Mais tarde, Teda diria a uma amiga que “Não importa o que eu disse a ele naquela noite, era tudo mentira, e o que eu sentia, na verdade, era algo completamente diferente do que o que eu lhe disse”. Ela estava sentada à janela, olhando a noite que se avolumava vindo da borda do mundo e os corvos pousados nos fios dos postes. As luzes acendiam-se devagar e automaticamente ao longo da rua estreita calçada com pedras antigas e uma carruagem branca guiada por dois cavalos também brancos subia a rua em direção ao mar, distante e quieto. Aquela era a tarde depois do enterro dele e parecia a Teda que tudo tinha um odor leve de terra morta pairando sob os outros odores.
A amiga de Teda, Stela, estava sentada na cama, pernas cruzadas, um copo de vinho displicentemente em uma mão; a outra alisava distraída seus cabelos curtos.“Isso são flores murchas, querida. Não adianta chorar por isso”, disse ela. ”Esqueça-o, como esqueceu outros homens. Não acredito que você o amava realmente, nem que mentiu a ele. Isso agora é apenas o pesar falando.”
Stela levantou-se e pegou a garrafa de vinho sobre o criado-mudo e tornou a encher seu copo e depois encheu um para Teda.
“O que você precisa, Teda, é embebedar-se.”
“Não posso. Não quero.” Teda devolveu a taça a Stela e levantou-se e atravessou o quarto e entrou no banheiro. “Vou tomar um banho”, disse, antes de fechar a porta.
“Quer companhia?”, sussurrou Stela., com cuidado para que a outra não a ouvisse. Foi até a janela e ficou observando o dirigível aproximando-se rapidamente feito uma solitária nuvem de tempestade e a sombra enorme do mesmo pairando sobre a cidade, pouco antes de a noite cobrir tudo.
Enquanto isso, do outro lado da cidade, em um cemitério praticamente em ruínas, com o mato cobrindo tudo e ratos e cachorros se banqueteando de corpos podres em covas rasas, um homem acordava em sua sepultura.
O nome do homem, se é que os mortos têm nome, era Mérimée. E foi gritando e urrando e debatendo-se que ele conseguiu rasgar a madeira fina e cavar para cima na terra úmida e cheia de vermes até a superfície, que o saudou com uma cusparada fria em seu rosto branco e seu corpo nu e cheio de marcas e costuras. Era como se ele tivesse passado por uma série de cirurgias pelas mãos de um cirurgião apressado. Ele contorceu-se sobre a terra e levantou-se sobre a terra e cambaleou para fora do cemitério.
Mérimée apoiou-se no portão enferrujado e foi imediatamente visto por uma mulher muito maquiada e usando uma roupa muito curta, que deu um gritinho de espanto mas que estranhamente não correu. Pelo contrário, passado o susto, ela ficou parada onde estava, sob um poste, observando-o curiosa.
“Ajude-me por favor ajude-me”, ele disse ou pensou ter dito. Não tinha certeza. Estava fraco demais, ainda em choque, e sentiu as pernas falharem com um estalo que lhe pareceu mecânico. Como a engrenagem de um relógio falhando.
Teda saia do banheiro, apenas com uma toalha, seus cabelos claros escuros pela umidade, levemente mais animada, quando o telefone tocou.
Stela atendeu. “Sim… sim, ela está aqui… claro… onde?” Ela desligou o fone e disse a Teda “Era a bruxa, ela disse que outro apareceu. Ele foi levado para a sede”.
Teda largou a toalha e abriu o guarda-roupa. Ela vestiu-se depressa demais para o desgosto (insuspeito) de Stela. Logo, ambas entravam no carro de Teda, um modelo de capota aberta típico dos anos 20, e corriam pelas ruas à toda velocidade. Teda usava óculos de aviador, o que fazia seu belo rosto parecer mais frio do que realmente era.
“Veja aquilo”, disse Teda.
Uma garotinha segurando borboletas presas por fios quase invisíveis. Estava parada na calçada e olhava sorridente para o céu sem nuvens. Era como uma pequena fada perdida em um bosque idílico.
Então, Teda parou o carro diante de um prédio de oito andares, com gárgulas espiando de seu teto arcaico. Era a sede da estranha e antiga organização à qual Teda e Stela pertenciam. Teda vestiu luvas de couro e tentou ignorar o tremor que sentia. Era uma sensação de algo ruim. Algo à espreita. Talvez não fosse nada. Talvez.
“Stela”, disse ela. “Espere aqui. E deixe o motor ligado.”
“Algo errado?”
“Talvez não seja nada”, respondeu Teda, e pegou sua velha pistola alemã. Ela subiu os degraus e empurrou a porta.
Stela viu-a desaparecer dentro do prédio e virou-se para olhar a garotinha das borboletas. Esta estava atravessando a rua e agora olhava sorridente para Stela. A garotinha chegou até perto da janela de Stela e perguntou “Quer comprar uma borboleta?” com uma vozinha que soou aos ouvidos de Stela como um falsete.
Teda viu o homem muito magro e muito alto sentado atrás de uma mesa na portaria e sorriu. “Como vai, Chesterton?”
“Bem, senhorita Teda. Obrigado por perguntar. E a senhorita? Soube de sua perda. Sinto.”
“Obrigada. A Brux… digo, pode avisar à senhora Atwood que estou aqui?”
“Claro. E… senhorita Teda?” Chesterton fez um gesto para a pistola.
Teda assentiu e guardou-a. “Desculpe. Tenho andado meio paranóica.”
Chesterton falou ao telefone. “A senhorita Teda já chegou… Pode descer, senhorita. A senhora Atwood a espera no necrotério.”
Teda desceu por uma escada circular de metal que rangia e balançava levemente a cada passo seu. O necrotério ficava no fim da escada, um lugar de luzes brancas e odor hospitalar.
Atwood – uma mulher baixa e gorda – estava parada ao lado de uma mesa de metal, quase mais alta que ela, onde estava amarrado e amordaçado Mérimée.
“Mais um para nossa coleção”, disse Atwood.
“Vá se foder, sua bruxa”, gritou Mérimée.
”Sempre, querido”, respondeu Atwood. E para Teda: “Ele foi encontrado vagando próximo ao cemitério de Santa Clara, um lugar decrépito e abandonado. Parece que nosso amigo, o falecido Dr. Belasco, tinha outros lugares que não conhecíamos para depositar suas criaturas”.
Teda aproximou-se o suficiente para ver a barriga escancarada de Mérmée e as engrenagens em seu interior – metal e engrenagens e porcas e parafusos e mecanismos estranhos.
“Oh, deuses”, murmurou Mérimée, “o que eu sou?”
Uma espécie de máquina, pensou Teda.
“O que vão fazer comigo?”
Atwood ignorou-o e disse a Teda “Isso tem que acabar. Precisamos encontrar o laboratório do seu falecido namorado”.
“Eu sei.”
“Alguma idéia?”
“Não. E quanto a ele?”
“Ele mal se lembra do próprio nome. Não é de grande ajuda. Vamos desmontá-lo.”
Como se essas palavras fossem um sinal, dois homens carregando ferramentas entraram na sala. Nenhum deles disse nada. Atwood pegou no braço de Teda e ambas saíram de lá e subiram as escadas. Foi quando ouviram os gritos.
Lá fora, pouco antes, Stela sorriu para a garotinha das borboletas e perguntou: “E quanto custa uma borboleta?”
“Para você, sua PUTA, nadinha.”
Stela mal teve tempo de sentir surpresa. De repente as borboletas entraram aos montes dentro do carro e suas azas eram afiadas como lâminas. São lâminas, sua estúpida, pensou ela, essas borboletas não são reais, são máquinas. Eram como uma pequena nuvem brilhante que cortava sua pele e sua carne. A garotinha, parada ao lado do carro, começou a rir e rir e rir. Stela gritava. Então, alguém atirou.
Stela viu através do sangue que cobria seus olhos a cabeça da garotinha explodir e engrenagens e fios e um uivo estranho como o de um carro falhando saírem da garotinha das borboletas.
Teda abriu a porta e puxou Stela com força para fora do carro. As borboletas a seguiram e Teda agarrava-as com as mãos e tentava esmagá-las e chutá-las para longe. Então, Stela não viu mais nada.
Quando acordou, estava em um quarto de hospital, deitada na cama de metal. “Quero um espelho”, disse a Teda, que estava sentada ao lado da cama, as mãos enfaixadas e uma expressão de pesar no rosto.
“Ainda não”, disse Teda.
Stela viu a expressão nos olhos de Teda e assentiu. “Quando, então?”
“Logo.”
“Está bem.”
“As criaturas continuam a aparecer”, disse Teda. “É como se fosse uma verdadeira multidão de máquinas em forma humana, um povo hostil sepultado e programado para se erguer assim que seu criador morresse. Atwood ordenou a todos que os matássemos.”
“Isso te incomoda?”
“Não. Sim. Não sei. Sim, me incomoda. Parece que estamos dizimando um povo inteiro.”
“Exceto que eles não são humanos. Nem animais.”
“Mas – eles pensam, não é?”
“Não faça isso”, disse Stela, balançando a cabeça. “Não.”
“Aquele no necrotério, você não o viu. Ele não parecia hostil, parecia apenas... confuso.”
“E o que você vai fazer?”
“Conversar com ele. Se ele ainda existir.”
Mérimée estava estirado sobre a mesa de metal e os homens que haviam vindo para desmontá-lo estavam estirados, aos pedaços, pela sala toda; pedaços de carne e sangue espalhados por todo o lugar. Mérimée levantou-se e arrastou os pés no sangue que cobria o chão, deixando pegadas leves ao andar.
Chesterton estava sentado ao pé da escada, esperando-o, uma cimitarra em uma das mãos. A cimitarra estava coberta de sangue e Mérimée compreendeu que aquele homem fora quem o salvara.
“Por quê?” perguntou Mérimée.
Chesterton sorriu. “Sou como você. Uma máquina. Embora não soubesse disse até recentemente.”
CONTINUA
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