio corpo, ele se tornaria aquilo que estava vendo, ouvindo e cheirando. Envolveria Catherine como o ar, e a tocaria em todas as partes. Seria tragado para dentro dela quando ela respirasse.
Ele disse: "O menor dos brotos mostra que não existe de fato morte alguma".
"É como você diz, meu querido", disse Catherine.
Um menino jornaleiro gritou: "Mulher é assassinada brutalmente, leia tudo sobre o caso!". Lucas refletiu que poderia ser um jornaleiro, mas o pagamento era muito baixo, e ele não era confiável para anunciar as notícias, era? Podia se perder e sair pelas ruas gritando: "Cada átomo que pertence a mim pertence também a você". Ele se daria melhor na fábrica. Se o impulso o dominasse, poderia gritar com a máquina de Simon. A máquina não iria entender nem se importar, não mais do que Simon.
Catherine não abriu a boca enquanto caminhavam. Lucas obrigou-se a manter silêncio também. O prédio dela ficava três quadras para o norte, na rua Cinco. Ele subiu com ela a escadaria da entrada e os dois ficaram ali parados por um momento, diante da porta surrada.
Catherine disse: "Chegamos".
Uma carroça passou por eles com uma paisagem dourada pintada na lateral: duas vacas pastando entre árvores raquíticas e uma terceira levantando os olhos para o nome de um laticínio, que flutuava no céu dourado. Aquilo era para ser o paraíso? Será que Simon queria estar lá? Se Simon fosse para o paraíso e este se revelasse um campo repleto de vacas reverentes, que Simon seria ele quando chegasse lá? Seria o Simon completo ou o despedaçado?
Formou-se um silêncio entre Lucas e Catherine, diferente da quietude com que eles tinham caminhado. Era hora, pensou Lucas, de dizer alguma coisa que não soasse como o livro. Disse: "Você vai ficar bem?".
Ela riu, um riso baixo e sussurrante que ele sentiu nos pêlos de seu antebraço. "Sou eu que devo lhe fazer essa pergunta. Você vai ficar bem?".
"Sim, sim, vou ficar ótimo."
Ela olhou para um lugar logo acima da cabeça de Lucas e se recompôs com uma ligeira mudança de posição dentro do vestido escuro. Pareceu por um momento que o vestido, com sua gola alta, sua insinuação de seda escondida, tinha vida própria. Pareceu que Catherine, tendo considerado brevemente a possibilidade de se erguer para fora de seu vestido, tivesse em vez disso decidido permanecer dentro de suas roupas.
Ela disse: "Se tivesse acontecido uma semana mais tarde, eu seria uma viúva, não seria? Agora não sou nada".
"Não, não. Você é maravilhosa, você é linda."
Ela riu de novo. Ele baixou os olhos para a escada, notou que ela continha partículas brilhantes. Mica? Colocou-se por um momento no lugar da pedra. Sentiu-se frio e cintilante, imutável, contente por ser pisado.
"Sou uma velha", disse ela.
Ele hesitou. Catherine tinha passado dos vinte e cinco. Isso foi comentado quando se anunciou o casamento, pois Simon mal tinha completado vinte. Mas ela não era velha do jeito que tinha falado. Não estava estragada ou gasta, não estava descolorida.
Ele disse: "Para mim você não é culpada, nem passada, nem rejeitada".
Ela tocou o rosto dele com a ponta dos dedos. "Menino doce", disse.
Ele disse: "Verei você de novo?".
"Claro que sim. Estarei bem aqui."
"Mas não vai ser a mesma coisa."
"Não. Não vai ser a mesma coisa, infelizmente."
"Se pelo menos..."
Ela esperou para ouvir o que ele iria dizer. Ele esperou também. Se pelo menos a máquina não tivesse levado Simon. Se ele, Lucas, fosse mais velho e mais saudável, com um coração mais forte. Se ele próprio pudesse se casar com Catherine. Se pudesse sair de seu corpo e se tornar o vestido que ela usava.
Houve um silêncio, e ela o beijou. Colocou seus lábios nos dele.
Quando ela recuou, ele disse: "A atmosfera não é um perfume, não tem o gosto do destilado, é inodora, é da minha boca para sempre, estou apaixonado por ela".
Ela disse: "Agora você precisa ir para casa e dormir".
Era hora de deixá-la. Não havia mais nada a fazer ou a dizer. Mesmo assim, ele se deteve. Sentia, como ocorria às vezes em seus sonhos, que estava num palco diante de uma platéia, para a qual devia cantar ou recitar.
Ela se virou, tirou a chave de uma bolsinha, colocou-a na fechadura. "Boa noite", disse.
"Boa noite."
Ele desceu os degraus. Da calçada, disse para o vulto dela que se recolhia: "Sou dos velhos e dos jovens, sou tanto dos tolos como dos sábios".
"Boa noite", disse ela de novo. E desapareceu.
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