sábado, 30 de outubro de 2010

VERTIGO RESURRECTED

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A MÚSICA DO FAUNO

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O LIVRO DAS PROVAS

John Banville

a  P Bonnard  Nu no banho, com cão  1941 -46

Um trecho

Quando o senhor mandar que eu conte tudo diante do júri, com minhas próprias palavras, é isso o que vou dizer. Vivo enjaulado aqui como se fosse um animal exótico, último sobrevivente de uma espécie que já julgavam extinta. Deveriam permitir que as pessoas viessem me ver - o devorador de meninas, esbelto e perigoso, a caminhar de um lado para o outro da jaula, lançando meu terrível olhar esverdeado por entre as grades. Isso lhes daria algo com que sonhar à noite, aconchegados em seus leitos. Logo que me capturaram eles disputavam a patadas um lugar de onde pudessem me ver. Teriam até pago por esse privilégio, aposto. Gritavam todo tipo de ofensas, brandiam seus punhos cerrados para mim, mostrando-me os dentes. Parecia que aquilo não estava acontecendo de fato. Não sei dizer como, mas era ao mesmo tempo aterrorizante e engraçado vê-los ali a se movimentar pela rua como figurantes de um filme, rapazes em suas capas de chuva baratas e mulheres carregando sacolas de compras, além de uns dois personagens que permaneciam, imóveis, a me olhar fixamente, ansiosos, pálidos de inveja. Então um policial jogou uma coberta sobre minha cabeça e me levou, embrulhado, para o camburão. Não pude conter o riso. Aquilo tudo era irresistivelmente engraçado. A realidade, banal como sempre, estava concretizando minhas piores fantasias.

E por falar na coberta, eles a teriam levado especialmente para mim, ou será que sempre têm uma à mão? Perguntas desse tipo não param de perturbar minha cabeça. Não dá para parar de pensar. Que figura interessante eu devo ter ficado para quem foi me espiar. Lá estava eu, sentado no banco de trás como uma espécie de múmia, quando o carro da polícia partiu em alta velocidade pelas ruas molhadas e iluminadas pelo sol que surgia. A sirene soava alto e imponente.

Depois foi este lugar aqui. A princípio o que mais me impressionou foi o barulho. Uma algazarra terrível - gritos e assovios, gargalhadas, bate-bocas, gemidos. Mas há momentos também em que se faz um silêncio insuportável, como se um medo enorme, ou uma tristeza infinda, desabasse sobre nós deixando-nos sem fala. Nessas ocasiões o ar fica parado nos corredores, e é como se estivéssemos imersos em água estagnada. Sente-se então um leve odor de ácido fênico, como que num cemitério. No começo pensei que fosse eu, isto é, pensei que aquele cheiro fosse meu, uma contribuição minha. Ainda tenho minhas dúvidas. A luz do dia também é estranha aqui, mesmo no lado de fora, no pátio, como se alguma coisa tivesse acontecido com ela, como se tivessem feito algo com ela antes de deixarem que ela penetrasse aqui. Tem uma tonalidade ácida, de limão, e chega até nós em duas intensidades: ou não é o suficiente para que se possa enxergar ou é tão intensa que parece cauterizar tudo. Das várias modalidades de escuridão eu não vou falar.

Minha cela. Minha cela está aí e não tenho mais nada a dizer sobre ela.

Os veteranos ficam nas melhores celas. É justo. Afinal de contas, podem chegar à conclusão de que sou inocente. Ai, eu não posso nem rir porque dói demais. Sinto uma fisgada horrível, como se alguma coisa apertasse meu coração. Talvez seja o peso da minha culpa. Acho que é. Tenho uma mesa e uma cadeira de braço que eles chamam de poltrona. Aqui tem até um aparelho de televisão que raramente ligo, agora que meu caso está subjudice e não se fala mais de mim nos noticiários. As instalações sanitárias deixam a desejar. Balde de despejos: que nome sugestivo. Preciso arranjar uma bichinha para mim. Pode ser neófito mesmo. Algum sujeito jovem, jeitoso e que esteja a fim. Mas que não seja impertinente. Isso não deve ser difícil. Preciso também ver se arranjo um dicionário.

O que mais me incomoda aqui é o cheiro de esperma por toda a parte. Este lugar fede a esperma.

Confesso que tinha umas expectativas meio românticas sobre o que encontraria aqui. De certa forma eu me via como uma espécie de celebridade, mantida à parte dos demais prisioneiros em alguma ala especial, onde receberia grupos de pessoas solenes e importantes com as quais discutiria as grandes questões do momento, deixando os homens impressionados e as mulheres encantadas comigo. Que sensibilidade!, diriam em espanto. Que visão do mundo! Disseram-nos que o senhor era uma fera, insensível e cruel, porém agora que o vimos e ouvimos, ora -! E lá estaria eu, em uma pose elegante, com meu perfil ascético erguido contra a luz da janela de grades, os dedos a brincar tranqüilamente com um lenço perfumado, e um sorriso levemente afetado: Jean-Jacques, o assassino intelectual.

Nada disso. Absolutamente nada disso. Mas também não é nada do que todo mundo espera que seja. Onde estão as badernas de refeitório? As tentativas de fuga em massa? Essas coisas todas que a gente vê na telinha prateada? Onde está aquela cena no pátio de exercício na qual o delator é apagado com um estilete enquanto uma dupla de pesos-pesados mal-encarados inventa uma briga qualquer para distrair as atenções? Quando é que as disputas entre as gangues vão começar? A verdade é que tudo aqui dentro é como lá fora, só que mais exacerbado ainda. Nós vivemos obcecados com o conforto físico. Aqui há sempre aquecimento demais; é como se estivéssemos numa chocadeira. Mesmo assim há gente se queixando de correntes de ar frio, de resfriamentos súbitos e de pés congelados durante a noite. A comida é importante também. Catamos os pedacinhos de coisas que vêm no nosso angu, cheirando e suspirando, como se fôssemos uma convenção de gourmets. Quando alguém recebe algum pacote, os cochichos se espalham como fogo em palha seca. Psss! Ela mandou uma lingüiça para ele! Feita em casa! É como se fosse um colégio interno, sem tirar nem pôr. A mesma mistura de mesquinharias e miséria, de tagarelice, de desejos amortecidos, de ruídos e, por toda parte, sempre, aquele bafio fedorento, cinza e morno de macho.

Dizem que era diferente quando os presos políticos estavam aqui. Eles marchavam, imponentes, pelos corredores, gritavam uns com os outros e eram uma boa fonte de gargalhadas para os criminosos comuns. Mas um belo dia decidiram todos fazer greve de fome ou algo assim e logo foram levados para uma cadeia só deles e assim a vida voltou ao normal.

Por que é que somos tão cordatos? Será que é porque colocam alguma coisa em nosso chá para aplacar a libido? Dizem que sim. Ou será por causa das drogas? Excelência, eu sei que ninguém, nem mesmo o promotor, gosta de ouvir um delator, mas julgo sei meu dever dar ciência a esta corte do ousado tráfico de substâncias proibidas que se processa nesta instituição. E há carcereiros envolvidos nisso. Posso informar seus números se me for assegurada a necessária proteção. Consegue-se qualquer coisa - pra ficar doidão, pra ficar tranqüilo, pra apagar, baseado, branquinha, crack, o que for. Vossa Excelência não deve estar familiarizado com essas expressões que a ralé usa. Eu mesmo aprendi várias delas ao chegar aqui. Como se pode supor, são principalmente os jovens que vão fundo nessas coisas. É fácil identificá-los ao caminharem sem firmeza pelas passarelas como se fossem sonâmbulos, com aquele sorrisinho estúpido nos lábios, típico de quem está pirado. Há alguns, porém, que não sorriem e que, pelo jeito, parece que nunca mais na vida vão sorrir. Esses já se perderam para sempre. Já não estão nem mais aí. Ficam imóveis, com o olhar perdido, sem qualquer expressão, ou melhor, com a expressão ausente de um animal ferido que nos ignora como se não existíssemos. Seu sofrimento se passa em um mundo que não é o nosso.

Mas não são só as drogas. Quem dera. Alguma coisa essencial é arrancada da gente. Alguma coisa de dentro de nós. já não somos mais homens na acepção plena da palavra. Fico olhando aqueles velhos internos, gente que foi capaz de fazer as coisas mais terríveis. Andam rebolando como velhas matronas, pálidas e flácidas, as ancas largas. Vivem em briguinhas ridículas por qualquer coisa. Por livros da biblioteca! Alguns até fazem tricô. Os jovens também vão se apegando a seus trabalhos manuais. Aproximam-se de mim na sala de recreação, com seus olhos lacrimejantes de bezerro, e exibem, tímidos, seu artesanato. Se eu tiver que apreciar mais um naviozinho dentro de uma garrafa, acho que perco a cabeça. Mas eles são tão tristes, tão vulneráveis, aqueles assassinos, aqueles estupradores e espancadores de criancinhas. Quando penso neles sempre me vem à mente uma imagem. Não sei por quê, mas sempre me lembro de um pedacinho de grama rala com uma árvore que posso entrever da minha janela quando forço a cara contra a grade e espio em diagonal por cima da fiação e do muro.

INCEPTION

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Sinopse: Em um mundo onde é possível entrar na mente humana, Cobb (Leonardo DiCaprio) está entre os melhores na arte de roubar segredos valiosos do inconsciente, durante o estado de sono. Além disto ele é um fugitivo, pois está impedido de retornar aos Estados Unidos devido à morte de Mal (Marion Cotillard). Desesperado para rever seus filhos, Cobb aceita a ousada missão proposta por Saito (Ken Watanabe), um empresário japonês: entrar na mente de Richard Fischer (Cillian Murphy), o herdeiro de um império econômico, e plantar a ideia de desmembrá-lo. Para realizar este feito ele conta com a ajuda do parceiro Arthur (Joseph Gordon-Levitt), a inexperiente arquiteta de sonhos Ariadne (Ellen Page) e Eames (Tom Hardy), que consegue se disfarçar de forma precisa no mundo dos sonhos.

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COMO ASSIM, EU SOU ENGRAÇADO?

goodfellas

Henry Hill: You’re a pistol, you’re really funny. You’re really funny.
Tommy DeVito: What do you mean I’m funny?
Henry Hill: It’s funny, you know. It’s a good story, it’s funny, you’re a funny guy.
[laughs]
Tommy DeVito: What do you mean, you mean the way I talk? What?
Henry Hill: It’s just, you know. You’re just funny, it’s… funny, the way you tell the story and everything.
Tommy DeVito: [it becomes quiet] Funny how? What’s funny about it?
Anthony Stabile: Tommy no, You got it all wrong.
Tommy DeVito: Oh, oh, Anthony. He’s a big boy, he knows what he said. What did ya say? Funny how?
Henry Hill: Jus…
Tommy DeVito: What?
Henry Hill: Just… ya know… you’re funny.
Tommy DeVito: You mean, let me understand this cause, ya know maybe it’s me, I’m a little fucked up maybe, but I’m funny how, I mean funny like I’m a clown, I amuse you? I make you laugh, I’m here to fuckin’ amuse you? What do you mean funny, funny how? How am I funny?
Henry Hill: Just… you know, how you tell the story, what?
Tommy DeVito: No, no, I don’t know, you said it. How do I know? You said I’m funny. How the fuck am I funny, what the fuck is so funny about me? Tell me, tell me what’s funny!
Henry Hill: [long pause] Get the fuck out of here, Tommy!
Tommy DeVito: [everyone laughs] Ya motherfucker! I almost had him, I almost had him. Ya stuttering prick ya. Frankie, was he shaking? I wonder about you sometimes, Henry. You may fold under questioning.

Do filme Os Bons Companheiros, dirigido por Martin Scorsese. Vi no O Ancião Diz que viu no cinema-fanatic.com.

COMPLÔ CONTRA A AMÉRICA

Philip Roth

pato donald nazista

(Um trecho)

1
Junho de 1940 — outubro de 1940
Vote em Lindbergh ou vote a favor da guerra

O medo domina estas lembranças, um medo perpétuo. Toda infância, é claro, tem seus terrores, mas me pergunto se eu não teria sido uma criança menos assustada se Lindbergh não tivesse chegado à Presidência ou se eu não fosse filho de judeus.

Quando ocorreu o choque inicial, em junho de 1940 — o lançamento da candidatura presidencial de Charles A. Lindbergh, o heróico aviador americano de renome mundial, na convenção do Partido Republicano, realizada em Filadélfia —, meu pai estava com trinta e nove anos; era corretor de seguros, tinha apenas o curso primário e ganhava um pouco menos de cinqüenta dólares por semana, o que era suficiente para pagar as contas principais sem atraso mas não dava para quase mais nada. Minha mãe — que não pôde realizar o projeto de cursar a escola normal por falta de dinheiro, que depois de concluir o secundário continuou morando com os pais enquanto trabalhava como secretária, que conseguiu fazer com que não nos sentíssemos pobres durante a pior fase da Depressão utilizando o salário que meu pai lhe entregava todas as sextas-feiras com a mesma eficiência com que administrava a casa — tinha trinta e seis. Meu irmão, Sandy, que cursava a sétima série e tinha um talento prodigioso para o desenho, estava com doze anos, e eu, aluno da terceira série, embora pela minha idade devesse estar na segunda — e aprendiz de filatelista, inspirado, como milhões de outros meninos, pelo mais famoso colecionador do país, o presidente Roosevelt —, tinha sete.

Morávamos num pequeno sobrado de uma rua arborizada, toda de casas de madeira com varandas de tijolos vermelhos, cada varanda encimada por um telhado de cumeeira e com uma área pequenina à frente cercada por uma sebe baixa. O bairro de Weequahic fora construído num loteamento de fazendas a sudoeste de Newark, pouco depois da Primeira Guerra Mundial; cerca de meia dúzia de ruas receberam nome de comandantes navais vitoriosos da Guerra Hispano-Americana, uma prática imperial; e o cinema, em homenagem ao primo distante de Franklin Delano Roosevelt — e vigésimo sexto presidente da República —, chamava-se Cine Roosevelt. A rua em que morávamos, a Summit Avenue, ficava no ponto mais alto do bairro, um promontório de altitude considerável numa cidade portuária em que poucos pontos atingem mais de trinta metros acima do nível do pântano salgado a norte e a leste do perímetro urbano, e da baía profunda situada a leste do aeroporto, que contorna os tanques de óleo da península de Bayonne e lá se confunde com a baía de Nova York, passando pela Estátua da Liberdade e perdendo-se no Atlântico. Quem olhasse para o oeste da janela de fundos do nosso quarto, por vezes conseguia ver ao longe a massa escura das árvores dos montes Watchung, uma serra de baixa altitude cercada por grandes propriedades e subúrbios prósperos de baixa densidade populacional, fronteira extrema do mundo conhecido — a cerca de treze quilômetros de nossa casa. Seguindo para o sul, no quarteirão seguinte começava Hillside, uma cidade operária habitada majoritariamente por gentios. A divisa com Hillside assinalava também o início do condado de Union, que era uma Nova Jersey totalmente diferente da nossa.

Éramos uma família feliz em 1940. Meus pais eram extrovertidos e hospitaleiros; faziam amigos entre os colegas de trabalho de meu pai e as mulheres que, com minha mãe, haviam ajudado a organizar a Associação de Pais e Mestres da recém-construída Escola da Chancellor Avenue, onde eu e meus irmãos estudávamos. Todos eram judeus. Os homens do bairro eram ou pequenos comerciantes — donos da bonbonnière, da mercearia, da joalheria, da loja de roupas, da loja de móveis, do posto de gasolina, da delicatéssen —, ou proprietários de pequenas indústrias perto da divisa Newark—Irvington, ou trabalhadores autônomos — encanadores, eletricistas, pintores e caldeireiros —, ou então vendedores ambulantes como meu pai, fora de casa o dia inteiro, caminhando pelas ruas da cidade e entrando nas casas das pessoas para vender seus produtos e vivendo das comissões. Os judeus médicos e advogados e os comerciantes afluentes, donos de lojas importantes no centro da cidade, moravam em casas individuais situadas nas transversais da encosta leste do promontório em que ficava a Chancellor Avenue, para os lados do Parque Weequahic, uma extensão de cento e vinte hectares cobertos de relva e árvores, com tratamento paisagístico dotado de um lago onde se podia andar de barco, de campo de golfe e de pista de corrida de carruagens. O parque separava Weequahic das fábricas e dos terminais portuários que se sucediam ao longo da Route 27, bem como do viaduto da Ferrovia Pensilvânia, mais para leste, e do aeroporto florescente, mais para leste, e da beirinha dos Estados Unidos, mais para leste — os armazéns e o cais do porto da baía de Newark, aonde chegavam carregamentos vindos do mundo inteiro. Na extremidade oeste do bairro, a mais afastada do parque, onde morávamos, vivia um ou outro professor ou farmacêutico, mas de modo geral havia bem poucos profissionais liberais na nossa vizinhança, e sem dúvida lá não morava nenhum membro das famílias ricas de empresários e industriais. Os homens trabalhavam cinqüenta, sessenta, até setenta horas por semana, ou mais; as mulheres trabalhavam o tempo todo, sem contar com a ajuda de quase nenhum eletrodoméstico, lavando roupa, passando camisas, cerzindo meias, ajeitando colarinhos, pregando botões, embrulhando agasalhos de lã com naftalina no fim do inverno, passando lustra-móveis na mobília, varrendo e lavando assoalhos, lavando janelas, limpando pias, banheiras, privadas e fogões, passando aspirador de pó nos tapetes, cuidando dos doentes, fazendo compras, cozinhando, dando comida a parentes, arrumando armários e gavetas, supervisionando trabalhos de pintura e consertos domésticos, organizando atividades religiosas, pagando contas, administrando o orçamento doméstico e ao mesmo tempo tomando conta das crianças, cuidando de sua saúde, roupa, limpeza, educação, nutrição, conduta, de seus aniversários, de sua disciplina e de sua moral. Umas poucas mulheres trabalhavam ao lado dos maridos em lojas nas ruas comerciais do bairro, sendo ajudadas, depois do horário escolar e nos sábados, pelos filhos mais velhos, que faziam entregas e cuidavam dos estoques e da limpeza.

Para mim, era o trabalho, muito mais do que a religião, que identificava e distinguia nossos vizinhos. Ninguém no bairro usava barba nem vestia aqueles trajes europeus antiquados, tampouco andava de quipá na rua e nas casas em que eu entrava e saía todos os dias com meus amigos de infância. Os adultos minimamente religiosos já não observavam os costumes judaicos de maneira ostensiva, identificável, fora um ou outro homem mais velho, como o alfaiate e o açougueiro kosher — e os avós doentes ou decrépitos que eram obrigados a morar com os filhos adultos —, quase ninguém ali falava com sotaque. Em 1940, os casais judeus e seus filhos conversavam entre si num inglês americano mais parecido com a língua falada em Altoona ou Binghamton do que com os dialetos notoriamente utilizados do outro lado do Hudson pelos judeus nova-iorquinos. Havia inscrições em hebraico na vitrine do açougue e nas pequenas sinagogas do bairro, mas era só nesses lugares (e no cemitério) que encontrávamos o alfabeto do livro de orações em vez das letras bem conhecidas da língua nativa, utilizada o tempo todo por praticamente todos nós para todas as finalidades, elevadas ou humildes. No jornaleiro em frente à bonbonnière da esquina, a revista de turfe, Racing Form, vendia dez vezes mais exemplares do que o diário em iídiche, o Forvertz.

Israel ainda não existia, seis milhões de judeus europeus ainda não haviam deixado de existir, e a relevância da longínqua Palestina (sob mandato britânico desde que os aliados vitoriosos dissolveram, em 1918, as últimas províncias remotas do extinto Império Otomano) era para mim um mistério. Quando um desconhecido barbudo que jamais fora visto sem chapéu começou a aparecer regularmente em nossa casa, com intervalos de alguns meses, ao cair da tarde, pedindo, num inglês macarrônico, contribuições para a criação de uma pátria para os judeus da Palestina, eu, que não era uma criança ignorante, não entendia o que ele estava fazendo à nossa porta. Meus pais davam algumas moedas a mim ou a Sandy para que as colocássemos em sua caixa de donativos, generosidade essa, pensava eu, motivada pelo desejo de não magoar os sentimentos de um pobre velho que nem mesmo com o passar dos anos conseguia enfiar na cabeça que havia três gerações já tínhamos uma pátria. Todas as manhãs, na escola, eu prestava o juramento à bandeira nacional. Com meus colegas, nas cerimônias, cantava hinos que louvavam as maravilhas de nosso país. Observava religiosamente os feriados nacionais, e jamais me ocorreu questionar minha empolgação com a queima de fogos do Dia da Independência, pelo peru do Dia de Ação de Graças ou pela partida dupla de beisebol no Dia do Soldado. A nossa pátria era os Estados Unidos da América.

Nesse momento os republicanos lançaram a candidatura Lindbergh, e tudo mudou.

Havia mais de dez anos que Lindbergh era um herói tão adorado em nosso bairro quanto em qualquer outro lugar. Sua chegada a Paris, após voar sozinho durante trinta e três horas e meia sem parar, partindo de Long Island num pequeno monomotor chamadoSpirit of St. Louis, por acaso coincidiu com o dia da primavera de 1927 em que minha mãe descobriu estar grávida de meu irmão mais velho. Assim, o jovem aviador cuja ousadia emocionara toda a nação e o mundo, cujo feito apontava para um futuro de progressos aeronáuticos inimagináveis, passou a ocupar um lugar todo especial na galeria de casos familiares que origina a primeira mitologia coerente de uma criança. O mistério da gravidez e o heroísmo de Lindbergh se misturaram na minha cabeça para conferir uma distinção quase divina à minha mãe, já que a encarnação de seu primeiro filho veio acompanhada de nada menos do que uma anunciação global. Sandy viria a registrar esse momento com um desenho que representava a justaposição desses dois eventos magníficos. No desenho — que ele concluiu com nove anos de idade e que demonstrava uma afinidade inconsciente com os cartazes de propaganda soviéticos — Sandy a imaginava a alguns quilômetros de nossa casa, em meio a uma multidão delirante na esquina das ruas Broad e Market. Uma moça esguia de vinte e três anos, de cabelo negro e sorriso escancarado, ela aparece surpreendentemente desacompanhada, usando seu avental de florzinhas no cruzamento das duas principais artérias da cidade; tendo uma das mãos aberta diante do avental, por trás do qual os quadris estreitos ainda não indicam seu estado, enquanto com a outra é a única pessoa na multidão a apontar para o céu, na direção do Spirit of St. Louis, que passa sobre o centro de Newark no exato instante em que ela se dá conta de que, num feito tão triunfal para um ser humano quanto o de Lindbergh, concebeu Sanford Roth.

Sandy estava com quatro anos e eu, Philip, ainda não era nascido quando, em março de 1932, o primogênito de Charles e Anne Morrow Lindbergh, um menino cujo nascimento, um ano e oito meses antes, fora comemorado em todo o país, foi raptado da casa da família, que vivia isolada num lugarejo chamado Hopewell, em Nova Jersey. Cerca de dez semanas depois, o cadáver já putrefato da criança foi descoberto por acaso no meio do mato, a alguns quilômetros da residência. O bebê havia sido assassinado ou morto por acidente depois de ser retirado do berço e, na escuridão, ainda envolto nas roupas de cama, carregado pela janela para fora de seu quarto no andar de cima da casa por meio de uma escada improvisada, enquanto a ama e a mãe se entregavam a seus afazeres noturnos habituais em outros cômodos da residência. Quando o julgamento por rapto e morte em Flemington, Nova Jersey, chegou ao término, em fevereiro de 1935, com a condenação de Bruno Hauptmann — um ex-presidiário alemão de trinta e cinco anos que morava no Bronx com a esposa, também alemã —, a bravura do autor do primeiro vôo transatlântico solitário já estava impregnada por um sentido trágico que o transformava num herói martirizado comparável a Lincoln.

Após o julgamento, os Lindbergh partiram do país na esperança de que, graças a uma estada no estrangeiro, o novo bebê Lindbergh corresse menos riscos e eles próprios recuperassem algo da privacidade que desejavam. A família se instalou numa cidadezinha da Inglaterra, e Lindbergh, por iniciativa própria, começou a fazer as viagens à Alemanha nazista que o transformariam em vilão para a maioria dos judeus americanos. No decorrer dessas cinco visitas, durante as quais viu com os próprios olhos a magnitude da máquina bélica alemã, foi ostensivamente recebido pelo marechal Göring e cerimoniosamente condecorado em nome do Führer, e manifestou de modo inequívoco o elevado apreço que tinha por Hitler, dizendo que a Alemanha era "a nação mais interessante" do mundo e seu líder, "um grande homem". E todo esse interesse e admiração foram manifestados depois que as leis raciais aprovadas por Hitler em 1935 privaram os judeus da Alemanha de seus direitos civis, sociais e de propriedade, cancelaram sua cidadania e proibiram casamentos mistos com arianos.

Quando entrei para a escola em 1938, o nome de Lindbergh provocava em nossa casa o mesmo tipo de indignação evocado pelos programas radiofônicos dominicais do padre Coughlin, de Detroit, que publicava um hebdomadário de direita chamado Social Justice, cuja virulência anti-semita atiçou as paixões de um público considerável durante todo o período da Depressão. Foi em novembro de 1938 — o ano mais negro, mais terrível dos últimos dezoito séculos para os judeus da Europa — que o pior pogromdos tempos modernos, a Kristallnacht, foi instigado pelos nazistas em toda a Alemanha: sinagogas incendiadas, residências e propriedades comerciais de judeus destruídas e, no decorrer de toda uma noite que foi um presságio do futuro monstruoso, milhares de judeus retirados à força de suas casas e transportados para campos de concentração. Quando sugeriram a Lindbergh que, diante daquela selvageria sem precedentes perpetrada por um Estado contra seus próprios cidadãos nativos, talvez fosse o caso de ele devolver a cruz de ouro enfeitada com quatro suásticas que lhe fora conferida em nome do Führer pelo marechal Göring, ele se recusou a fazê-lo, argumentando que, para ele, devolver publicamente a Medalha da Cruz de Serviço da Águia Alemã seria "um insulto desnecessário" à liderança nazista.

Lindbergh foi o primeiro americano famoso vivo que aprendi a odiar — assim como o presidente Roosevelt foi o primeiro americano famoso vivo que me ensinaram a amar —, e assim sua indicação pelo Partido Republicano para disputar a Presidência com Roosevelt em 1940 abalou, como nada abalara antes, a imensa segurança pessoal que eu sentia como coisa natural, sendo um menino americano filho de pais americanos que estudava numa escola americana e morava numa cidade americana num período em que a nação americana estava em paz com o mundo.

PERFECT BLUE

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Dirigido por Satoshi Kon.

FRANKENSTEIN CRIOU A MULHER

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Dirigido por Terence Fisher.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O SONHO DE UM HOMEM RIDÍCULO

Fiódor Dostoiévski

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UM TRECHO

Sou um homem ridículo. Agora chamam-me doido, mas não é nada disso; não subi de graduação e sou sempre o mesmo homem ridículo que outrora era. Mas já não me zango, presentemente. Agora todos os homens são para mim agradáveis, mesmo quando zombam de mim: é até nessas ocasiões que me são mais agradáveis. Riria de bom grado com eles, não precisamente a meu respeito mas por lhes ter amizade, se me não sentisse tão triste ao olhá-los. E sinto-me triste porque eles ignoram a verdade, ao passo que eu a conheço. Oh! como é penoso ser o único a conhecer a verdade! E dizer eu que eles jamais a conhecerão! Não poderiam compreendê-la…

Antes de ter descoberto a verdade, afligia-me muito o parecer ridículo. Oh! não parecia apenas: era-o. Fui-o sempre. Sei isto desde que tenho pensar, sabia-o já talvez aos sete anos, sabia-o antes de ir à escola. Na Universidade, quando mais estudava mais claramente me compenetrava de que era ridículo. Por assim dizer, todos os meus estudos universitários tiveram como resultado único convencerem-me doutamente de que era ridículo, cada ano trazendo-me um novo argumento. E mais tarde, ao longo da vida, as coisas seguiram uma progressão de todo em todo similar. Cada ano aumentava e confirmava em mim a consciência do meu ridículo, de todos os pontos de vista. Sempre e em toda a parte escarneciam da minha pessoa; mas ninguém adivinhava que, se existia no Mundo um Homem convencido do seu ridículo, esse homem era eu próprio. E que ninguém compreendesse isto era o que me humilhava mais que tudo. Todavia, a culpa era minha; tive sempre tanto orgulho, que nunca, por nada deste Mundo, cairia em estar de acordo com alguém quanto a ser eu um homem ridículo. Este orgulho crescia com a passagem dos anos e, certamente, se tivesse podido acrescentar permitir-me eu tal confissão perante não importa quem, creio bem que, nessa mesma tarde, despedaçaria a cabeça com um tiro de revólver. […]

[…] Sim, era naquela noite que eu devia matar-me. Tinha-o irrevogavelmente decidido dois meses antes, e, mesmo tão pobre como sou, comprara, nessa ideia, um esplêndido revólver e carregara-o logo. Os dois meses, porém decorreram por inteiro e o revólver permanecia na minha gaveta. Tudo me era indiferente, não é assim? Mas queria que isso fosse para mim menos indiferente, a morte, queria matar-me em um momento em que isso me não fosse indiferente de todo. Por quê? Não sei. De modo que, durante esses dois meses, todas as tardes ao penetrar em casa pensava em matar-me. Mas o momento não chegava. E eis que a estrelinha me anunciava, agora, que ele viera, Decidi então que seria absolutamente nessa noite. […]

ASSIM NASCEM OS HEROIS

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Dirigido por Robert Aldrich.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

ANTOLOGIA AMERICANA

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Comic Booko novo quadrinho norte americano é uma antologia com os principais artistas alternativos dos Estados Unidos, como Daniel Clowes, Dame Darcy, Debbie Drechsler, Lloyd Dangle, Peter Bagge, Joe Sacco, Adrian Tomine, Richard Sala, Jaime Hernandez e Gilbert Hernandez. É um grande festival com dramas, comédias e histórias inclassificáveis a respeito de fantasmas de Nova York, decadência grunge em Seattle, abuso sexual ou Guerra da Bósnia. Com capa especialmente criada por Jaime Hernandez (Love & Rockers), cada HQ é acompanhada de um texto em que Cris Siqueira apresenta os autores. A introdução é de Rogério de Campos, ex-editor da Animal. Scan original do Rapadura Açucarada.  Para baixar, clique na imagem.

Vi no Gibiscuits.

YAKUZA

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Sydney Pollack.

A COISA DO OUTRO MUNDO

10

John Carpenter.

NÃO ME ABANDONE JAMAIS

Kazuo Ishiguro

Keira Knightley, Carey Mulligan and Andrew Garfield in NEVER LET ME GO. ..

(UM TRECHO)

Me chamo Kathy H. Tenho trinta e um anos e sou cuidadora há mais de onze. Tempo demais, eu sei, mas eles querem que eu fique mais oito meses, até o fim do ano. O que dará quase exatos doze anos de serviço. Sei que o fato de ser cuidadora há tanto tempo não significa necessariamente que meu trabalho seja considerado fantástico. Houve alguns ótimos cuidadores que receberam ordem de parar depois de dois ou três anos apenas. E eu conheço pelo menos um que ficou os catorze anos completos, apesar de ter sido um desperdício total de espaço. Portanto, minha intenção aqui não é me vangloriar. Mas não resta a menor dúvida de que eles estão satisfeitos comigo e de modo geral não tenho do que me queixar. Meus doadores sempre foram muito melhores do que eu esperava. Todos se recuperaram com uma rapidez impressionante e quase nenhum chegou a ser classificado como "agitado", nem mesmo antes da quarta doação. Muito bem, talvez eu esteja me vangloriando um pouco agora, admito. É que significa um bocado para mim poder dar conta direito do trabalho, sobretudo essa parte dos doadores continuarem "calmos". Desenvolvi uma espécie de instinto em relação a eles. Sei quando devo permanecer por perto oferecendo consolo e quando é melhor deixá-los em paz; quando escutar o que têm para falar e quando tão-somente encolher ombros e dizer-lhes que não se entreguem ao desânimo.

De todo modo, não estou reivindicando nada de muito grandioso para mim. Conheço cuidadores que trabalham tão bem quanto eu e que não recebem nem a metade dos créditos. Se você for um deles, entendo o motivo de possíveis ressentimentos — em relação a meu conjugado, meu carro e, acima de tudo, ao fato de eu mesma escolher os que vão ficar sob meus cuidados. Sem falar que sou de Hailsham — o que por si só muitas vezes é suficiente para deixar as pessoas de mau humor. Elas dizem, a Kathy H.? Ela escolhe o pessoal a dedo, e sempre da turma dela: gente de Hailsham ou de algum outro estabelecimento igualmente privilegiado. Não é à toa que ela tem uma ficha excelente. Nem sei quantas vezes já escutei isso, e posso imaginar que você ouviu muitas mais, de modo que talvez haja um fundo de verdade aí. Mas não fui a primeira a poder escolher, e duvido que seja a última. De qualquer forma, já fiz minha parte, cuidando de doadores trazidos de tudo quanto foi lugar. Até eu terminar meu serviço, não se esqueça, terei completado doze anos, e só nos últimos seis é que eles me deixaram escolher.

E por que não me deixariam? Cuidadores não são máquinas. Nós tentamos fazer o melhor possível para cada um dos doadores, mas no fim o serviço é exaustivo. Paciência e energia têm limite, e isso vale para todo mundo. De modo que quando surge a oportunidade de escolher, claro que você vai optar por pessoas semelhantes a você. Isso é natural. Eu não teria tido a menor condição de continuar fazendo o que faço durante tanto tempo se porventura deixasse de nutrir sentimentos pelos meus doadores em cada uma das etapas percorridas. Além do mais, se eu não tivesse obtido permissão de escolher, não poderia ter me reaproximado de Ruth e Tommy depois de tantos anos, não é mesmo?

Nos dias que correm, claro, há cada vez menos doadores conhecidos, o que significa que na prática não tenho escolhido tanto assim. E, como eu sempre digo, quanto menos ligação existe com o doador, mais difícil fica fazer o serviço; portanto, mesmo que eu sinta falta de ser cuidadora, acho correto dar finalmente por encerradas minhas atividades no final do ano.

Ruth, por falar nisso, foi apenas a terceira ou quarta doadora que pude escolher. Já havia uma cuidadora designada para ela, na época, e lembro-me que foi preciso uma certa dose de coragem de minha parte. Mas no fim dei um jeito, e assim que a vi de novo, naquele centro de recuperação de Dover, nossas diferenças — ainda que não tivessem exatamente sumido do mapa — não me pareceram nem de longe tão importantes quanto tudo o mais: o fato de termos crescido juntas em Hailsham, o sabermos e nos lembrarmos de coisas que ninguém mais sabia ou das quais ninguém mais se lembrava. Foi dessa época em diante, imagino, que comecei a buscar nos doadores pessoas conhecidas no passado e, sempre que possível, de Hailsham.

Houve épocas, no decorrer desses anos todos, em que tentei esquecer Hailsham e me convencer de que não seria bom ficar olhando tanto para trás. Porém num determinado momento simplesmente parei de resistir. E isso teve a ver com um doador em particular, de quem tomei conta certa feita, no meu terceiro ano como cuidadora; com a reação dele quando comentei que era de Hailsham. Ele tinha acabado de sair da terceira doação, que não dera muito certo, e já devia saber que não iria se safar. Embora mal conseguisse respirar, me olhou e disse: "Hailsham. Aposto como era um lugar lindo". Na manhã seguinte, batendo um papinho na tentativa de distraí-lo daquilo tudo, perguntei de ondeele era; o doador mencionou algum lugar em Dorset e sua expressão, por baixo da pele manchada, passou a um tipo bem diferente de esgar. Foi então que caí em mim e percebi a vontade imensa que ele tinha de não se lembrar de nada. Tudo o que ele queria era que eu falasse de Hailsham.

Portanto, durante os cinco ou seis dias que se seguiram, contei-lhe tudo o que ele quis saber, enquanto, do leito, ele me ouvia fascinado, com um leve sorriso nos lábios. Falei dos nossos guardiões, das caixas com as coleções que eram guardadas debaixo da cama, do futebol, das partidas de rounders, do caminho estreito que contornava todos os cantos e recantos externos do casarão, do lago com os marrecos, da comida, da vista que tínhamos das janelas da Sala de Arte pela manhã, com os campos cobertos de bruma. Às vezes ele me fazia repetir vezes sem conta a mesma coisa; algo que eu mencionara no dia anterior voltava a ser alvo de perguntas, como se ele nunca tivesse escutado uma única palavra sobre o assunto. "Vocês tinham um pavilhão de esportes?" "Quem era seu guardião predileto?" De início, pensei que fosse apenas efeito dos remédios, mas depois me dei conta de que ele estava bem lúcido. Mais do que ouvir falar de Hailsham, ele queria se lembrar de Hailsham como se Hailsham tivesse pertencido a sua própria infância. Sabia que estava perto de concluir, de modo que me fazia descrever as coisas de forma que elas penetrassem de fato em sua lembrança. A intenção dele, talvez— durante as noites insones devido aos remédios, à dor e à exaustão —, era tornar indistintos os contornos que separavam as minhas memórias das suas. Só então compreendi, compreendi de fato, quanta sorte tivéramos — Tommy, Ruth, eu, na verdade todos nós.

Ainda hoje, dirigindo pelas estradas do interior, vejo coisas que me fazem lembrar de Hailsham. Às vezes, passando por um trecho sob neblina ou descendo a encosta de algum vale, ao divisar parte de um casarão ao longe, e até mesmo quando vislumbro o desenho formado por um grupo de choupos plantados no alto de um morro, logo me ocorre pensar: "Talvez seja ali! Achei o lugar! Aquilo é Hailsham, só pode ser!". Depois percebo que é impossível e sigo adiante, com os pensamentos vagando por outras paragens. Em especial, há os pavilhões. Vejo-os por todo o interior, sempre erguidos ao lado de um campo de esportes — pequenas construções pré-fabricadas, pintadas de branco, com uma fileira de janelas numa altura absurda, bem lá em cima, enfiadas quase debaixo dos beirais. Acho que eles devem ter construído um monte desses pavilhões nos anos 50 e 60, época em que muito provavelmente também construíram o nosso. Toda vez que passo perto de um, olho comprido para ele durante o tempo que for possível, e qualquer dia ainda vou causar um acidente por causa disso, mas não consigo evitar. Não faz muito tempo, eu rodava por um trecho deserto de Worcestershire e vi um, ao lado de um campo de críquete, tão parecido com o nosso em Hailsham que cheguei até a fazer o retorno e voltar para dar uma segunda olhada.

Adorávamos nosso pavilhão de esportes, talvez porque nos trouxesse à mente aquelas deliciosas casinhas que apareciam em tudo quanto era livro ilustrado, quando éramos crianças. Lembro-me de nós, ainda nos anos Júnior, implorando aos guardiões para que dessem a aula seguinte lá, e não na sala habitual. Mais tarde, quando cursávamos o Sênior 2 — quando tínhamos doze para treze anos —, o pavilhão se tornou nosso esconderijo predileto, nosso e dos nossos amigos mais íntimos, quando queríamos fugir de tudo e de todos em Hailsham.

O pavilhão era suficientemente grande para abrigar dois grupos distintos sem que um incomodasse o outro — no verão, um terceiro grupo podia ficar na varanda. Mas o ideal é que você e seus amigos ficassem com o lugar só para si, de modo que era muito freqüente haver discussões e empurra-empurra. Os guardiões viviam nos dizendo para agirmos com civilidade a respeito, mas na prática era preciso contar com personalidades fortes no grupo para ter alguma chance de conseguir exclusividade no pavilhão durante um recreio ou um período livre. Eu própria não era do tipo franzino, mas desconfio que foi de fato graças a Ruth que conseguimos nos reunir lá com a freqüência com que nos reuníamos.

Em geral não fazíamos mais que nos aboletar nas cadeiras e nos bancos — éramos cinco, seis quando Jenny B. ia junto — e bisbilhotar sobre a vida alheia. Havia um tipo de papo que só tinha possibilidade de acontecer quando estávamos escondidas lá no pavilhão; só então podíamos conversar sobre alguma coisa que estivesse nos preocupando, assim como também podíamos acabar às gargalhadas ou num arranca-rabo danado. Na maior parte das vezes, era uma forma de descontrair um pouco, ao lado das amigas do peito.

Nessa determinada tarde à qual me refiro agora, estávamos em pé sobre banquinhos e bancos, amontoadas em volta das janelas altíssimas. Isso nos dava uma visão muito boa do Campo de Esportes Norte, onde cerca de doze meninos, do nosso ano e do Sênior 3, se preparavam para jogar futebol. O tempo estava claro, mas devia ter chovido pouco antes, porque me lembro da luz do sol cintilando na superfície da relva enlameada.

Alguém comentou que não devíamos espiar daquela maneira assim tão óbvia, mas nós mal recuamos da janela. E então Ruth falou: "Ele não desconfia de nada. Olha só para ele. Ele de fato não desconfia de nada".

Quando Ruth disse isso, olhei para ela em busca de algum sinal de reprovação ao que os meninos iriam fazer com Tommy. Mas no segundo seguinte Ruth deu uma risadinha e falou: "Idiota!".

Percebi então que para Ruth e para as outras qualquer coisa que os meninos resolvessem fazer não nos dizia respeito em absoluto; nossa aprovação não vinha ao caso. Estávamos reunidas em volta das janelas naquele momento não porque ansiássemos por ver Tommy ser humilhado de novo, e sim porque simplesmente tínhamos ouvido falar do complô mais recente e sentíamos uma leve curiosidade de acompanhar sua concretização. Naquele tempo, acredito que os assuntos particulares dos meninos mal arranhavam a superfície das nossas preocupações. Para Ruth e para as outras, a distância entre eles e nós era enorme, e é bem provável que eu visse as coisas sob esse mesmo prisma.

Ou talvez essa minha lembrança esteja meio equivocada. Pode ser que já na época, ao ver Tommy correndo pelo campo com aquela sua indisfarçável expressão de deleite no rosto por ter sido aceito de volta, prestes a participar do jogo em que era tão bom, eu tenha sentido uma pequena pontada de dor. O fato é que me lembro muito bem de ter reparado na camisa que ele usava, comprada no Bazar do mês anterior, uma pólo azul-clara da qual tinha o maior orgulho. Lembro-me de ter pensado: "O Tommy é muito burro mesmo, vindo jogar futebol com ela. Vai ficar imprestável, e aí então como é que ele vai se sentir?". Em voz alta, eu disse, para ninguém em especial: "O Tommy está com aquela camisa. A pólo preferida dele".

Não creio que alguém tenha me escutado, porque estavam todas rindo de Laura — a grande palhaça do grupo —, que imitava, uma após a outra, as expressões que surgiam no rosto de Tommy enquanto ele corria, gesticulava, gritava, chutava. Os outros meninos todos se movimentavam pelo campo naquele ritmo propositadamente lânguido de quem está fazendo o aquecimento, mas Tommy, na sua emoção, parecia já estar em plena partida. E eu então disse, um pouco mais alto que da última vez: "Ele vai ficar tão chateado se estragar aquela camisa". Dessa vez, Ruth me ouviu, mas deve ter pensado que eu estava fazendo algum tipo de piada, porque riu de um jeito meio forçado e logo em seguida fez algum gracejo.

Àquela altura os meninos já haviam parado de chutar a bola e estavam todos reunidos, imóveis no campo enlameado, com o peito arfando para cima e para baixo, suavemente, enquanto esperavam o início da escalação. Os dois capitães que surgiram eram do Sênior 3, embora todo mundo soubesse que Tommy jogava melhor do que qualquer um deles. Em seguida foi feita a primeira escolha e o vencedor encarou o grupo.

"Olha só para ele", falou alguém atrás de mim. "Ele tinha certeza absoluta de que ia ser o primeiro escolhido. Olha só para ele!"

De fato, havia algo de cômico na expressão de Tommy naquele momento, algo que fazia você pensar, bem, de fato, se ele vai se comportar de forma assim tão tola então bem-feito, ele merece o que está por vir. Os outros meninos fingiam não estar dando a mínima para o processo de escolha, fingiam não se incomodar com os respectivos lugares na escalação dos times. Alguns conversavam baixinho com os colegas, outros reajustavam o laço dos cadarços e alguns apenas fitavam os pés, amassando o barro. Tommy, porém, olhava ansiosamente para o menino do Sênior 3 como se seu nome já tivesse sido chamado.

Laura continuou seu teatro durante toda a escalação, imitando as diferentes expressões que passavam pelo rosto de Tommy: a animada ansiedade do início; a preocupação aturdida depois de quatro escolhas sem que seu nome tivesse sido chamado; a mágoa e o pânico quando começou a desconfiar do que estava de fato acontecendo. Eu porém não via muito bem o que Laura fazia porque estava vigiando Tommy; só sei das palhaçadas dela porque as outras não paravam de rir e de incentivá-la a prosseguir. E então, depois de Tommy ter sido largado sozinho em campo, enquanto os outros meninos disfarçavam a risada, ouvi Ruth dizer:

"Chegou a hora. Segurem firme. Sete segundos. Sete, seis, cinco..."

Ela nem precisou terminar. Tommy explodiu num berreiro infernal e os meninos, que já então riam abertamente, começaram a correr na direção do Campo de Esportes Sul. Tommy deu alguns passos atrás do bando — difícil dizer se o instinto lhe dissera para ceder ao ímpeto e sair em perseguição raivosa ou se havia entrado em pânico por ter sido deixado para trás. De um modo ou de outro, estacou logo em seguida e ficou ali fuzilando os jogadores com olhares irados, o rosto escarlate. Depois começou a berrar e xingar — ma barafunda incoerente de palavrões e insultos.

Já tínhamos assistido a suficientes acessos de Tommy, àquela altura, de modo que descemos dos nossos banquinhos e nos espalhamos pelo salão. Tentamos conversar sobre outras coisas, mas Tommy não parava de fazer escarcéu lá fora e, apesar do esforço inicial para ignorá-lo, com algumas reviradas de olho, ao fim e ao cabo — é provável que bem uns dez minutos depois de descermos dos banquinhos —, estávamos de volta às janelas.

Não dava mais para ver os outros meninos e os comentários de Tommy já não eram endereçados a ninguém em particular. Ele se limitava a rugir e agitar os braços para lá e para cá, para o céu, para o vento, para o mourão de cerca mais próximo. Laura disse que talvez estivesse "ensaiando seu Shakespeare". Uma outra chamou a atenção para o jeito como ele erguia um pé do chão, apontando-o para fora, "feito um cachorro fazendo xixi". Na verdade, eu já tinha reparado nesse movimento dele, mas o que me preocupava era que toda vez que ele batia o pé no chão respingava barro na canela. Pensei outra vez em sua preciosa camisa, mas havia uma boa distância entre nós e não dava para eu ver se ela também estava muito salpicada de barro.

"Imagino que seja meio cruel", Ruth disse, "o jeito como eles provocam o Tommy. Mas a culpa é toda dele. Se aprendesse a manter a calma, todo mundo deixaria ele sossegado."

"Eles continuariam a provocá-lo do mesmo jeito", disse Hannah. "O Graham K. é tão enfezado quanto o Tommy, mas isso só faz as pessoas tomarem o maior cuidado ao lidar com ele. As pessoas pegam tanto no pé do Tommy porque ele é um vadio."

Logo depois estavam falando todas ao mesmo tempo, comentando que Tommy nunca nem tentava ser criativo, que ele não apresentara nada para a Permuta de Primavera. Desconfio que, àquela altura, a verdade é que todas nós torcíamos em segredo para que algum guardião aparecesse e tirasse Tommy dali. Embora não tivéssemos participado daquele último plano para irritar Tommy, havíamos ocupado nossos assentos na primeira fila da arena e estávamos começando a nos sentir culpadas. Entretanto não houve nem sinal de guardião, de modo que continuamos a desfiar motivos para explicar por que Tommy merecia tudo o que lhe acontecia. Porém na hora em que Ruth olhou o relógio e disse que, embora ainda restasse um tempinho, seria melhor voltarmos, ninguém levantou objeções.

Tommy continuava a plenos pulmões quando saímos de lá. O casarão ficava à esquerda e, uma vez que ele se achava parado no meio do campo, bem na nossa frente, não havia necessidade de passar perto. Mesmo porque ele estava de costas e, pelo visto, nem se dera conta da nossa presença. Eu, porém, enquanto minhas amigas seguiam contornando o campo de esportes, fui me desviando na direção dele. Sabia que elas ficariam intrigadas, mas continuei indo — mesmo quando escutei a voz de Ruth me dizendo, num cochicho urgente, que voltasse.

Desconfio que Tommy não estava acostumado a ser interrompido durante seus acessos, porque a primeira reação dele quando me aproximei foi olhar fixamente para mim durante um segundo antes de retomar o berreiro. Era como se estivesse interpretando alguma coisa de Shakespeare e eu tivesse entrado no palco durante a apresentação. Mesmo quando falei: "Tommy, sua camisa boa. Você vai estragar ela toda", não obtive o menor sinal de que havia me escutado.

De modo que estendi a mão para tocar seu braço. Mais tarde as outras meninas diriam que ele tinha feito de propósito, mas eu tinha certeza absoluta de que não fora por querer. Seus braços continuavam se agitando para lá e para cá e não havia como ele saber que eu iria tocá-lo. De todo modo, ao erguer o braço, ele empurrou minha mão para o lado e me atingiu na lateral do rosto. Não doeu nada, mas deixei escapar uma exclamação de surpresa, assim como a maioria das meninas.

Foi nesse momento que Tommy finalmente se deu conta de mim, das outras meninas, de si mesmo, do fato de estar ali no meio do campo se comportando daquela maneira, e me olhou com uma expressão meio idiota no rosto.

"Tommy", eu disse, com bastante severidade. "Tem barro na sua camisa toda."

"E daí?", ele resmungou. Mas, mesmo enquanto pronunciava isso, baixou os olhos, reparou nos salpicos marrons e por pouco não soltou um grito de alarme. Foi então que reparei na expressão de surpresa estampada em seu rosto por eu saber de seus sentimentos pela camisa pólo.

"Não fique preocupado com o barro", eu disse, antes que o silêncio se tornasse humilhante demais para ele. "Isso sai. Se não conseguir tirar você mesmo, leve para Miss Jody."

Ele continuou examinando a camisa, depois disse, mal-humorado: "Além do mais, isso não é da sua conta".

A impressão que eu tive foi que Tommy se arrependeu na hora desse último comentário. Ele me olhou todo encabulado, como se esperasse de mim alguma palavra de conforto. Mas eu já tivera uma dose mais que suficiente de Tommy para um só dia, sobretudo com as meninas me vigiando, e — e até onde me era dado saber — com uma quantidade bem maior de gente me espiando das janelas do casarão. De modo que dei as costas com um gesto de pouco-caso e fui para perto de minhas amigas.

Ruth pôs o braço em volta dos meus ombros quando nos afastamos. "Pelo menos você conseguiu fazer com que ele baixasse a bola. Você está bem? Criatura mais louca."

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

ESTRELA DISTANTE

Roberto Bolaño

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(UM TRECHO)

A primeira vez que vi Carlos Wieder foi em 1971 ou talvez 1972, quando Salvador Allende era presidente do Chile. Dizia chamar-se Alberto Ruiz-Tagle e às vezes aparecia na oficina de poesia de Juan Stein, em Concepción, a chamada capital do Sul. Não posso dizer que o conhecia bem. Via-o uma vez por semana, ou duas, quando ia à oficina. Não falava muito. Eu sim. A maioria de nós que íamos ali falava muito: não só de poesia, mas de política, de viagens (naquela ocasião, ninguém imaginava que viriam a ser aquilo que foram depois), pintura, arquitetura, fotografia, revolução e luta armada; a luta armada que nos traria uma nova vida e uma nova época, mas que para a maioria de nós era como um sonho ou, mais propriamente, como a chave que nos abriria a porta dos sonhos, os únicos pelos quais valia a pena viver. E embora soubéssemos vagamente que os sonhos muitas vezes se transformam em pesadelos, isso não importava. Tínhamos entre dezessete e vinte e três anos (eu tinha dezoito), e quase todos nós estudávamos na Faculdade de Letras, menos as irmãs Garmendia, que cursavam sociologia e psicologia, e Alberto Ruiz-Tagle, que, segundo ele mesmo afirmou certa vez, era autodidata. Muita coisa poderia ser dita sobre ser um autodidata no Chile daqueles dias que antecederam 1973. A verdade é que ele não parecia um autodidata. Quero dizer: exteriormente, não parecia um autodidata. Estes, no Chile, no começo dos anos 70, na cidade de Concepción, não se vestiam da maneira como Ruiz-Tagle se vestia. Os autodidatas eram pobres. Falava como um autodidata, isso sim. Falava como eu suponho que todos nós falamos agora, aqueles que ainda estamos vivos (falava como se vivesse no meio de uma nuvem), mas se vestia bem demais para quem não tinha sequer pisado numa universidade. Não quero dizer que fosse elegante - embora o fosse, sim, à sua maneira - nem que se vestisse de uma forma determinada; seu gosto era eclético: às vezes aparecia de terno e gravata, outras vezes com roupas esportivas, e não desdenhava do jeans nem de camisetas. Mas, qualquer que fosse o traje, Ruiz-Tagle sempre usava roupas caras, de grife. Em resumo, Ruiz‑-Tagle era elegante, e eu, naquela época, não achava que os autodidatas chilenos, sempre entre os manicômios e o desespero, fossem elegantes. Certa vez disse que seu pai ou seu avô tinha sido dono de umas terras na região de Puerto Montt. Ele contava (ou o ouvimos contar a Verónica Garmendia) que decidiu largar os estudos aos quinze anos para se dedicar ao trabalho no campo e à leitura da biblioteca paterna. Nós, da oficina de Juan Stein, dávamos como certo que ele era um bom cavaleiro. Não sei por quê, já que nunca o vimos montando nenhum cavalo. Na realidade, todas as suposições que podíamos estabelecer a respeito de Ruiz-Tagle eram predeterminadas pelo nosso ciúme, ou talvez por nossa inveja. Ruiz-Tagle era alto e magro, forte e de belas feições. Segundo Bibiano O'Ryan, era um sujeito de feições excessivamente frias para serem belas, mas, claro, Bibiano disse isso bem mais tarde, e assim não vale. Por que tínhamos ciúme de Ruiz-Tagle? O plural, aqui, é exagerado. Quem tinha ciúme era eu. Talvez Bibiano compartilhasse dele. O motivo, claro, eram as irmãs Garmendia, gêmeas univitelinas e estrelas incontestáveis da oficina de poesia. Tanto que às vezes tínhamos a sensação (Bibiano e eu) de que Stein dirigia toda a oficina em função apenas das duas. Eram, admito, as melhores. Verónica e Angélica Garmendia eram tão iguais em certos dias que ficava impossível distinguir uma da outra, e tão diferentes em outros dias (sobretudo em outras noites) que pareciam duas desconhecidas, quando não inimigas uma da outra. Stein as adorava. Além de Ruiz-Tagle, era o único que sempre sabia quem era Verónica e quem era Angélica. Mal consigo falar sobre elas. Às vezes aparecem nos meus pesadelos. Têm a mesma idade que eu, talvez um ano a mais, e são altas, magras, de pele morena e cabelos pretos compridos, como acredito que fosse moda naquela época.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O CASAMENTO DO MAGO

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Sinospe oficial: Muitas coisas conspiraram para que John Constantine nunca se casasse – inclusive o próprio John Constantine. Mas desta vez é diferente – desta vez é a jovem e linda alquimista Epiphany Greaves. Mesmo com a igreja cheia e o noivo envergonhado de cravo na lapela, tudo pode dar errado. Penetras do Céu e do Inferno ameaçam arruinar o casamento do ano. Nesta edição, confete e enxofre misturam-se ao cheiro de sangue no ar, numa edição de núpcias com o dobro de páginas.

O casamento acontece em Hellblazer 275 e é Escrito por Peter Milligan e desenhado por Giuseppe Camuncoli.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

CORONEL BASTARDO

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attendez-la-creme:

Col. Hans Landa: Put your foot in my lap.
Bridget von Hammersmark: Colonel, you embarrass me.
[Landa intolerantly points at his lap. Bridget gives in and places her foot in Landa’s lap. Landa gently removes her shoe.]
Col. Hans Landa: Could you please reach into the right pocket of my coat and give me what you find in there.
[Bridget slowly reaches into Landa’s pocket. She discovers her shoe and takes it out of the pocket.]
Col. Hans Landa: May I?

-Inglourious Basterds (2010, dir. Quentin Tarantino)

The part where he tells her to reach into his coat pocket— I legit went “oh shit” out loud in the theatre.

Vi no cheapandjuicy

(SIC) 64

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Orlandeli

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Rumo ao primeiro mundo!

Que a economia do Brasil é uma das que mais crescem no mundo, isso todos já sabem, porém, ainda assim, somos considerados um pais emergente. Agora, perseguições policiais cinematográficas como essa, só em países desenvolvidos, no entanto, temos um diferencial, uma peculiaridade, nos temos o Datena.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A GUERRA DO FIM DO MUNDO

Mario Vargas Llosa

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O homem era alto e tão magro que parecia estar sempre de perfil. Sua pele era escura, seus ossos, proeminentes, e seus olhos flamejavam com um fogo perpétuo. Usava sandálias de pastor e a túnica roxa que lhe caía sobre o corpo lembrava o hábito daqueles missionários que, vez por outra, visitavam as vilas do sertão batizando multidões de crianças e casando os pares amancebados. Era impossível saber sua idade, sua procedência, sua história, mas havia algo na sua expressão tranqüila, nos seus costumes frugais, na sua imperturbável seriedade que, antes mesmo de começar a dar conselhos, atraía as pessoas.

Aparecia de repente, a princípio sozinho, sempre a pé, coberto da poeira do caminho, de tantas em tantas semanas, ou meses. Sua silhueta longilínea se recortava na luz crepuscular ou nascente quando atravessava a única rua do povoado, a passos largos, com uma espécie de urgência. Avançava decidido entre cabras que chocalhavam, entre cachorros e crianças que abriam passagem e o observavam com curiosidade, sem responder aos cumprimentos das mulheres que já o conheciam e faziam reverências e corriam para lhe trazer jarros de leite de cabra e pratos de farinha e feijão. Mas ele não comia nem bebia nada antes de chegar à igreja da vila e constatar, mais uma vez, uma de tantas vezes, que estava em ruínas, descascada, com as torres semidestruídas, as paredes esburacadas, os pisos levantados, os altares roídos pelos vermes. Seu rosto se ensombrecia com uma dor de retirante a quem a seca matou os filhos e animais e privou de bens, e agora precisa abandonar sua casa, os ossos dos seus mortos, para fugir, fugir, sem saber para onde. Às vezes chorava, e no pranto o fogo negro dos seus olhos recrudescia em terríveis cintilações. Começava logo a rezar. Mas não como rezam os outros homens ou mulheres: deitava-se de bruços na terra ou nas pedras ou nas lajes lascadas, bem diante de onde era ou tinha sido ou deveria ser o altar, e orava, às vezes em silêncio, às vezes em voz alta, uma, duas horas, observado com respeito e admiração pelos moradores. Rezava o credo, o pai-nosso e as ave-marias conhecidos, e também outras rezas que ninguém tinha ouvido antes mas que, ao longo dos dias, dos meses, dos anos, as pessoas iriam memorizando. Onde está o padre?, ouviam-no perguntar, por que não há um pastor aqui para o rebanho? Pois não encontrar um sacerdote nas vilas o afligia tanto como o abandono das moradas do Senhor.

Só depois de pedir perdão ao Bom Jesus pelo estado de sua casa ele aceitava comer e beber alguma coisa, apenas uma amostra do que os moradores do lugar insistiam em oferecer, mesmo nos anos de escassez. Aceitava dormir embaixo de um teto, em alguma das moradias que os sertanejos punham à sua disposição, mas raramente era visto deitado na rede, no catre ou no colchão de quem lhe oferecia hospedagem. Deitava-se no chão, sem nenhuma coberta, e, apoiando no braço sua fervilhante cabeleira cor de azeviche, dormia algumas horas. Sempre tão poucas, que era o último a se deitar e, quando os vaqueiros e pastores mais madrugadores saíam para o campo, já o viam, trabalhando na restauração das paredes e dos telhados da igreja.

Dava seus conselhos ao entardecer, quando os homens voltavam da roça, as mulheres tinham terminado seus afazeres domésticos e as crianças já estavam dormindo. Falava nos descampados lisos e pedregosos que há em todos os povoados do sertão, no cruzamento das ruas principais, e que poderiam ser chamados de praças se tivessem bancos, coretos, jardins ou se ainda conservassem os que tiveram algum dia e foram destruídos pelas secas, pelas pragas, pela negligência. Falava na hora em que o céu do Norte do Brasil, antes de ficar escuro e estrelado, cintila entre flocosas nuvens brancas, cinzentas ou azuladas e se vê lá no alto, sobre a imensidão do mundo, um vasto fogo de artifício. Falava na hora em que se acendem as fogueiras para espantar os insetos e fazer a comida, quando o calor sufocante diminui e sopra uma brisa que deixa as pessoas com mais ânimo para suportar a doença, a fome e os padecimentos da vida.

Falava de coisas singelas e importantes, sem olhar especialmente para nenhuma das pessoas que o cercavam, ou melhor, olhando, com seus olhos incandescentes, através da aglomeração de velhos, mulheres, homens e crianças, para algo ou alguém que só ele podia ver. Coisas que se entendiam, porque eram obscuramente sabidas desde tempos imemoriais e absorvidas junto com o leite materno. Coisas atuais, tangíveis, cotidianas, inevitáveis, como o fim do mundo e o Juízo Final, que podiam acontecer, talvez, antes que o povoado reconstruísse a capela desmoronada. Como ia ser quando o Bom Jesus visse o desleixo com que cuidaram da sua casa? O que diria do comportamento dos pastores que, em vez de ajudar os pobres, raspavam seus bolsos cobrando pelos serviços da religião? Será que as palavras de Deus podiam ser vendidas, não deviam ser dadas de graça? Que desculpa dariam ao Pai os religiosos que, apesar do voto de castidade, forni*cavam? Podiam, por acaso, inventar mentiras para Aquele que lê pensamentos como o rastreador lê na terra as pegadas da onça? Coisas práticas, cotidianas, familiares, tais como a morte, que leva à felicidade se entrarmos nela de alma limpa, como numa festa. Os homens eram animais? Se não fossem, deviam atravessar essa porta engalanados com seu melhor traje, em sinal de reverência Àquele que iam encontrar. Falava do céu e também do inferno, a morada do Cão, forrada de brasas e cascavéis, e de como o Demônio podia se manifestar em inovações de aparência inofensiva.

Os vaqueiros e peões do interior o ouviam em silêncio, intrigados, atemorizados, comovidos, e da mesma maneira o ouviam os escravos e os libertos dos engenhos do litoral e as mulheres, pais e filhos de uns e de outros. Ocasionalmente, alguém — mas era raro, porque sua seriedade, sua voz cavernosa ou sua sabedoria os intimidava — o interrompia para esclarecer alguma dúvida. O século iria terminar? O mundo chegaria a 1900? Ele respondia sem olhar, com uma segurança tranqüila e, muitas vezes, com enigmas. Em 1900 as luzes se apagariam e choveriam estrelas. Mas, antes, iam ocorrer fatos extraordinários. Um silêncio acompanhava a sua voz, e nele se ouviam o crepitar das fogueiras e o zumbido dos insetos que as chamas devoravam, enquanto os presentes, prendendo a respiração, faziam um esforço antecipado de memória para recordar o futuro. Em 1896 mil rebanhos correriam da praia para o sertão, e o mar viraria sertão e o sertão, mar. Em 1897 o deserto se cobriria de grama, pastores e rebanhos se misturariam e, a partir de então, haveria um único rebanho e um único pastor. Em 1898 os chapéus aumentariam e as cabeças diminuiriam, e em 1899 os rios ficariam vermelhos e um novo planeta cruzaria o espaço.

Era preciso, então, preparar-se. Tinham que restaurar a igreja e o cemitério, a construção mais importante depois da casa do Senhor, pois era a antecâmara do céu ou do inferno, e destinar o tempo restante ao essencial: a alma. Por acaso o homem ou a mulher iam para o outro lado usando saias, vestidos, chapéus de feltro, sapatos de cordão e todos aqueles luxos de lã e de seda que o Bom Jesus nunca vestiu?

Eram conselhos práticos, singelos. Quando o homem ia embora, falavam dele: que era santo, que tinha feito milagres, que tinha visto a sarça ardente no deserto, como Moisés, e que uma voz lhe revelara o nome impronunciável de Deus. E comentavam seus conselhos. Assim, antes do final do Império e depois de proclamada a República, os habitantes de Tucano, Soure, Amparo e Pombal os ouviam; e, mês após mês, ano após ano, foram ressuscitando das ruínas as igrejas do Bom Conselho, de Geremoabo, de Massacará e de Inhambupe; e, seguindo seus ensinamentos, surgiram muros e nichos nos cemitérios de Monte Santo, de Entre Rios, de Abadia e de Barracão, e a morte foi celebrada com enterros dignos em Itapicuru, Cumbe, Natuba, Mocambo. Mês após mês, ano após ano, as noites de Alagoinhas, Uauá, Jacobina, Itabaiana, Campos, Itabaianinha, Geru, Riachão, Lagarto, Simão Dias foram se povoando de conselhos. Todos consideravam que eram bons conselhos, e por isso, a princípio em um, depois noutro e afinal em todos os vilarejos do Norte, o homem que os dava, embora seu nome fosse Antônio Vicente e seu sobrenome Mendes Maciel, começou a ser chamado de Conselheiro.

Uma treliça separa os redatores e funcionários do Jornal de Notícias — cujo nome se destaca, em caracteres góticos, acima da entrada — das pessoas que vão até lá para publicar um anúncio ou trazer uma informação. Os jornalistas não passam de quatro ou cinco. Um deles examina um arquivo embutido na parede; dois conversam animadamente, sem paletós mas com colarinhos duros e gravatinhas-borboleta, ao lado de um calendário onde se lê a data — outubro, segunda-feira 2, 1896 —; e outro, jovem, desmazelado, usando uns óculos grossos de míope, escreve com uma pena de ganso numa mesinha, indiferente ao que acontece ao seu redor. Ao fundo, atrás de uma porta de vidro, é a Diretoria. Um homem de viseira e punhos postiços atende a uma fila de clientes no balcão de Anúncios Pagos. Uma senhora acaba de entregar-lhe um cartão. O caixa, molhando o indicador, conta as palavras — Clisteres Giffoni// Curam as Gonorréias, as Hemorróidas, as Flores-Brancas e todas as moléstias das Vias Urinárias// Preparadas por Madame A. de Carvalho// Rua 1º de Março Nº 8 — e diz o preço. A senhora paga, guarda o troco e, quando se retira, o homem que estava atrás dela se adianta e entrega um papel ao caixa. Está de roupa escura, um fraque de duas pontas e um chapéu-coco que indicam muito uso. Uma cabeleira vermelha cheia de cachos cobre as suas orelhas. É mais alto que baixo, de costas largas, sólido, amadurecido. O caixa conta as palavras do anúncio, fazendo o dedo deslizar sobre o papel. De repente franze a testa, ergue o dedo e aproxima muito o texto dos olhos, para conferir se não tinha lido mal. Por fim, olha perplexo para o cliente, que permanece parado como uma estátua. O caixa pisca, embaraçado, e por fim diz ao homem que espere. Arrastando os pés, atravessa o local com o papel balançando na mão, bate com os nós dos dedos no vidro da Diretoria e abre a porta. Segundos depois reaparece e, com gestos, pede ao cliente que entre. Depois, volta ao seu trabalho.

O homem de escuro cruza o Jornal de Notícias fazendo seus passos ressoarem como se estivesse de ferraduras. Quando entra no pequeno escritório, entulhado de papéis, jornais e propaganda do Partido Republicano Progressista — Um Brasil Unido, Uma Nação Forte —, é recebido por um homem que o olha com uma curiosidade risonha, como se fosse um ser do outro mundo. Está ocupando a única escrivaninha, usa botas, um terno cinza, e é jovem, moreno, com ar enérgico.

— Sou Epaminondas Gonçalves, diretor do jornal — diz. — Entre.

O homem de escuro faz uma ligeira reverência e põe a mão no chapéu, mas não o tira nem diz palavra.

— O senhor pretende que publiquemos isto? — pergunta o diretor, sacudindo o papelzinho.

O homem de escuro confirma. Tem uma barbinha avermelhada como o cabelo, e seus olhos são penetrantes, muito claros; sua boca larga está franzida com firmeza e as fossas do nariz, muito abertas, parecem aspirar mais ar do que precisam.

— Desde que não custe mais de dois mil-réis — murmura, num português difícil. — É todo o meu capital.

Epaminondas Gonçalves fica na dúvida entre rir ou se irritar.

O homem continua em pé, muito sério, observando-o. O diretor opta por passar os olhos pelo papel:

— “Os amantes da justiça são convocados para um ato público de solidariedade aos idealistas de Canudos e a todos os rebeldes do mundo, na praça da Liberdade, dia 4 de outubro, às seis da tarde” — lê, devagar. — Pode-se saber quem convoca este comício?

— Por enquanto, eu — responde o homem, sem vacilar. — Mas se o Jornal de Notícias quiser apoiar, wonderful.

— O senhor sabe o que aquela gente faz, lá em Canudos? — murmura Epaminondas Gonçalves, batendo na mesa. — Ocupam terras alheias e vivem em promiscuidade, como animais.

— Duas coisas dignas de admiração — opina o homem de escuro. — Por isso decidi gastar meu dinheiro com este anúncio.

O diretor fica um instante calado. Antes de falar outra vez, pigarreia:

— Pode-se saber quem é o senhor?

Sem fanfarronice, sem arrogância, com uma solenidade mínima, o homem se apresenta assim:

— Um combatente da liberdade, senhor. O anúncio vai ser publicado?

— Impossível, senhor — responde Epaminondas Gonçalves, já dono da situação. — As autoridades da Bahia só estão esperando um pretexto para fechar o meu jornal. Por mais que da boca para fora tenham aceitado a República, continuam sendo monarquistas. Somos o único jornal autenticamente republicano do Estado, suponho que já notou.

O homem de escuro faz um gesto desdenhoso e resmunga, entre os dentes, “Era o que eu esperava”.

— E lhe aconselho que não leve este anúncio ao Jornal da Bahia — prossegue o diretor, devolvendo o papelzinho. — É do barão de Canabrava, o dono de Canudos. O senhor acabaria na cadeia.

Sem uma palavra de despedida, o homem de escuro dá meia-volta e se afasta, guardando o anúncio no bolso. Atravessa a redação do jornal sem dirigir a vista ou a palavra a ninguém, com seu andar sonoro, observado de esguelha — uma silhueta fúnebre, cabelos ondulantes muito acesos — pelos jornalistas e clientes dos Anúncios Pagos. Após sua passagem, o jornalista jovem, com seus óculos de míope, levanta-se da mesinha com uma folha amarelada na mão e vai até a Diretoria, onde Epaminondas Gonçalves ainda está espiando o desconhecido.

— “Por ordem do governador do Estado da Bahia, o Excelentíssimo Senhor Luis Viana, partiu hoje de Salvador uma companhia do Nono Batalhão de Infantaria, comandada pelo tenente Pires Ferreira, com a missão de expulsar de Canudos os bandidos que ocuparam aquela fazenda e capturar seu chefe, o sebastianista Antônio Conselheiro” — lê, ainda na soleira da porta. — Primeira página ou interna, senhor?

— Embaixo dos enterros e das missas — diz o diretor. Aponta para a rua, onde o homem de escuro desapareceu. — Sabe quem é esse sujeito?

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

PRIMEIRO SANGUE

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Para baixar a trilha, clique na imagem.

Vi no godvsgodard

COMO A GERAÇÃO SEXO-DROGAS-ROCK'N'ROLL SALVOU HOLLYWOOD

Peter Biskind

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Introdução:
KNOCKIN' ON HEAVEN'S DOOR


__ Alguns amigos meus estavam falando que os anos 70 foram a última Era de Ouro. Eu disse: 'Como vocês podem dizer uma coisa dessas?' Eles retrucaram: 'Olha só, tinha todos esses grandes diretores fazendo um filme atrás do outro. Tinha Altman, Coppola, Spielberg, Lucas...
- MARTIN SCORSESE

Nove de fevereiro de 1971, 6h01. Um punhado de carros, faróis brilhando vagamente na neblina do amanhecer, já havia começado a trafegar nas freeways, seus motoristas sonolentos bebendo café em copos de plástico, ouvindo o noticiário do rádio. A máxima prevista era de 23 graus. O julgamento de Charles Manson, agora na fase da sentença, ainda intrigava e excitava Los Angeles. De repente, o chão começou a sacudir violentamente, mas não com o movimento ondulante, quase confortável, de terremotos anteriores. Dessa vez era um corcovear terrível, para cima e para baixo, abrupto, intenso, longo, que parecia durar para sempre. Para muitos, o terremoto de 6.5 na escala Richter pareceu ser o Big One. As garotas da Família Manson disseram, depois, que o próprio Charlie tinha provocado o abalo para punir os pecadores que o atormentavam.
Em Burbank, Martin Scorsese foi ejetado da cama com um sacolejão. Tinha conseguido sua primeira grande oportunidade, um emprego como montador na Warner Bros., e havia chegado de Nova York algumas semanas antes. Marty estava hospedado no Motel Toluca, do outro lado da rua do estúdio. Ele sonhava com livros raros quando ouviu um ronco surdo e imaginou estar no metrô. "Pulei da cama e olhei pela janela", recorda. "Tudo tremia. O céu estava riscado de raios - eram os fios de alta tensão se soltando dos postes e caindo no chão. Era horrível. Eu pensei: 'Tenho que dar o fora daqui.' Quando finalmente calcei minhas botas de caubói, peguei meu dinheiro e as chaves do quarto do motel e saí porta afora, tinha acabado. Fui para o Copper Penny e, quando tomava meu café, houve um tremendo choque secundário. Eu me levantei e saí correndo e um cara olhou para mim e perguntou: 'Para onde você está indo?' E eu disse: 'Você está certo. Estou preso aqui.'"
Para Scorsese, não havia mesmo lugar algum para ir. Ele tinha seguido a trilha de seus sonhos até Hollywood e, se a viagem se tornasse difícil demais, suas opções eram aguentar firme ou voltar para Nova York, fazer filmes industriais, morar no velho bairro de seus pais e comer cannoli, sabendo, o tempo todo, que não tivera a coragem necessária para fazer sucesso no cinema. Antes que a poeira tivesse assentado, 65 pessoas tinham perecido no terremoto. Nenhum dos personagens deste livro está entre elas. Os ferimentos deles foram criados por eles mesmos.
PARA OS PROPÓSITOS DESTE LIVRO, O TERREMOTO DE 1971 foi supérfluo, desnecessário, um exagero, como é tão típico de Hollywood. O verdadeiro terremoto, a convulsão cultural que transformou a indústria do cinema, começara uma década antes, quando as placas tectônicas debaixo dos estúdios começaram a se mover, rachando as verdades absolutas da Guerra Fria - o medo universal da União Soviética, a paranoia do Terror Vermelho, a ameaça da bomba - e libertando uma nova geração de cineastas do gelo do conformismo dos anos 50. Logo a seguir vieram, todos misturados, uma série de abalos premonitórios - o movimento dos direitos civis, os Beatles, a pílula, o Vietnã e as drogas - que, combinados, abalaram seriamente os estúdios e fizeram com que o "tsunami" demográfico que são os "baby boomers" desabasse sobre eles.
Como os filmes são caros e demorados de fazer, Hollywood é sempre a última a saber, a mais lenta a reagir e, nessa época, estava pelo menos meia década atrás das outras artes populares. Por isso, um bom tempo se passou até que o odor acre de cannabis e gás lacrimogêneo chegasse até as piscinas de Beverly Hills e a gritaria atingisse os portões dos estúdios. Mas quando o "flower power" bateu no final dos anos 60, bateu com tudo. Enquanto o país ardia, os Hells Angels desfilavam em suas motos pelo Sunset Boulevard e garotas dançavam na rua de peitos de fora ao som da música do The Doors, que emanava dos clubes da Sunset Strip. "Era como se o chão estivesse em chamas e, ao mesmo tempo, tulipas estivessem brotando", recorda Peter Guber, na época estagiário na Columbia e, mais tarde, presidente da Sony Pictures Entertainment. Tudo era uma grande festa. O velho era sempre ruim, o novo era sempre bom. Nada era sagrado; tudo podia ser mudado. Era, na realidade, uma revolução cultural à moda americana.
Lá pelo final dos anos 60 e começo dos 70, para quem era jovem, ambicioso e tinha talento não havia lugar melhor em toda a Terra do que Hollywood. O buchicho em torno dos filmes atraía os melhores e mais brilhantes da geração "baby boom" para as escolas de cinema. Todo mundo queria entrar na onda. Norman Mailer preferia fazer cinema a escrever livros; Andy Warhol preferia fazer cinema a reproduzir latas de sopa Campbell. Astros de rock como Bob Dylan, Mick Jagger e os Beatles mal podiam esperar para estar na frente e, no caso de Dylan, atrás das câmeras. Nas palavras de Steven Spielberg: "Os anos 70 foram a primeira vez em que as restrições de idade foram abolidas, e jovens tiveram permissão para tomar tudo de assalto com toda a sua ingenuidade e toda a sua sabedoria e todos os privilégios da juventude. Foi uma avalanche de ideias novas e ousadas e, por isso, os 70 tornaram-se um marco."

LOBISOMEM

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Lon Chaney Jr.

PALAVRAS DE UM PREGADOR

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__ Só existem dois lugares onde você pode encontrar Deus: na igreja e no fundo de uma garrafa. E eu vou lhe contar uma coisa: na igreja, ele não está! __ Jesse Custer.

Garth Ennis, em Preacher.

MINA MURRAY

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Adam Hughes.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

ALGO ALÉM

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Em meus westerns há sempre algo além do aventuresco e do espetacular, “Django” era um filme sobre racismo e intolerância, “Navajo Joe” era contra o assassinato em massa dos índios, “Gli Specialisti” era um filme contra a opressão das classes ricas. Era um tempo em que os hippies estavam na moda e então eu decidi colocar alguns hippies fumando cannabis na cena final... Também tinha uma cena em que um dos personagens queimava dinheiro e isso irritou muitas pessoas.

Sergio Corbucci

Vi no bmovieblues.blogspot.com