domingo, 12 de outubro de 2008

SANGUE NU



1. DUELO

Enfim, a terra começara a rejeitar os mortos. Corpos putrefatos, inchados de gazes e vermes, coagulados e com rostos carregados de horror e tristeza, brotando como se fossem flores horrendas na terra úmida.

― Pelos deuses ― disse alguém nos portões do cemitério.

Lá dentro, os mortos cambaleavam e gemiam e havia orgia e banquetes; um jovem defunto se esfregava em uma mulher morta, apesar de seu pênis a muito ter caído e ela estar mais interessada em comer uma pequena flor branca que crescera inocentemente na terra nua; alguns mortos se alimentavam de outro, estirado e de entranhas à mostra. Ele gritaria se tivesse língua ou se sentisse dor.

A polícia chegou com lança-chamas e máscaras e mãos trêmulas e os portões foram abertos e a chama lambeu a carne: jatos longos e esganiçados de fogo sobre corpos que se negavam a parar. Não demorou muito. Logo o cemitério era uma enorme fogueira e o cheiro de carne podre e torrada ergueu-se no vento salgado e misturou-se ao sabor do mar.

Da minha janela eu podia ver tanto o mar calmo como a chama inquieta dos mortos; eu podia ouvir os gritos e o horror. Talvez os mortos sentissem dor afinal.

Sentei-me diante da janela e comecei a limpar minha espada; eu a queria perfeita para o duelo do dia seguinte. Aquela era, portanto, a minha última noite em vida. Talvez.

Bateram na porta.

― Entre, seja quem for, eu disse.

― Então é verdade, disse Katerina.

― É, respondi eu. ― É sempre verdade, não importa no que acreditemos.

― Não se faça de engraçado. Não acredito que vá fazer isto, um duelo ao amanhecer. Isso é estupidez.

― Defenderei a sua honra.

― Não seja tolo. Sou prostituta, esqueceu? Sei por que faz isso.

― Não é preciso, no entanto, que o digam como ofensa. Por quê?

― Pelo amor à espada.

― Pode ser. De qualquer modo amanhã poderei estar morto. Não deveria me dar algo mais que uma bronca?

Mas ela já se sentara à cama e começara a despir-se.

― Vou te deixar tão exausto que amanhã desistirá de lutar.

― Você me subestima, disse eu, largando a espada e também deixando minha roupa pelo chão a caminho da cama.

Nua, Katerina abriu suavemente as pernas e então disse:

― Beije-me. Aqui.

Eu vi o morto cambalear lá fora; ouvi seus passos errantes; senti seu odor adocicado; e cortei sua cabeça com um golpe de espada vuuump que a jogou onde ela continuou gemendo. Olhei dentro de casa e vi Katerina dormindo. Encolhida entre as cobertas, sua pela muito branca e seus cabelos muito negros, ela parecia pura como uma virgem, inocente como uma menina. Eu quase a amei naquele instante. Então o sol começou a surgir e seu reflexo tornou o mar um grande espelho onde pairavam as nuvens e a fumaça que ainda se erguia do cemitério na colina. O ronco de um motor. De algum lugar, se aproximava um carro.

― Pois os mortos cavalgam céleres, eu disse e me espantei. Onde ouvira ou vira aquelas palavras?

O carro subiu pela colina e parou diante da casa. Era a hora.

continua

Guardei a espada na bainha e, observando os homens que saltavam do carro, não pude deixar de pensar que aquele não era nem um bom dia ou um mal dia para se morrer, mas simplesmente um dia como qualquer outro. Sempre queremos que nossos dias sejam especiais, mas nunca são. Assim é com o dia de nossa morte. Então, com um sorriso nos lábios para afastar os fantasmas ordinários e as sombras pesadas, aproximei-me e comprimentei a todos.

— Que os deuses os saúdem.

— Há apenas um deus, respondeu meu oponente, aquele a quem chamavam de Duque, com arrogância. Era um homem muito alto e muito forte, de gestos pesados que tentavam disfarçar uma agilidade insuspeita. Um espadachim nato. Os outros dois, homens mais velhos e cultos, metidos em sobretudos pretos, que seriam o juízes do duelo, me olharam com desprezo.

— Se quiser, posso apresentá-lo a alguns outros, disse eu.

— Herege!

Ele sacou a espada. — Não percamos mais tempo, disse ele.

Segui o seu exemplo e nossas lâminas ergueram-se brilhantes e afiadas à procura da carne do oponente; o eco do metal em choque e a dança rápida demais para os olhos de nossos golpes treinados; com um grito ele jogou o peso de sua espada contra a minha. Senti meu corpo estremecer com o impacto; rangi os dentes no que deve ter parecido um sorriso feroz e girei o corpo rapidamente de modo a girar minha espada e parar a lâmina a apenas um milímetro de seu pescoço. foi meu último golpe naquela luta.

A espada de meu oponente - que os deuses amaldiçoem o seu nome, Duque! - penetrara em meu estômago e, com um sorriso de satisfação, ele girou-a em minhas entranhas. Eu não senti nenhuma dor - não imediatamente. A Lãmina recuou e eu me senti cair. Enquanto cai,vi o rosto satisfeito do Duque e a expressão horrorizada de Katerina à porta e as nuvens e o mar e, então, não vi mais nada.


4 comentários:

Lizard disse...

Podre e horrendo como Clive Barker e direto como Ruben Fonseca.
Muito legal!!!!

Anônimo disse...

caralho, que texto massa! Como diria meu amigo Allan do óbitu-diário, esse texto merece o selo platinum "Do Caralho"! Espero a continuação para breve

Anônimo disse...

primeira parte do texto tava mais massa, mas mesmo assim gostei.

Unknown disse...

ahhhh, sabe o que eu acho foda? demorar tanto tempo pra continuar!!!!!!