Answer
domingo, 24 de abril de 2011
NADA DE NOVO NO FRONT (um trecho)
Erich Maria Remarque
Estamos no outono. Dos veteranos, já não há muitos. Sou o último dos sete colegas de turma que vieram para cá.
Todos falam de paz e armistício. Todos esperam. Se for outra decepção, eles vão se desmoronar. As esperanças são muito fortes; é impossível destruí-las sem uma reação brutal. Se não houver paz, então haverá revolução.
Tenho catorze dias de licença, porque engoli um pouco de gás. Num pequeno jardim, fico sentado o dia inteiro ao sol. O armistício virá e breve, até eu já acredito agora. Então iremos para casa.
Neste ponto meus pensamentos param e não vão mais adiante. O que me atrai e me arrasta são os sentimentos. É a ânsia de viver, é a nostalgia da terra natal, é o sangue, é a embriaguez da salvação. Mas não são objetivos.
Se tivéssemos voltado em 1916, do nosso sofrimento e da força de nossa experiência poderíamos ter desencadeado uma tempestade. Mas se voltarmos agora estaremos cansados, quebrados, deprimidos, vazios, sem raízes e sem esperanças. Não conseguiremos mais achar o caminho.
E as pessoas não nos compreenderão, pois antes da nossa cresceu uma geração que, sem dúvida, passou estes anos aqui junto a nós, mas que já tinha um lar e uma profissão, e que agora voltará para suas antigas colocações e esquecerá a guerra... e depois de nós crescerá uma geração semelhante à que fomos em outros tempos, que nos será estranha e nos deixará de lado. Seremos inúteis até para nós mesmos. Envelheceremos, alguns se adaptarão, outros simplesmente se resignarão e a maioria ficará desorientada: os anos passarão e, por fim, pereceremos todos.
Mas talvez tudo que penso seja apenas melancolia e desalento que desaparecerão quando estiver de novo sob os choupos e ouvir novamente o murmúrio das suas folhas. É impossível que já não existam a doçura que fazia nosso sangue se agitar, a incerteza, o futuro com suas mil faces, a melodia dos sonhos e dos livros, os sussurros e os pressentimentos das mulheres. Tudo isso não pode ter desaparecido nos bombardeios, no desespero e nos bordéis. Aqui as árvores brilham, alegres e douradas, os frutos das sorveiras têm matizes avermelhados por entre a folhagem; as estradas correm brancas para o horizonte, os rumores de paz fazem as cantinas zumbirem como colmeias.
Levanto-me.
Estou muito tranqüilo. Que venham os meses e os anos, não conseguirão tirar mais nada de mim, não podem me tirar mais nada. Estou tão só e sem esperança que posso enfrentá-los sem medo. A vida, que me arrastou por todos estes anos, eu ainda a tenho nas mãos e nos olhos. Se a venci, não sei. Mas enquanto existir dentro de mim - queira ou não esta força que em mim reside e que se chama eu -, ela procurará seu próprio caminho.
Tombou morto em outubro de 1918, num dia tão tranqüilo em toda a linha de frente que o comunicado se limitou a uma frase: "Nada de novo no front".
Caiu de bruços e ficou estendido, como se estivesse dormindo. Quando alguém o virou, viu-se que ele não devia ter sofrido muito. Tinha no rosto uma expressão tão serena que quase parecia estar satisfeito de ter terminado assim.
sexta-feira, 15 de abril de 2011
sábado, 9 de abril de 2011
quinta-feira, 7 de abril de 2011
terça-feira, 5 de abril de 2011
sexta-feira, 1 de abril de 2011
quinta-feira, 31 de março de 2011
sábado, 19 de março de 2011
A MULHER QUE QUERO
Pio Vargas
Eu quero uma mulher de aço
que seja leve como a pena,
cujo sorriso seja um laço
a me prender como um poema.
Eu quero uma mulher madura
a me guiar durante o dia,
quando for noite ser vadia
a me domar sem armadura
e a me tomar como num sonho,
uma mulher que seja a lua
dentro do sol em que me ponho.
Eu quero uma mulher de ferro
com um aplauso pra quando acerto
e um perdão pra quando erro,
como alguém que seja o brilho
dentro do escuro em que me encerro.
Uma mulher que seja plena
uma amante de verdade
que seja motivo de lembrança
e um intervalo na saudade
que, diurna, me cuida,
mas que, noturna me invade.
Eu quero uma mulher-mãe
que seja vinho, cerveja,
refrigerante, champanhe,
que me entenda se viajo
e se fico me acompanhe.
Eu quero uma mulher toda
que me edifique como homem
e algo depois me exploda.
O MESTRE E A MARGARIDA
Mikhail Bulgákov
Um trecho:
1
Nunca falem com estranhos.
Na hora de um quente pôr do sol primaveril, surgiram dois cidadãos em Patriarchi Prudý. O primeiro, com aproximadamente quarenta anos, trajava um costume cinza de verão, era de estatura baixa, cabelos escuros, rechonchudo, careca, na mão seu respeitável chapéu Fedora. Óculos de tamanho sobrenatural de armação preta de chifre ornavam seu rosto cuidadosamente escanhoado. O segundo era um jovem de ombros largos, arruivado, hirsuto, com um boné xadrez caído na nuca, camisa de caubói, calças brancas amarrotadas e tênis pretos.
O primeiro era nada mais nada menos que Mikhail Aleksándrovitch Berlioz, editor de uma volumosa revista de arte e presidente do conselho administrativo de uma das maiores associações literárias de Moscou, abreviadamente denominada Massolit. Já seu jovem acompanhante era o poeta Ivan Nikoláievitch Ponyriov, que escrevia sob o pseudônimo de Bezdômny.
Assim que entraram na sombra das tílias verdejantes, os escritores se precipitaram para um quiosque multicolorido com a placa "Cerveja e refrescos".
Sim, convém destacar a primeira esquisitice desse terrível entardecer de maio. Não só perto do quiosque, mas também em toda a aleia paralela à rua Málaia Brônnaia, não havia vivalma. Naquela hora, quando não se tinha forças nem para respirar, quando o sol, após incandescer Moscou, mergulhava numa neblina seca em algum lugar de Sadôvoie Koltsô, ninguém viera para a sombra das tílias, ninguém se sentara no banco, a aleia estava vazia.
- Uma água com gás - pediu Berlioz.
- Não tem - respondeu a mulher do quiosque, e sabe-se lá por que se ofendeu.
- Tem cerveja? - quis saber Bezdômny, com a voz rouca.
- Vão trazer mais tarde - respondeu a mulher.
- Então tem o quê? - perguntou Berlioz.
- Refresco de damasco, e só quente - disse a mulher.
- Então vai, pode ser, pode ser!...
O refresco de damasco formou uma espuma densa e amarela, surgiu no ar um cheiro de cabeleireiro. Depois de beberem, os literatos imediatamente começaram a soluçar, pagaram e sentaram-se no banco, de frente para o lago e de costas para a Brônnaia.
Nesse momento, ocorreu a segunda esquisitice, que só tinha a ver com Berlioz. Ele parou de soluçar repentinamente, seu coração bateu e, num rufo, sentiu como se tivesse despencado para algum lugar e depois voltado, mas com uma agulha cega cravada nele. Além disso, Berlioz foi tomado por um medo infundado, mas tão forte, que teve vontade de sair correndo imediatamente de Patriarchi, sem olhar para trás.
Berlioz olhou em volta angustiado, sem entender o que o assustara tanto. Empalideceu, enxugou a testa com um lenço e pensou: "O que está acontecendo comigo? Nunca senti isso... o coração está falhando... estou esgotado... Acho que está na hora de mandar tudo para o inferno e ir para Kislovôdsk..."
Na mesma hora, o ar tórrido condensou-se diante dele e desse ar fez-se um cidadão transparente, de aspecto estranhíssimo. Na pequena cabeça, um boné de jóquei, um paletó xadrez apertado e também vaporoso... Um cidadão de estatura colossal, mas de ombros estreitos, incrivelmente magro e de fisionomia, quero destacar, zombeteira.
A vida de Berlioz transcorria de tal modo que ele não estava acostumado a fenômenos extraordinários. Empalidecendo ainda mais, ele esbugalhou os olhos e pensou, confuso: "Isso não pode ser real!"
Mas infelizmente era real, e através daquilo se via um cidadão alongado e transparente, que balançava diante dele, ora para a esquerda ora para a direita, sem tocar no chão.
Nesse instante, o pavor tomou conta de Berlioz de tal forma que ele fechou os olhos. Quando os abriu, viu que tudo tinha acabado, a miragem evaporara, o xadrez desaparecera e, a propósito, a agulha cega se desprendera de seu coração."
sexta-feira, 18 de março de 2011
quinta-feira, 17 de março de 2011
OS DEVANEIOS DO GENERAL
Érico Veríssimo
Abre-se uma clareira azul no escuro céu de inverno.
O sol inunda os telhados de Jacarecanga. Um galo salta para cima da cerca do quintal, sacode a crista vermelha que fulgura, estica o pescoço e solta um cocoricó alegre. Nos quintais vizinhos outros galos respondem.
O sol! As poças d’água que as últimas chuvas deixaram no chão se enchem de jóias coruscantes. Crianças saem de suas casas e vão brincar nos rios barrentos das sarjetas. Um vento frio afugenta as nuvens para as bandas do norte e dentro de alguns instantes o céu é todo um clarão de puro azul.
O General Chicuta resolve então sair da toca. A toca é o quarto. O quarto fica na casa da neta e é o seu último reduto. Aqui na sombra ele passa as horas sozinho, esperando a morte. Poucos móveis: a cama antiga, a cômoda com papeis velhos, medalhas, relíquias, uniformes, lembranças; a cadeira de balanço, o retrato do Senador; o busto do Patriarca; duas ou três cadeiras… E recordações… Recordações dum tempo bom que passou, — patifes! — dum mundo de homens diferentes dos de hoje. — Canalhas! — duma Jacarecanga passiva e ordeira, dócil e disciplinada, que não fazia nada sem primeiro ouvir o General Chicuta Campolargo.
O general aceita o convite do sol e vai sentar-se à janela que dá para a rua. Ali está ele com a cabeça atirada para trás, apoiada no respaldo da poltrona. Seus olhinhos sujos e diluídos se fecham ofuscados pela violência da luz. E ele arqueja, porque a caminhada do quarto até a janela foi penosa, cansativa. De seu peito sai um ronco que lembra o do estertor da morte.
O general passa a mão pelo rosto murcho: mão de cadáver passeando num rosto de cadáver. Sua barbicha branca e rala esvoaça ao vento. O velho deixa cair os braços e fica imóvel como um defunto.
Os galos tornam a cantar. As crianças gritam. Um preto de cara reluzente passa alegre na rua com um cesto de laranjas à cabeça.
Animado aos poucos pela ilusão de vida que a luz quente lhe dá, o general entreabre os olhos e devaneia…
Jacarecanga! Sim senhor! Quem diria? A gente não conhece mais a terra onde nasceu… Ares de cidade. Automóveis. Rádios. Modernismos. Negro quase igual a branco. Criado tão bom como patrão. Noutro tempo todos vinham pedir a benção ao General Chicuta, intendente municipal e chefe político… A oposição comia fogo com ele.
O general sorria a um pensamento travesso. Naquele dia toda a cidade ficou alvoroçada. Tinha aparecido na “Voz de Jacarecanga” um artigo desaforado… Não trazia assinatura. Dizia assim: “A hiena sanguinária que bebeu o sangue dos revolucionários de 93 agora tripudia sobre a nossa mísera cidade desgraçada”. Era com ele, sim, não havia dúvida. (Corria por todo o Estado a sua fama de degolador.) Era com ele! Por isso Jacarecanga tinha prendido fogo ao ler o artigo. Ele quase estourou de raiva. Tremeu, bufou, enxergou vermelho. Pegou o revólver. Largou. Resmungou “Patife! Canalha!” Depois ficou mais calmo. Botou a farda de general e dirigiu-se para a Intendência. Mandou chamar o Mendanha, diretor do jornal. O Mendanha veio. Estava pálido. Era atrevido mas covarde. Entrou de chapéu na mão, tremendo. Ficaram os dois sozinhos, frente a frente.
— Sente-se, canalha!
O Mendanha obedeceu. O general levantou-se. (Brilhavam os alamares dourados contra o pano negro do dólmã.) Tirou da gaveta da mesa a página do jornal que trazia o famoso artigo. Aproximou-se do adversário.
— Abra a boca! — ordenou.
Mendanha abriu, sem dizer palavra. O general picou a página em pedacinhos, amassou-os todos numa bola e atochou-a na boca do outro.
— Come! — gritou.
Os olhos de Mendanha estavam arregalados. O sangue lhe fugira do rosto.
— Coma! — sibilou o general.
Mendanha suplicava com o olhar. O general encostou-lhe no peito o cano do revolver e rosnou com raiva mal contida.
— Coma, pústula!
E o homem comeu.
Um avião passa roncando por cima da casa, cujas vidraças trepidam. O general tem um sobressalto desagradável. A sombra do grande pássaro se desenha lá em baixo, no chão do jardim. O general ergue o punho para o ar, numa ameaça.
— Patifes! Vagabundos, ordinários! Não têm mais o que fazer? Vão pegar no cabo duma enxada, seus canalhas. Isso não é serviço de homem macho.
Fica olhando, com olho hostil, o avião amarelo que passa voando rente aos telhados da cidade.
No seu tempo não havia daquelas engenhocas, daquelas malditas máquinas. Para que servem? Para matar gente. Para acordar quem dorme. Para gastar dinheiro. Para a guerra. Guerras covardes, as de hoje! Antigamente brigava-se em campo aberto, peito contra peito, homem contra homem. Hoje se metem os poltrões nesses “banheiros” que voam, e lá de cima se põem a atirar bombas em cima da infantaria. A guerra perdeu toda a sua dignidade.
O general remergulha no devaneio.
93… Foi lindo. O Rio Grande inteiro cheirava a sangue. Quando se aproximava a hora do combate, ele ficava assanhado. Tinha perto de cinqüenta anos mas não se trocava por nenhum rapaz de vinte.
Por um instante, o general se revê montado no seu tordilho, teso e glorioso, a espada chispando ao sol, o pala voando ao vento… Vejam só! Agora está aqui, um caco velho, sem força nem serventia, esperando a todo instante a visita da morte. Pode entrar. Sente-se. Cale a boca!
Morte… O general vê mentalmente uma garganta aberta sangrando. Fecha os olhos e pensa naquela noite… Naquela noite que ele nunca mais esqueceu. Naquela noite que é uma recordação que o há de acompanhar decerto até o outro mundo… se houver outro mundo.
Os seus vanguardeiros voltaram contando que a força revolucionária estava dormindo desprevenida, sem sentinelas… Se fizessem um ataque rápido, ela seria apanhada de surpresa. O general deu um pulo. Chamou os oficiais. Traçou o plano. Cercariam o acampamento inimigo. Marchariam no maior silêncio e, a um sinal, cairiam sobre os “maragatos”. Ia ser uma festa! Acrescentou com energia: “Inimigo não se poupa. Ferro neles!”
Sorriu um sorriso torto de canto de boca. (Como a gente se lembra dos mínimos detalhes…) Passou o indicador da mão direita pelo próprio pescoço, no simulacro duma operação familiar… Os oficiais sorriam, compreendendo. O ataque se fez. Foi uma tempestade. Não ficou nenhum prisioneiro vivo para contar dos outros. Quando a madrugada raiou, a luz do dia novo caiu sobre duzentos homens degolados. Corvos voavam sobre o acampamento de cadáveres. O general passou por entre os destroços. Encontrou conhecidos entre os mortos, antigos camaradas. Deu com a cabeça dum prisioneiro fincada no espeto que na tarde anterior servira aos maragatos para assar churrasco. Teve um leve estremecimento. Mas uma frase soou-lhe na mente: “Inimigo não se poupa”.
O general agora recorda… Remorso? Qual! Um homem é um homem e um gato é um bicho.
Lambe os lábios gretados. Sede. Procura gritar:
— Petronilho!
A voz que sai da garganta é tão remota e apagada que parece a voz de um moribundo, vinda do fundo do tempo, dum acampamento de 93.
— Petronilho! Negro safado! Petronilho!
Começa a bater forte no chão com a ponta da bengala, frenético. A neta aparece à porta. Traz nas mãos duas agulhas vermelhas de tricô e um novelo de lã verde.
— Que é, vovô?
— Morreu a gente desta casa? Ninguém me atende. Canalhas! Onde está o Petronilho?
— Está lá fora, vovô.
— Ele não ganha pra cuidar de mim? Então? Chame ele.
— Não precisa ficar brabo, vovô. Que é que o senhor quer?
— Quero um copo d’água. Estou com sede.
— Por que não toma suco de laranja?
— Água, eu disse.
A neta suspira e sai. O general entrega-se a pensamentos amargos. Deus negou-lhe filhos homens. Deu-lhe uma única filha mulher que morreu no dia em que dava à luz uma neta. Uma neta! Por que não um neto, um macho? Agora aí está a Juventina, metida o dia inteiro com tricôs e figurinos, casada com um bacharel que fala em socialismo, na extinção dos latifúndios, em igualdade. Há seis anos nasceu-lhe um filho. Homem, até que enfim! Mas está sendo mal educado. Ensinam-lhe boas maneiras. Dão-lhe mimos. Estão a transformá-lo num maricas. Parece uma menina. Tem a pele tão delicada, tão macia, tão corada… Chiquinho… Não tem nada que lembre os Campolargos. Os Campolargos que brilharam na guerra do Paraguai, na Revolução de 1893 e que ainda defenderam o governo em 1923…
Um dia ele perguntou ao menino:
— Chiquinho, você quer ser general como o vovô?
— Não. Eu quero ser doutor como o papai.
— Canalhinha! Patifinho!
Petronilho entra, trazendo um copo de suco de laranja.
— Eu disse água! — sibila o general.
O mulato sacode os ombros.
— Mas eu digo suco de laranja.
— Eu quero água. Vá buscar água, seu cachorro!
Petronilho responde sereno:
— Não vou, general de bobagem…
O general escabuja de raiva, esgrime a bengala, procurando inutilmente atingir o criado. Agita-se todo, num tremor desesperado.
— Canalha! — cicia arquejante — Vou te mandar dar umas chicotadas!
— Suco de laranja — cantarola o mulato.
— Água! Juventina! Negro patife! Cachorro!
Petronilho sorri:
— Suco de laranja, seu sargento!
Com um grito de fera o general arremessa a bengala na direção do criado. Num movimento ágil de gato, Petronilho quebra o corpo e esquiva-se do golpe.
O general se entrega. Atira a cabeça para trás e, de braços caídos, fica todo trêmulo, com a respiração ofegante e os olhos revirados, uma baba a escorrer-lhe pelos cantos da boca mole, parda e gretada.
Petronilho sorri. Já faz três anos que assiste com gozo a esta agonia. Veio oferecer-se de propósito para cuidar do general. Pediu apenas casa, comida e roupa. Não quis mais nada. Só tinha um desejo: ver os últimos dias da fera. Porque ele sabe que foi o general Chicuta Campolargo que mandou matar o seu pai. Uma bala na cabeça, os miolos escorrendo para o chão… Só porque o mulato velho na última eleição fora o melhor cabo eleitoral da oposição. O general chamou-o a intendência. Quis esbofeteá-lo. O mulato reagiu, disse-lhe desaforos, saiu altivo. No outro dia…
Petronilho compreendeu tudo. Muito menino, pensou na vingança mas, com o correr do tempo, esqueceu. Depois a situação política da cidade melhorou. O general aos poucos foi perdendo a autoridade. Hoje os jornais já falam na “hiena que bebeu em 93 o sangue dos degolados”. Ninguém mais dá importância ao velho. chegou aos ouvidos de Petronilho a notícia de que a fera agonizava. Então ele se apresentou como enfermeiro. Agora goza, provoca, desrespeita. E fica rindo… Pede a Deus que lhe permita ver o fim, que não deve tardar. É questão de meses, de semanas, talvez até de dias… O animal passou o inverno metido na toca, conversando com os seus defuntos, gritando, dizendo desaforos para os fantasmas, dando vozes de comando: “Romper fogo! Cessar Fogo! Acampar”.
E recitando coisas esquisitas. “V. Exa. precisa de ser reeleito para glória do nosso invencível Partido”. Outras vezes olhava para o busto e berrava: “Inimigo não se poupa. Ferro neles”.
Mais sereno agora, o general estende a mão pedindo. Petronilho dá-lhe o copo de suco de laranja. O velho bebe, tremulamente. Lambendo os beiços, como se acabasse de saborear o seu prato predileto, o mulato volta para a cozinha, a pensar em novas perversidades.
O general contempla os telhados de Jacarecanga. Tudo isto já lhe pertenceu… Aqui ele mandava e desmandava. Elegia sempre os seus candidatos; derrubava urnas, anulava eleições. Conforme a sua conveniência, condenava ou absolvia réus. Certa vez mandou dar uma sova num promotor público que não lhe obedeceu à ordem de ser brando na acusação. Doutra feita correu a relho da cidade um juiz que teve o caradurismo de assumir ares de integridade de opor resistência a uma ordem sua.
Fecha os olhos e recorda a glória antiga.
Um grito de criança. O general baixa os olhos. No jardim, o bisneto brinca com os pedregulhos do chão. Seus cabelos louros estão incendiados de sol. O general contempla-o com tristeza e se perde em divagações…
Que será o mundo de amanhã, quando Chiquinho for homem feito? Mais aviões cruzarão nos céus. E terá desaparecido o último “homem” da face da terra. Só restarão idiotas efeminados, criaturas que acreditam na igualdade social, que não têm o sentido da autoridade, fracalhões que não se hão de lembrar dos feitos dos seus antepassados, nem… Oh! Não vale a pena pensar no que será amanhã o mundo dos maricas, o mundo de Chiquinho, talvez o último dos Campolargos!
E, dispnéico, se entrega de novo ao devaneio, adormentado pela carícia do sol.
De repente, a criança entra de novo na sala, correndo, muito vermelho:
— Vovô! Vovô!
Traz a mão erguida e seus olhos brilham. Faz alto ao pé da poltrona do general.
— A lagartixa, vovozinho…
O general inclina a cabeça. Uma lagartixa verde se retorce na mãozinha delicada, manchada de sangue. O velho olha para o bisneto com ar interrogador. Alvorotado, o menino explica:
— Degolei a lagartixa, vovô!
No primeiro instante o general perde a voz, no choque da surpresa. Depois murmura, comovido:
— Seu patife! Seu canalha! Degolou a lagartixa? Muito bem. Inimigo não se poupa. Seu patife!
E afaga a cabeça do bisneto, com uma luz de esperança nos olhos de sáurio.
quarta-feira, 16 de março de 2011
MENSUR
A nova graphic novel de Rafael Coutinho é baseada em uma prática de esgrima das fraternidades alemãs, em voga dos séculos 16 ao 19 mas que existe até hoje. Não se trata de um esporte, mas de um ritual de passagem e preservação da honra e fortalecimento dos laços entre os homens.
domingo, 20 de fevereiro de 2011
quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011
DANÇA, DANÇA BONEQUINHA
Hans Christian Andersen
— Oh, não passa de uma cantiguinha idiota para criancinhas pequeninas — declarou a tia Malle. — Por muito boa vontade que tenha, não vejo qualquer significado na Dança, dança, bonequinha.É uma palermice, um disparate!
Mas a pequena Amália via grande significado na cantiga. Ela tinha só três anos, mas já sabia brincar às bonecas e estava a educar as suas para serem tão inteligentes como a tia Malle.
Costumava ir lá a casa um estudante, que ajudava os irmãos da Amália a fazer os trabalhos de casa e conversava muito com ela e com as suas bonecas. Ele fazia-a rir, porque era muito engraçado e brincalhão, mas nunca fazia troça dela e falava de coisas importantes que ambos compreendiam.
A tia Malle insistia em que ele não sabia lidar com crianças e que as cabecitas delas não podiam entender todos os seus disparates ridículos. Mas a da pequena Amália podia. Na realidade, ela aprendeu a cantiga do estudante toda de cor e costumava cantá-la às suas três bonecas. Duas delas eram novas, uma menina e um menino, e a terceira já tinha um ano e chamava-se Lisa. Lisa ouvia a cantiga — e até entrava nela!
Dança, dança, bonequinha!
Como ela é bonitinha!
Bonito também é o seu noivo, Raul,
De calças brancas e casaco azul,
Com um chapéu alto, encantador,
E sapatos novos que lhe fazem dor!
Ele é belo, ela uma estrelinha,
Dança, dança, bonequinha.
A Lisa do ano passado
Dança com ar engraçado.
Louro é o cabelo que tem
E o seu rosto brilha também.
Parece ser a mais nova,
A velha Lisa, que canta a trova.
Roda e salta ainda uma vez,
Dancem lá todas as três!
Dancem leves como o ar,
Não há nada que enganar.
É preciso que não esqueçam
As piruetas quando dançam.
Com vénia à esquerda e à direita
A dança será perfeita!
Alegrias, meu tesouro,
Bonequinhas, petiz d’ouro.
Bem, as bonecas compreendiam a canção, a pequena Amália compreendia-a e o estudante também. Afinal, ele é que a tinha escrito e ele dizia que era excelente. Só a tia Malle é que não a percebia — mas a verdade é que ela já tinha saído do mundo da infância há tanto tempo que não admirava. A tia Malle podia dizer que a cantiga era um disparate, mas a Amália não achava. E continuava a cantá-la.
É por ela a cantar que a temos aqui.
terça-feira, 15 de fevereiro de 2011
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011
TRÓPICO DE CÂNCER
Henry Miller
Trechos:
Hoje sinto orgulho que dizer que sou inumano, que não pertenço a homens e governos, que nada tenho a ver com a maquinaria rangente da humanidade – eu pertenço à terra! (...)
Lado a lado com a espécie humana corre outra raça de seres, os inumanos, a raça de artistas que, incitados por desconhecidos impulsos, tomam a massa sem vida da humanidade e, pela febre e pelo fermento com que a impregnam, transformam a massa úmida em pão, e pão em vinho, e o vinho em canção. Do composto morto e da escória inerte criam uma canção que contagia. Vejo esta outra raça de indivíduos esquadrinhando o universo, virando tudo de cabeça pra baixo, e os pés sempre se movendo em sangue e lágrima, as mãos sempre vazias, sempre se estendendo na tentativa de agarrar o além, o deus inatingível: matando tudo ao seu alcance a fim de acalmar o monstro que lhe corrói as entranhas. (...) E tudo quanto fique aquém desse aterrorizador espetáculo, tudo quanto seja menos sobressaltante, menos terrificante, menos louco, menos delirante, menos contagiante, não é arte. Esse resto é falsificação. Esse resto é humano. Pertence a vida e à ausência de vida.
(...) Se sou inumano é porque meu mundo transbordou de suas fronteiras humanas, porque ser humano parece uma coisa pobre, triste, miseravel, limitada pelos sentidos, restringidas pelas moralidades e pelos códigos, definida pelos lugares-comuns e ismos.
(...) Tenhamos um mundo de homens e mulheres com dínamos entre as pernas, um mundo de fúria natural, de paixão, ação, drama, sonhos, loucuras, um mundo que produza êxtase e não peidos secos.
(...) Que os mortos comam os mortos. Dancemos nós os vivos, à beira da cratera, uma última e agonizante dança. Mas que seja uma dança!
Não tenho dinheiro, nem recursos, nem esperanças. Sou o mais feliz dos homens vivos. Há um ano, háseis meses, eu pensava ser um artista. Não penso mais nisso. Eusou. Tudo quanto era literatura se desprendeu de mim. Não há mais livros a escrever, graças a Deus.
E isto, então? Isto não é um livro. Isto é uma injúria, calúnia, difamação de caráter. Isto não é um livro, no sentindo comum da palavra. Não, isto é um prolongado insulto, uma cusparada na cara da Arte, um pontapé no traseiro de Deus, do Homem, do Destino, do Tempo, do Amor, da Beleza... e do que mais quiserem. Vou cantar para você, um pouco desafinado talvez, mas vou cantar. Cantarei enquanto você coaxa, dançarei sobre seu cadáver sujo...
domingo, 13 de fevereiro de 2011
sábado, 12 de fevereiro de 2011
sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011
sexta-feira, 21 de janeiro de 2011
Os 10 Benefícios do Sexo!
1. Sexo é um tratamento de beleza. Provas científicas demonstram que quando as mulheres fazem amor produzem maiores quantidades de hormônio estrógeno que dá brilho ao cabelo e deixa a pele tenra. (!!!)
2. Fazer amor de forma tranqüila e relaxada reduz as probabilidades de sofrer dermatites, urticárias ou granos. O suor que se produz limpa os poros e dá luminosidade para a pele.(Todo mundo merece um banho a dois!!!)
3. Fazer amor queima as calorias durante a cena romântica. (Todo mundo merece!!!)
4. O sexo é um dos esportes mais seguros que se pode
praticar. Estica e tonifica quase todos os músculos do corpo. Se desfruta mais que nadar 20 piscinas ,ou outro esporte que solicite equipamentos especiais. (Vamos malhar!!!)
5. O sexo é uma cura instantânea para a depressão leve. Libera endorfinas na corrente sangüínea, produzindo uma sensação de euforia e deixa com uma sensação de bem-estar. (Todos os homens merecem!!!)
6. Quanto mais sexo praticar, mais sexo vai querer. O corpo sexualmente ativo desprende maiores quantidades de feromônios. Estes sutís perfumes sexuais deixam louco o sexo oposto! (Todas as mulheres merecem!!!)
7. O sexo é o tranqüilizante mais seguro do mundo. É 10 VEZES MAIS EFETIVO QUE O VALIUM.(Chega de nervosismo!! !)
8. Beijar todos dias mantém triste o dentista. O beijo secreta saliva que limpa os restos de comida dos dentes e reduz os níveis dos ácidos causadores de cáries, e previne contra o tártaro.(Huuuuummmmm! !!)
9. O sexo realmente alivia as dores de cabeça . Uma sessão fazendo amor alivia a tensão que aperta os vasos sanguíneos do cérebro. (Tylenol nunca mais!!!)
10. Fazer muito amor descongestiona o nariz fechado . Sexo é um anti-histamínico internacional. Ajuda a combater asma e alergias. DESFRUTE DO SEXO!!!!!!!! !!!!
quarta-feira, 19 de janeiro de 2011
terça-feira, 18 de janeiro de 2011
segunda-feira, 10 de janeiro de 2011
sexta-feira, 7 de janeiro de 2011
quinta-feira, 6 de janeiro de 2011
ÁRVORE DE FUMAÇA
Denis Johnson
Primeiro Capítulo:
Hoje, às três da madrugada, mataram o presidente Kennedy. O marinheiro Houston e os outros dois recrutas ainda dormiam quando correram pelo mundo as primeiras notícias. Havia um pequeno bar na ilha, um pardieiro com enormes ventiladores no teto, um balcão e uma máquina de pinball; os dois fuzileiros que tocavam o negócio foram acordá-los para contar o que sucedera ao presidente. Então se sentaram com os três marujos nos beliches da cabana Quonset reservada para militares em trânsito e ficaram tomando cerveja e observando o ar-condicionado a gotejar água numa lata de café. A Rádio das Forças Armadas da baía de Subic passou a noite no ar, divulgando boletins sobre o inconcebível assassinato.
Agora, no fim da manhã, ao penetrar a selva de Ilha Grande empunhando uma espingarda calibre 22 emprestada, o marinheiro-aprendiz William Houston Jr. começava a se sentir sóbrio outra vez. Diziam que uns javalis selvagens vagavam naquela reserva militar insular que era tudo o que ele conhecia das Filipinas até então. Não sabia o que sentir por aquele país. Só queria caçar um pouco na mata. Diziam que lá havia javalis.
Ia pisando com cuidado, pensando nas cobras e tentando não fazer barulho, pois queria ouvir os javalis antes que o atacassem. Sabia que estava uma pilha de nervos. De toda parte chegavam dezenas de milhares de ruídos silvestres, os gritos das gaivotas e o distante rumor das ondas. Se ele parasse um minuto para escutar, chegaria a detectar a pulsação abafada no calor da própria carne e o ranger do suor no ouvido. Se ficasse imóvel por dois segundos, os insetos o encontrariam e se poriam a zunir junto à sua cabeça.
O marinheiro Houston apoiou a espingarda numa pequena bananeira, tirou a faixa da testa, torceu-a, enxugou o rosto e descansou um pouco, enxotando os mosquitos com o pano e coçando o saco distraidamente. Ali pero, uma gaivota parecia brigar consigo mesma, uma série de ganidos de protesto interrompidos por contraditórios gritos mais graves que soavam como Rá! Rá! Rá! E algo que passou de uma árvore para outra lhe chamou a atenção. Com o olhar fixo nos galhos da árvore, uma seringueira, Houston estendeu o braço para alcançar a espingarda. A coisa se mexeu outra vez. Então ele viu que era uma espécie de macaco não muito maior do que um chihuahua. Não chegava a ser um javali, mas até que valia a pena vê-lo, agarrado ao tronco da árvore pela mão esquerda e os dois pés, cavando a cortiça fina com ar de miúda e exasperada pressa. O marinheiro Houston enquadrou o magro dorso do animal na mira da espingarda. Ergueu o cano alguns graus, apontando para a cabeça do macaco. Sem pensar em absolutamente nada, puxou o gatilho.
O bichinho jogou-se contra a árvore, braços e pernas estirados enfaticamente, e a seguir, abraçando o próprio corpo como se quisesse coçar as costas, caiu no chão. O marinheiro Houston ficou horrorizado com as convulsões que presenciou. Apoiando o braço no chão, o macaco ergueu o corpo e sentou contra o tronco da árvore, as pernas bem esticadas, como uma pessoa a descansar de um trabalho pesado.
Houston avançou alguns passos e, a poucos metros de distância, viu que o pêlo do macaco brilhava muito e que o movimento das folhas, no alto, dava-lhe uma coloração castanho-avermelhada na sombra e loira na luz. O animal olhava de um lado para outro, a respiração rápida, custosa, a barriga a se dilatar tremendamente a cada alento, qual uma bexiga. O tiro tinha sido baixo, saíra pelo abdômen.
O marinheiro Houston sentiu a própria barriga partir-se ao meio. "Caramba!", gritou para o macaco, como se isso melhorasse o estado constrangedor e odioso do animal. Sentiu que sua cabeça ia estourar se a manhã continuasse a arder na selva à sua volta, se as gaivotas insistissem em gritar, se o macaco seguisse olhando para os lados com cautela, virando a cabeça e os olhos pretos como uma pessoa interessada no desenrolar de uma conversa
qualquer, de uma discussão qualquer, de uma briga qualquer que a selva ou a manhã-ou o momento-estava tendo consigo. Aproximando-se, largou a espingarda no chão e pegou o animalzinho nas mãos, uma a lhe segurar o traseiro; a outra, a cabeça. Fascinado, mas logo com repugnância, percebeu que o macaco estava chorando. A respiração lhe saía aos soluços, e as lágrimas lhe escorriam dos olhos quando ele piscava. Olhou para lá e para cá, mostrando-se tão pouco interessado pelo marinheiro Houston como por tudo quanto via. "Ei", disse o rapaz, mas o macaco não deu sinal de ouvi-lo.
O coração do bichinho aninhado em suas mãos parou de bater. Ele chegou a sacudi-lo, mas sabia que era inútil. Sentiu-se culpado de tudo e, sem ninguém por perto para se inteirar do que quer que fosse, chorou como criança. Tinha dezoito anos.
Ao voltar para o bar à beira-mar, Houston viu que um cardume de águasvivas tingia de violeta a praia cinzenta, centenas delas, cada qual mais ou menos do tamanho da mão de um homem, ondulando-se, translúcidas sob o sol. O pequeno porto da ilha estava deserto. Nenhum barco ia para lá, a não ser
a balsa da base naval do outro lado da baía de Subic. Poucos metros mais adiante, erguia-se um par de choupanas de bambu diante da faixa de areia sob árvores magníficas, esporádicas florzinhas roxas sobre os telhados. De dentro de uma delas chegavam os gemidos de um casal fazendo amor, uma puta, imaginou Houston, e um marinheiro. Acocorado na sombra, ele ficou escutando até que os dois parassem de rir, parassem de respirar; então um lagarto começou a gargantear no beiral da choupana: um breve trinado anunciativo e, a seguir, uma série de ásperas risadinhas entrecortadas-tchec-co; tchec-co; tchec-co...
Ao cabo de algum tempo, o homem saiu, um quarentão com corte de cabelo militar, toalha enrolada na cintura e um cigarro preso entre os dentes; e lá ficou, imóvel, segurando a toalha na barriga, os olhos voltados para uma coisa próxima, mas invisível, e a oscilar. Com certeza um oficial. Segurando o cigarro com o polegar e o indicador, deu uma tragada, e uma névoa lhe envolveu o rosto.
"Mais uma missão cumprida."
A porta da choupana vizinha se abriu, e uma filipina nua, a mão no sexo, disse: "Ele não gosta da coisa".
O oficial gritou: "Ei, Lucky".
Um asiático baixinho apareceu à porta, estava fardado.
"Você negou fogo?"
O homem respondeu: "Isso dá azar".
"Carma", corrigiu o outro.
"Pode ser", disse o rapazinho.
O oficial se dirigiu a Houston: "Topa uma cerveja?".
Houston queria não estar lá, mas só então percebeu que se esquecera de ir embora, e agora o homem estava falando com ele. Com a mão livre, o oficial
jogou fora o cigarro e empurrou a toalha para o lado. Disse-lhe-enquanto soltava quase em linha reta um jorro que espumou na terra, destruindo a bituca-"Se você gosta do que está vendo, é só dizer".
Sentindo-se tolo, Houston entrou no bar. Lá dentro, duas jovens filipinas com vestidos de estampas alegres estavam jogando fliperama e falando tão depressa, enquanto as pás enormes giravam no alto, que ele quase perdeu o equilíbrio. Sam, um dos fuzileiros, estava atrás do balcão. "Cala a boca, cala a boca", disse. Ergueu a mão, que segurava uma espátula.
"E eu disse alguma coisa?"
"Espera." Sam aproximou a cabeça do rádio e, como um cego, concentrou-
se no som. "Pegaram o cara."
"Foi o que disseram antes do café da manhã. Eu já estou sabendo."
"Não é só isso."
"Ok", disse Houston.
Tomou água gelada e ficou escutando o rádio, mas, naquele momento, estava com tanta dor de cabeça que não conseguia entender uma palavra. Pouco depois, o oficial chegou com uma vistosa camisa havaiana, acompanhado do jovem asiático. "Coronel, já fisgaram o homem", anunciou Sam. "O nome dele é
Oswald."
O coronel disse: "Que porra de nome é esse?"-aparentemente tão indignado com o nome do assassino quanto com sua atrocidade.
"Um bom filho-da-puta", rosnou Sam.
"Filho-da-puta mesmo", concordou o outro. "Eu quero é que cortem o saco dele. Quero que recheiem o rabo dele de chumbo." Enxugando as lágrimas sem constrangimento, disse: "Oswald é o nome ou o sobrenome?".
Houston pensou que primeiro tinha visto o oficial mijar no chão, agora o via chorar.
Sam se voltou para o asiático. "Senhor, a gente aqui é muito hospitaleira.
Mas geralmente não serve militares filipinos."
"Lucky é do Vietnã", informou o coronel.
"Do Vietnã. Se perdeu?"
"Não, não me perdi", disse o rapaz.
"Esse cara já é piloto", explicou o coronel. "Capitão da Força Aérea do Vietnã do Sul."
Sam perguntou ao jovem capitão: "É mesmo? Por acaso vocês estão em guerra por lá? Guerra?-bada-bada-bada". E, empunhando uma submetralhadora
invisível, agitou as mãos em uníssono. "Estão ou não estão?"
O capitão desviou a vista do norte-americano, formulou as frases mentalmente, ensaiou-as, tornou a olhar para ele e disse: "Não sei se estamos em guerra. Muita gente morreu".
"É isso aí", concordou o coronel. "Isso é que conta."
"O que você está fazendo aqui?"
"Treinamento com helicópteros."
"Você não tem idade nem para pilotar velocípede", riu-se Sam. "Quantos
anos?"
"Vinte e dois."
"Eu vou servir uma cerveja para o japoronga aí. Gosta da San Miguel? Se
ofendeu porque te chamei de japoronga? É um vício que eu tenho."
"Chama ele de Lucky", disse o coronel. "O cara está pagando, Lucky. O
que é que vai?"
O rapaz enrugou a testa e, depois de deliberar intimamente, cheio de mistério,
pediu: "Uma Lucky Lager".
"E que cigarro você fuma?", perguntou o coronel.
"Eu gosto do Lucky Strike", disse o asiático, e todos riram.
Súbito, Sam olhou para o jovem marinheiro Houston como se o estivesse reconhecendo e perguntou: "Cadê a minha espingarda?".
Houston demorou um instante para compreender as palavras. Mas logo
disse: "Merda".
"Cadê?" Sam não parecia particularmente interessado-apenas curioso.
"Merda", repetiu o marinheiro Houston. "Vou buscar."
Teve de voltar à selva. Tanto calor e umidade quanto antes. Os mesmos animais faziam o mesmo barulho, e a situação seguia igualmente terrível, ele estava longe dos lugares da sua memória, e a marinha ainda seria dona dele durante dois anos, e o presidente, o presidente do seu país continuava morto-mas o macaco desaparecera. A espingarda de Sam estava jogada no mato, tal como ele a tinha deixado, e não havia sinal do macaco. Um bicho o levara.
Houston temia vê-lo novamente, de modo que foi com alívio que voltou para o bar sem ter de olhar para o que fizera. No entanto, sabia, sem muita aflição nem mal-estar, que nunca mais iria se livrar daquela imagem. O marinheiro Houston foi promovido uma vez e depois rebaixado. Viu de relance algumas grandes capitais do Sudeste asiático, percorreu ruas quentes, abafadas, nas quais as lanternas oscilavam ao sabor da brisa rançosa, mas nunca
ficou em terra o tempo suficiente para se desacostumar do balanço do navio, somente o necessário para ficar confuso, para ver caras vibrantes e ouvir risos
sofridos. Terminada a viagem, alistava-se em outra, encantado sobretudo com o poder de criar seu destino com uma mera assinatura. Houston tinha dois irmãos mais jovens. James, o mais próximo dele em idade, alistou-se na infantaria e foi mandado para o Vietnã; uma noite, pouco antes de terminar sua segunda viagem na marinha, Houston tomou um trem da base naval de Yokosuka, no Japão, para a cidade de Yokohama, onde tinha combinado de se encontrar com James, no Peanut Bar. Foi em 1967, mais de três anos depois do assassinato de John Kennedy.
No vagão, sentiu-se um verdadeiro gigante, olhando por cima das cabeças de cabelo preto como breu. Os pequeninos passageiros japoneses o encararam sem alegria, sem dó, sem vergonha, até que ele sentisse como se lhe estivessem torcendo o pescoço. Desembarcou e tomou um caminho reto, no chuvisco noturno, acompanhando os molhados trilhos do bonde até o Peanut Bar.
Estava ansioso por dizer alguma coisa em inglês. O Peanut Bar era grande e estava lotado de marujos e desleixados tripulanes da marinha mercante. As vozes eram densas em sua cabeça; a fumaça, densa em seus pulmões. Avistou James perto do palco e foi ter com ele, a mão estendida para um aperto. "Vou embora de Yokosuka, cara! Volto a embarcar!", foi a primeira coisa que disse.
O conjunto musical abafou as palavras do irmão mais velho-um quarteto japonês de imitadores dos Beatles, todos de indumentária branquíssima, com franja. James, à paisana, estava sentado a uma mesinha, olhando para eles, alheio a tudo que não fosse aquele espetáculo, e Bill jogou um amendoim na boca.
James apontou para os músicos. "Que coisa mais ridícula." Teve de gritar para ser ouvido, ainda que mal.
"O que você queria? Isto aqui não é Phoenix."
"Quase tão ridículo quanto você vestido de marinheiro."
"Eles me dispensaram há dois anos, e eu me realistei. Sei lá-resolvi me
realistar."
"Estava bêbado?"
"É, completamente bêbado."
Bill Houston ficou surpreso ao ver que o irmão já não era um garotinho. Usava o cabelo cortado rente, coisa que tornava seu maxilar mais largo e forte, e mantinha o corpo empinado, quase sem se mexer. Mesmo à paisana, era um soldado.
Pediram canecos de chope e concordaram que, fora certas coisas esquisitas, os dois gostavam do Japão-muito embora, até então, James tivesse passado seis horas no país, entre um vôo e outro, e na manhã seguinte fosse tomar o avião para o Vietnã-ou, pelo menos, gostavam dos japoneses. "Vou te contar", disse Bill quando o conjunto fez uma pausa e um pôde ouvir o outro, "os japas deixaram isto aqui uma jóia. Mas lá nos trópicos, cara, é uma meleca. As pessoas têm merda na cabeça."
"Foi o que me disseram. Vou ver."
"E a guerra?"
"O que tem a guerra?"
"O que eles dizem?"
"Em geral, dizem que a gente fica dando tiro em árvores, e as árvores atiram de volta."
"Mas, sério. Aquilo lá é foda, não é?"
"Isso eu só vou saber quando estiver lá."
"Está com medo?"
"No treinamento, eu vi um cara acertar outro cara sem querer."
"Verdade?"
"Na bunda, dá para acreditar? Foi um acidente."
Bill Houston disse: "Eu vi um cara matar outro em Honolulu".
"Como, num combate?"
"Não, é que o filho-da-puta estava devendo uma grana para um outro
filho-da-puta."
"Onde foi, num bar?"
"Não. Que bar o quê. O cara deu a volta na casa do outro, chegou no fundo e gritou para ele aparecer na janela. A gente estava passando por ali e ele me
disse: 'Espera aí, eu preciso acertar uma dívida com aquele pilantra'. Eles conversaram um pouco e então o cara que estava comigo meteu bala no da casa. Encostou a pistola na tela da janela, cara, e pá, assim, de uma vez. Uma 45 automática.
O sujeito caiu de costas dentro do quarto."
"Está brincando."
"Não estou, não."
"Sério mesmo? Você viu?"
"A gente saiu para dar uma volta. Eu não imaginei que ele fosse apagar alguém."
"O que você fez?"
"Só faltei cagar nas calças. Ele virou, guardou a pistola debaixo da camisa e disse: 'Vem, vamos tomar uma'. Como se não tivesse acontecido nada."
"E o que você disse?"
"Achei melhor nem tocar no assunto."
"Sei. Achou melhor. O que você disse, porra?"
"Ah, o problema é que eu não sabia o que ele achava de me ter por testemunha.
Foi por isso que perdi o embarque. Ele ia no nosso navio. Se eu tivesse embarcado com aquele cara a bordo, ia passar um mês e meio sem poder fecharos olhos."
Enquanto bebiam de seus canecos, os irmãos se puseram a vasculhar a mente em busca de um assunto sobre o qual conversar.
"Quando aquele cara levou o tiro na bunda", disse James, "entrou em choque imediatamente."
"Porra. Quantos anos você tem?"
"Eu?"
"É."
"Quase dezoito."
"O exército deixou você se alistar só com dezessete anos?"
"Não. Eu menti."
"Não está com medo?"
"Estou. Não o tempo todo."
"Não o tempo todo?"
"Nunca vi um combate. Quero ver a coisa de verdade, a merda de verdade.
Estou muito a fim."
"Seu porra-louca de merda."
O conjunto voltou a tocar, começando com um número dos Kinks intitulado
"You Really Got Me":
You really got me...
You really got me...
You really got me...
Os dois irmãos não tardaram a brigar por alguma coisa sem importância, e Bill Houston entornou o caneco de chope no colo de uma pessoa sentada à mesa vizinha-uma japonesinha que encolheu os ombros e fez uma cara triste e humilhada. Estava em companhia de uma amiga e também de dois americanos, dois rapazinhos que não souberam como reagir.
Enquanto a bebida escorria pela borda da mesa, James tentava desajeitadamente endireitar o caneco vazio, dizendo: "Isso acontece às vezes. Acontece". A moça não fez um único movimento para se secar. Ficou olhando para o colo.
"O que é que há com a gente afinal?", perguntou James ao irmão, "será que a gente pirou de vez? Sempre que a gente se junta acontece uma coisa ruim."
"Eu sei."
"Uma cagada."
"É, só cagada mesmo. Porque a gente é da mesma família."
"Do mesmo sangue."
"Essa bosta não me interessa mais."
"Deve interessar um pouco", insistiu James, "do contrário, por que você ia fazer essa puta viagem para se encontrar comigo em Yokohama?"
"É", concordou Bill, "no Peanut Bar."
"No Peanut Bar!"
"E por que eu perdi o meu navio?"
"Perdeu?"
"Ele ainda deve estar lá. Mas tomara que já tenha zarpado."
Bill Houston sentiu os olhos se encherem de lágrimas, sufocado por uma súbita emoção com a vida e com aquele país em que todo o mundo dirigia à esquerda.
James disse: "Eu nunca gostei de você".
"Eu sei. Eu também não."
"Eu também não."
"Sempre te achei um imbecil filho-da-puta", disse Bill.
"E eu sempre te detestei", rebateu seu irmão.
"Puxa, desculpa", pediu Bill Houston à japonesa. Tirou uma nota da carteira e jogou-a na mesa molhada, de cem ienes ou de mil, não conseguia ver.
"É o meu último ano na marinha", explicou à moça. Teria lhe dado mais dinheiro, mas estava com a carteira vazia. "Eu atravessei esse oceano e morri. Eles podem muito bem levar os meus ossos. Estou completamente diferente."
Naquela tarde de novembro, no dia seguinte ao do assassinato de John Kennedy, o capitão Nguyen Minh, o jovem piloto da Força Aérea do Vietnã, mergulhou de máscara e snorkel a pouca distância da praia de Ilha Grande. Era a sua nova paixão. A experiência se parecia com a que devia ser a de um pássaro no ar: planar sobre uma paisagem, impelido pela ação de seus próprios membros, voar de verdade, coisa bem diferente de pilotar uma aeronave. Os pés-depato deram-lhe um grande impulso quando ele deslizou acima de um enorme cardume de peixes-papagaio que se alimentava num recife, a multidão de
pequenos bicos a tamborilar no coral feito um aguaceiro. Os homens da marinha norte-americana gostavam de scuba e mergulho e haviam danificado todo
o coral, tornando os peixes tão ariscos que o cardume desapareceu num piscar de olhos quando ele se aproximou.
Minh não era um grande nadador e, sem os outros por perto, pôde se entregar ao medo que deveras sentia. Tinha passado toda a noite anterior com a prostituta que o coronel fizera questão de pagar. A garota dormiu no chão; ele, na cama. Não a quisera. Não confiava muito nas filipinas.
Então, no fim da manhã daquele dia, foram ao bar e souberam do assassinato do presidente dos Estados Unidos, John Fitzgerald Kennedy. As duas filipinas ainda estavam com eles, cada uma delas agarrada a um dos poderosos braços do coronel, como que tentando prendê-lo à terra até que conseguisse controlar a surpresa e a dor. Passaram toda a manhã a uma mesa, escutando os noticiários. "Pelo amor de Deus", dizia o coronel. "Pelo amor de Deus." À tarde, ele se animou e tomou muita cerveja. Minh procurou não exagerar na bebida, mas quis ser educado e acabou ficando bem tonto. As garotas se foram, retornaram, o ventilador a girar no teto. Um recruta da marinha muito jovem juntou-se a eles, e alguém perguntou a Minh se era verdade que uma guerra
estava sendo travada em algum lugar no Vietnã.
Naquela noite, o coronel quis trocar as garotas, e Minh decidiu lhe fazer companhia, como na véspera, só para deixá-lo satisfeito e mostrar que estava
sinceramente agradecido. Em todo caso, a segunda garota era a sua preferida. Mais bonita aos seus olhos e falava melhor o inglês. Mas pediu para deixar o arcondicionado ligado. Ele preferia desligado. Não conseguia ouvir as coisas com o ar-condicionado funcionando. Gostava de janelas escancaradas. Gostava do barulho dos insetos batendo na tela. Não havia telas assim na casa de sua família no Delta do Mekong, nem mesmo na casa do tio em Saigon. "O que você quer?", perguntou a moça. Tratava-o com muito desprezo.
"Sei lá. Tira a roupa."
Eles se despiram e ficaram deitados lado a lado na cama de casal, no escuro,
só isso. Minh ouviu um marinheiro americano, algumas portas mais adiante,
conversando em voz alta com um amigo, talvez contando um caso. Não conseguiu
entender uma palavra, embora considerasse seu inglês muito bom.
"O do coronel é bem grande." A garota lhe estava apalpando o pênis. "Ele
é seu amigo?"
Minh respondeu: "Sei lá".
"Não sabe se ele é seu amigo. Por que está com ele?"
"Sei lá."
"Quando você o conheceu?"
"Há uma semana ou duas."
"Quem é ele?", quis saber a moça.
Minh disse: "Sei lá". Abraçou-a para que ela parasse de lhe tocar o sexo.
"Você só quer corpo-corpo?"
"O que é isso?"
"Só corpo-corpo." A garota se levantou e foi fechar a janela. Passou a
palma da mão no ar-condicionado, mas não tocou nos botões. "Me dá um
cigarro", pediu.
"Não. Eu não tenho."
Ela pôs o vestido, calçou as sandálias. Não usava roupa de baixo. "Me dá um trocado."
"O que quer dizer isso?"
"O que quer dizer isso?", repetiu a garota. "O que quer dizer isso? Me dá um trocado. Me dá um trocado."
"É dinheiro?", perguntou Minh. "Quanto?"
"Me dá um trocado", insistiu ela. "Quero ver se ele me vende cigarro. Quero dois maços-um para mim e um para a minha prima. Dois maços."
"Pede para o coronel."
"Um Winston. Um Lucky Strike."
"Com licença. Hoje está fazendo frio", disse ele. Levantou-se e se vestiu. Saiu à varanda. Ouviu às suas costas o barulhinho da moça lá dentro, às
voltas com a bolsa, colocando-a na mesa. Ela uniu as mãos, esfregou-as, e um perfume saiu pela janela aberta, pairou no ar, e Minh o inalou. Sentiu um
zumbido no ouvido, as lágrimas lhe turvaram a vista. Ele se livrou de um pigarro denso, inclinou a cabeça e escarrou entre os pés. Estava com saudade de sua terra.
Quando se alistou na força aérea e foi logo transferido a Da Nang para o treinamento de oficial, com apenas dezessete anos, passou várias semanas chorando toda noite na cama. Agora fazia quase três anos que pilotava caças, desde os dezenove. Dois meses antes, completara vinte e dois, e podia esperar prosseguir com as missões de vôo até que uma delas o matasse. Mais tarde, estava na varanda, sentado numa cadeira de lona, o corpo inclinado, os antebraços apoiados nos joelhos, fumando-na verdade, tinha um maço de Lucky Strike -, quando o coronel voltou da boate, abraçando as duas garotas. A acompanhante de Minh trazia um maço na mão e o agitava alegremente.
"Quer dizer que hoje você foi explorar o fundo do mar?"
Sem entender bem a pergunta, Minh respondeu: "É".
"Já entrou num daqueles túneis?", perguntou o coronel.
"Que é isso?-túneis."
"Túneis", disse o coronel. "O Vietnã está coalhado de túneis. Já entrou num deles?"
"Ainda não. Acho que não."
"Nem eu, meu filho", disse o coronel. "Queria saber o que tem dentro."
"Eu não sei."
"Ninguém sabe."
"Os comunas usam os túneis", disse Minh. "O vietminh."
Então o coronel voltou a lamentar o presidente morto, pois disse: "Este mundo cospe fora um homem tão maravilhoso como se fosse veneno". Minh tinha notado que era possível passar muito tempo conversando com o coronel sem perceber que ele estava bêbado.
Conhecera-o poucos dias antes, à entrada do campo de manutenção de helicópteros na base de Subic e, desde então, os dois passaram a se encontrar continuamente. Ninguém lhe apresentou o coronel-o próprio coronel se apresentou -, e parecia não ter nenhum vínculo oficial com ele. Estavam alojados com dezenas de oficiais em trânsito no quartel de um complexo originalmente construído, mas logo abandonado, segundo o coronel, pela Agência Central de Inteligência norte-americana. Minh sabia que valia a pena associar-se a ele. Tinha o costume de detectar as situações, as pessoas, como sorte ou azar. Bebia Lucky Lager, fumava Lucky Strike. O coronel o apelidara de "Lucky". "John Kennedy era um belo homem", disse o coronel. "Foi isso que acabou com ele."