quinta-feira, 26 de julho de 2007

Das Palavras de Anton Tchecov


NO ESCURO

Uma mosca se meteu no nariz de Gáguin, promotor-assistente e conselheiro da Corte. Levada pela ansiedade, pela imprudência ou apenas perdida na escuridão, o fato é que o nariz não suportou a presença daquele corpo estranho e anunciou que ia espirrar. Gáguin espirrou com tal explosão, tão ruidoso e tão forte que a cama tremeu e uma de suas molas rangeu, reclamando. A esposa de Gáguin, loira enorme e gorda, também estremeceu e acordou. Abriu os olhos na escuridão, deu um suspiro e virou-se para o outro lado da cama. Cinco minutos mais tarde, virou-se novamente, em vão fechou com mais força as pálpebras - o sono não voltava. Depois de vários suspiros, virando-se na cama de um lado para o outro, ela ergueu-se, passou por cima do corpo do marido, calçou os chinelos e andou até a janela.
Lá fora dominava a escuridão, vislumbrava-se apenas o vulto das árvores e o negro contorno dos telhados das cocheiras. Do lado do nascente havia uma leve palidez que as nuvens iriam logo recobrir. O silêncio dominava e mesmo o guarda-noturno, que ganhava para quebrar o silêncio, não se fazia ouvir. Calava-se também a codorniz, única ave silvestre que não se amedronta com a vizinhança dos veranistas da capital.
Foi a própria Maria Mikháilovna quem quebrou o silêncio. Contemplando o pátio, de pé junto à janela, repentinamente, soltou um grito. Viu surgir, por entre os álamos mirrados e podados, um vulto andando em direção à casa. Pensou, a princípio que se tratava de alguma vaca ou cavalo, mas, depois de fixar a vista, percebeu os nítidos contornos de um homem.
Em seguida teve a sensação de que o vulto se aproximara da janela da cozinha e ali se detivera por um instante, então, como que indeciso, passou então uma das pernas pelo espaldar e desapareceu.
Um ladrão! Rapidamente, horríveis pensamentos se cruzaram na mente de Maria, ao mesmo tempo em que uma palidez mortal lhe cobria o rosto.
Em segundos sua imaginação esboçou o quadro tão temido pelos veranistas: ladrão penetra na cozinha.., passa à saia de jantar... a prataria está no armário.., entra no quarto de dormir.., um machado... um rosto de bandido... jóias... Os joelhos se dobram e um arrepio percorre-lhe a espinha.
- Vassil sacudiu o corpo do marido. - Vassil! Vassi! Prokofiévitch! Oh, meu Deus, parece morto! Acorde, Vassil! Por favor!
- O que foi? - mugiu o promotor-assistente, aspirando profundamente e movendo os maxilares com o barulho de quem mastiga.
- Pelo amor de Deus, acorde! Tem um ladrão na cozinha! Eu estava na janela e vi alguém entrar na cozinha; da cozinha ele irá para a sala... Os talheres estão no armário! Vassil! Foi assim mesmo que entraram na casa de Maria legorovna no ano passado.
- Casa de quem?..
- Mas o que você está querendo? - Meu Deus do céu! Você não está me ouvindo? Entenda, criatura: acabo de ver um homem entrar na cozinha. Pelaguéia vai levar um susto daqueles e... os talheres de prata estão no armário.
- Bobagem.
- Vassil, mas que coisa mais insuportável! Estou te dizendo do perigo e você fica dormindo e zombando de mim. Você quer ser roubado e assaltado? É isso que você quer?
O promotor-assistente levantou-se com lentidão, sentou-se na cama, enchendo o quarto com seus bocejos.
- Só o diabo é que consegue compreender vocês, mulheres! - resmungou - Será que nem durante a noite se pode ter sossego? Por qualquer coisinha acordam a gente.
- Vassil, juro que vi um homem pulando a janela!
- E o que tem isso demais? Deixe-o em paz... Com certeza é o bombeiro que veio visitar Pe!aguéia.
- O quê? O que é que você disse?
- Disse que o bombeiro veio ver Pelaguéia.
- Pior ainda! - exclamou Maria Mikháilovna. - Muito pior do que um ladrão! Não irei tolerar um cinismo desses na minha casa.
- Ora, ora, vejam só quanta virtude!... "Não irei tolerar um cinismo desses na minha casa." - E por acaso isso é cinismo? Para que ficar gastando palavras estrangeiras à toa? Isto, minha filha, é coisa que sempre existiu, consagrada pela tradição humana. Bombeiro foi feito para procurar cozinheira.
- Não, Vassil! Se é assim, estou vendo que você não me conhece. Não posso admitir a idéia de que em minha casa.., uma coisa dessas.. Faça-me o favor de ir já à cozinha e ordene que ele se retire imediatamente! Amanhã vou ter uma conversa com Pelaguéia para que não se atreva mais a ter semelhante conduta. Quando eu estiver morta vocês poderão admitir o cinismo nesta casa, mas, até lá, não se atrevam! Faça-me o favor de ir.
- Diabos!... - resmungou Gàguin, chateado. - Raciocine um pouco, mulher, com os teus miolos microscópicos, o que é que eu vou fazer lá?
- Vassil, vou desmaiar!
Gáguin cuspiu uma vez, calçou os chinelos, cuspiu outra vez e se encaminhou para a cozinha. Estava escuro como num barril fechado, e o promotor-assistente viu-se forçado a ir tateando seu caminho. Por fim encontrou a porta do quarto das crianças e acordou a babá:
- Oi, moça - disse. - Você levou meu roupão para limpar, onde o escondeu?
- Entreguei-o a Pelaguéia, patrão.
- Que bagunça! Apanhar a roupa todos apanham mas colocar de novo no lugar ninguém coloca. E a gente fica zanzando pela casa sem o roupão!
Ao pisar na cozinha, dirigiu-se diretamente ao lugar onde dormia a cozinheira, um catre debaixo da prateleira cheia de panelas.
- Pelaguéia! - chamou, tateando o seu ombro, empurrando-a. - Ei, Pelaquéia! Deixa de fingir, eu sei que você não está dormindo. Quem foi que entrou pela sua janela?
- Hum... Bom dia! Entrar pela janela? Mas.., quem seria?
- Deixa de querer me confundir. É melhor você dizer logo ao teu pilantra para dar o fora sem barulho, está me ouvindo? Ele não tem nada o que fazer aqui...
- O patrão perdeu o juízo? Bom dia... Tudo porque encontrou esta bobalhona, que aceita passar o dia inteiro trabalhando como uma escrava, correndo para lá e para cá sem parar um instante, e de noite ainda ter de ouvir coisas assim. É a vida que tenho de levar por quatro rublos por mês... e ainda precisando comprar açúcar e chá com o próprio dinheiro... Essa é a gratidão que se recebe de volta, nem nas casas dos comerciantes em que trabalhei passei tanta vergonha.
- Para de se lamuriar! Teu soldado que trate de sumir daqui agora mesmo, está ouvindo?
- É um pecado, patrão! - os olhos de Pelaguéia se enchiam de lágrimas. - Senhores letrados, distintos, não se apiedam da miséria da gente e ainda nos ofendem - chorava. - Não temos ninguém que nos defenda.
- Ham, ham... Por mim não! Foi a patroa que me mandou até aqui. Por mim você pode deixar o próprio diabo entrar pela janela que estarei pouco me incomodando.
O promotor-assistente reconhecia que aquele interrogatório era fora de propósito, e só lhe restava voltar para junto de sua mulher.
- Escuta, Peleguéia. Você apanhou o meu roupão para limpar. Onde foi que o colocou?
- Ai, patrão, desculpe, esqueci de pendurá-lo na sua cadeira. Ele está ali no prego perto do fogão.
Gáguin tateou em torno do fogão, encontrou e vestiu o roupão, voltando a passos lentos para o quarto de dormir.
Depois que o marido saiu, Maria Mikháilovna ficou a esperá-lo na cama. Durante os três primeiros minutos manteve-se calma, mas, em seguida, começou a se inquietar.
"Como está demorando!", pensou. "Ainda bem que é aquele imbecil... Mas, e se for um ladrão?"
Sua imaginação mais uma vez pôs-se a imaginar uma cena: o marido entra na cozinha escura.., um golpe... ele cai sem um gemido... uma poça de sangue...
Cinco minutos... cinco e meio.., finalmente seis. Suor frio cobria-lhe a fronte.
- Vassil! - guincha. - Vassil!
- Está gritando por quê? Estou aqui - ela ouve a voz e os passos do marido. - Estão te matando, por acaso?
O promotor-assistente se aproxima da cama, senta-se na ponta do colchão.
- Não tem ninguém lá. Tudo coisa da tua cabecinha brincalhona. Pode ficar tranqüila, sua boba. Pelaguéia é tão cheia de virtude quanto sua patroa. Como você é medrosa! Como é...
O promotor-assistente pôs-se a zombar da esposa. E tanto zombou que acabou perdendo o sono.
- Medrosa! - riu. - Amanhã mesmo deves procurar um médico que te trate dessas alucinações. Sofres de doença mental!
- Que cheiro de alcatrão! - disse a esposa. - De alcatrão ou de uma outra coisa... parece cebola... ou sopa de legumes.
- Sim, também sinto qualquer coisa... Perdi o sono. E melhor acender uma vela. Onde estão os fósforos? Por falar nisso, me lembrei: vou te mostrar o retrato do procurador do Tribunal. Ontem, ao se despedir, ele deu um retrato a cada um de nós. Com autógrafo...
Gáguin riscou um fósforo na parede e acendeu a vela, mas, antes de dar o primeiro passo para apanhar o retrato, um grito cortante, desses que despedaçam a alma, ouviu-se às suas costas. Virando-se, enxergou os olhos assustados da mulher a fitá-lo cheios de espanto, horror e raiva.
- Você apanhou o roupão na cozinha? - perguntou-lhe a esposa, pálida.
- Por quê?
- Olha só.
O promotor-assistente voltou-se para o espelho e soltou um gemido de espanto. Em vez do seu roupão, tinha nos ombros o capote do bombeiro. Como foi parar ali? Enquanto tentava resolver este problema, uma nova cena surgia na imaginação de sua esposa. Uma cena horrível, incrível, anunciando escuridão... silêncio... maledicências... cochichos... etc... etc...

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Um comentário:

Unknown disse...

muito legal ,gostei muitoo!!