segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007


Epílogo


1

— Reconhece a garota? É ela? — perguntou o delegado Tobias.

Eu disse que era.

Ela estava encolhida dentro do caixão, parecendo um feto desesperado para sair das entranhas da terra; as pontas dos dedos estavam em carne viva, os olhos estavam arregalados e tristes e a boca, escancarada num grito mudo.

2

Na semana anterior — Em algum lugar, alguém estava chorando.

Na porta, estava escrito: Nemo – Detetive particular.

Eu abri a porta e entrei em meu escritório-casa, sentindo uma baforada de ar quente e suor. Abri a janela, deixando entrar todos os ruídos da rua. Buzinas, pedaços de conversa, alguém chorando. O ventilador girava ruidosamente no teto. Sentei-me atrás da escrivaninha e abri a gaveta, onde guardei minha arma. Liguei a televisão do outro lado da sala: desenhos. O calor continuava.

A porta abriu-se de repente e ela estava parada no umbral, sorrindo nervosamente. Vestido claro, curto, cabelos escuros e longos, lisos, olhos tristes e boca suave. Uma mulher jovem e elegante. Ela disse meu nome — uma pergunta.

— Entre. Sente-se — disse eu.

Ela agradeceu, sentou-se e olhou nervosamente ao redor. Desejei ter limpado tudo. Ela perguntou:

— Conseguiu? Você o encontrou?

— Encontrei. Mas ele não pareceu nem um pouco feliz ao ser encontrado.

— Não. Imaginei que seria assim. E o que ele disse?

— Esqueça-o.

— Onde ele está?

— Ele não quer mais nada com você.

— Foi o que ele disse?

— Foi.

— Preciso ouvir isso dele.

— Esqueça-o.

— Eu estou pagando-o por um serviço, não por conselhos.

— Como quiser.

Eu lhe contei onde ele estava. Ela sorriu. Eu nunca mais a vi sorrindo. Não. Quando eu a vi novamente, ela estava morta.

Ela agradeceu, desculpou-se: “Não quis ser rude”, deixou um cheque e foi embora.

— Caso encerrado — murmurei. Fim. Sem epílogos nem nada.

Mas eu me sentia inquieto. Era uma sensação ruim na boca do estômago. Repassei os últimos dias, desde que ela entrara pela primeira vez em meu escritório; nervosa – sempre – e pedindo que eu encontrasse alguém.

— É meu marido.

Ela me contou como certo dia ele saíra, deixando apenas um bilhete cruel: “Talvez eu volte”.

— Já pensou que talvez ele não queira ser encontrado?

— Sim. Certamente. Senhor Nemo, o senhor já se apaixonou?

Pensei que eu me apaixonaria muito facilmente por ela. Uma mulher deslumbrante e inteligente. Sua voz era como veludo; macia e agradável ao toque, pensei. Mas respondi apenas com um “naturalmente” vago.

— Então deve entender que as pessoas apaixonadas são um tanto estúpidas. Eu sei que o mais correto seria esquecer e continuar a viver, mas aquele bilhete tem me tirado o sono. Compreende?

— Você quer uma resposta definitiva dele. Algo assim.

— Eu sei que parece tolice, mas como eu disse... — Ela deu de ombros.

— Vou precisar de algumas informações.

Ela me contou que ele tinha um pequeno avião e que fazia fretes com o mesmo. Rubor Verne era o nome dele.

Eu disse meu preço. Ela concordou. Levantou-se; uma mulher maravilhosa saindo pela porta.

3

Outro dia estava acabando. Nuvens de tons encharcados se formavam ao longe, mas vagarosamente. O campo era vasto e quase nu. Uma árvore seca balançava seus galhos como se fossem garras tentando agarrar o vento. Uma brisa quente que não nos deixava esquecer o corpo de uma bela mulher sendo retirado de sua cova. O odor da podridão deixou meu estomago pesado e dolorido.

4

Depois que ela saiu, eu tomei uma ducha fria. Na televisão, os desenhos pulavam e corriam e gritavam; histéricos, estridentes, engraçados. Deitei-me na cama dura e sonhei com seios cortados e ventiladores pingando sangue — ou talvez fossem hélices.

5

— Eu tenho uma pergunta. — O delegado entrou no carro, sentou-se com as pernas para fora e me encarou. — O que ela queria que você fizesse?

Eu encostei-me no carro e cruzei os braços.

— Eu não posso revelar, você sabe.

— Ela está morta. Acha que vai se importar? Além do mais, pode ter a ver com fato de ela estar morta.

— Não acha?

— Duvido.

— Olha. E se eu te prendesse? O que acha disso?

— Hunf. Eu vou fazer o seguinte. Como te devo uns favores, vou esperar até amanhã cedo. Depois, bem, depois, nada de favores. Nada mesmo.

Quando o corpo dela foi colocado dentro do carro do necrotério o delegado Tobias fechou a porta de seu gol e deu partida.

— Não quer uma carona?

Eu dei uma última olhada para a cova ainda aberta e dei a volta; entrei e disse:

— Me deixa no aeroporto?

— Vai fugir?

— Quer dizer que eu sou suspeito agora?

— Se fosse, não estaríamos conversando tão amigavelmente.

6

Eu não tive dificuldades em achar o marido dela. Bastou uma olhada na internet, à procura de “Aviações Rubor”, depois uma ligação passando-me por um possível cliente. Encontrei-o num aeroporto de fim de mundo, limpando a graxa dos dedos enquanto consertava o motor de seu avião.

— Eu não tenho nada a dizer — disse Rubor, quando lhe contei quem realmente eu era. Ele tinha apenas um olho. Estava encostado no velho, surrado, pequeno avião que era seu ganha pão; sorrindo para mim como um gambá bêbado. Ele tossiu. Repetiu que não tinha nada a dizer.

— Tudo o que ela quer é uma resposta definitiva.

— Bem, que tal essa: estou cansado de ser o bichinho dela, de viver às custas dela, de fazer o que ela quer. Estou feliz onde estou. Diga isso a ela.

— Por que o bilhete?

— Eu estava sendo maldoso. Estava irritado. Cansado. Foi só isso. Não sou tão crápula como você imagina.

— Certo. — Eu me virei para ir embora.

Rubor segurou meu braço.

— Vai dizer onde estou, certo? — perguntou ele.

— Estou sendo pago para isso.

Ele me soltou.

— Que seja.

7

Depois que ela morreu, eu voltei ao velho aeroporto de fim de mundo sem muitas esperanças. Não achei que Rubor ainda estaria por lá, mas estava. Eu podia ver seu avião parado na pista como um enorme pássaro adormecido. Numa mesa perto do galpão, ele e alguns outros caras jogavam cartas. Ele ria, provavelmente contente com a boa partida, mas fechou a cara quando me viu.

— Que porra, cara. O que você quer agora?

— É sobre sua esposa.

— Ela não é mais minha esposa. Ela veio com você?

— Não.

Alguma coisa em meus modos o deixou inquieto. Ele levantou-se, apesar dos protestos de seus companheiros.

— Vamos dar uma volta — disse ele para mim.

Quando estávamos a uma certa distância, ele perguntou:

— O que é agora?

— Ela está morta.

Ele pareceu chocado. Ou então fingia muito bem.

— Como?

— Você não sabe?

— Não, eu... Você acha que fui eu? Olha, eu nunca mais a vi. Achei que depois que você veio aqui, ela apareceria, mas nada. Que merda.

— É. Que merda.

— Como aconteceu?

Eu contei-lhe. Ele passou mal; vomitou e me olhou apavorado.

— Cristo — disse ele.

— É.

— Que merda, Cristo, que merda. Você está investigando...

— Estou.

— Por quê?

— Ela era minha cliente.

— Também era uma mulher deslumbrante. Você...

— Não.

— Ainda não acredito. No que aconteceu a ela, quero dizer.

8

Agora já se passou uma semana desde que ela morreu. Sem pistas. Nada. Ela morreu de morte horrível, alguém fez isso a ela, e nem eu nem a policia conseguimos descobrir nada. Nem quem, nem como, nem por que. Nada.

Nada.

9

Agora — agora estou olhando para a boca de um revólver: um segundo eterno. Eu sou atingido antes de ouvir o estampido. O impacto me empurra para a borda do terraço e então estou caindo, meu braço direito quase arrancado quando seguro na grade, meu ombro esquerdo escorrendo sangue. Eu ainda tenho tempo de olhar para cima e ver o rosto do assassino...

— Quem é você?

— Que diferença faz? — Ela sorri. — A atual esposa de Rubor.

Ela torna a sorrir.

E eu caio.

Começa a chover.

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