sábado, 30 de outubro de 2010

COMPLÔ CONTRA A AMÉRICA

Philip Roth

pato donald nazista

(Um trecho)

1
Junho de 1940 — outubro de 1940
Vote em Lindbergh ou vote a favor da guerra

O medo domina estas lembranças, um medo perpétuo. Toda infância, é claro, tem seus terrores, mas me pergunto se eu não teria sido uma criança menos assustada se Lindbergh não tivesse chegado à Presidência ou se eu não fosse filho de judeus.

Quando ocorreu o choque inicial, em junho de 1940 — o lançamento da candidatura presidencial de Charles A. Lindbergh, o heróico aviador americano de renome mundial, na convenção do Partido Republicano, realizada em Filadélfia —, meu pai estava com trinta e nove anos; era corretor de seguros, tinha apenas o curso primário e ganhava um pouco menos de cinqüenta dólares por semana, o que era suficiente para pagar as contas principais sem atraso mas não dava para quase mais nada. Minha mãe — que não pôde realizar o projeto de cursar a escola normal por falta de dinheiro, que depois de concluir o secundário continuou morando com os pais enquanto trabalhava como secretária, que conseguiu fazer com que não nos sentíssemos pobres durante a pior fase da Depressão utilizando o salário que meu pai lhe entregava todas as sextas-feiras com a mesma eficiência com que administrava a casa — tinha trinta e seis. Meu irmão, Sandy, que cursava a sétima série e tinha um talento prodigioso para o desenho, estava com doze anos, e eu, aluno da terceira série, embora pela minha idade devesse estar na segunda — e aprendiz de filatelista, inspirado, como milhões de outros meninos, pelo mais famoso colecionador do país, o presidente Roosevelt —, tinha sete.

Morávamos num pequeno sobrado de uma rua arborizada, toda de casas de madeira com varandas de tijolos vermelhos, cada varanda encimada por um telhado de cumeeira e com uma área pequenina à frente cercada por uma sebe baixa. O bairro de Weequahic fora construído num loteamento de fazendas a sudoeste de Newark, pouco depois da Primeira Guerra Mundial; cerca de meia dúzia de ruas receberam nome de comandantes navais vitoriosos da Guerra Hispano-Americana, uma prática imperial; e o cinema, em homenagem ao primo distante de Franklin Delano Roosevelt — e vigésimo sexto presidente da República —, chamava-se Cine Roosevelt. A rua em que morávamos, a Summit Avenue, ficava no ponto mais alto do bairro, um promontório de altitude considerável numa cidade portuária em que poucos pontos atingem mais de trinta metros acima do nível do pântano salgado a norte e a leste do perímetro urbano, e da baía profunda situada a leste do aeroporto, que contorna os tanques de óleo da península de Bayonne e lá se confunde com a baía de Nova York, passando pela Estátua da Liberdade e perdendo-se no Atlântico. Quem olhasse para o oeste da janela de fundos do nosso quarto, por vezes conseguia ver ao longe a massa escura das árvores dos montes Watchung, uma serra de baixa altitude cercada por grandes propriedades e subúrbios prósperos de baixa densidade populacional, fronteira extrema do mundo conhecido — a cerca de treze quilômetros de nossa casa. Seguindo para o sul, no quarteirão seguinte começava Hillside, uma cidade operária habitada majoritariamente por gentios. A divisa com Hillside assinalava também o início do condado de Union, que era uma Nova Jersey totalmente diferente da nossa.

Éramos uma família feliz em 1940. Meus pais eram extrovertidos e hospitaleiros; faziam amigos entre os colegas de trabalho de meu pai e as mulheres que, com minha mãe, haviam ajudado a organizar a Associação de Pais e Mestres da recém-construída Escola da Chancellor Avenue, onde eu e meus irmãos estudávamos. Todos eram judeus. Os homens do bairro eram ou pequenos comerciantes — donos da bonbonnière, da mercearia, da joalheria, da loja de roupas, da loja de móveis, do posto de gasolina, da delicatéssen —, ou proprietários de pequenas indústrias perto da divisa Newark—Irvington, ou trabalhadores autônomos — encanadores, eletricistas, pintores e caldeireiros —, ou então vendedores ambulantes como meu pai, fora de casa o dia inteiro, caminhando pelas ruas da cidade e entrando nas casas das pessoas para vender seus produtos e vivendo das comissões. Os judeus médicos e advogados e os comerciantes afluentes, donos de lojas importantes no centro da cidade, moravam em casas individuais situadas nas transversais da encosta leste do promontório em que ficava a Chancellor Avenue, para os lados do Parque Weequahic, uma extensão de cento e vinte hectares cobertos de relva e árvores, com tratamento paisagístico dotado de um lago onde se podia andar de barco, de campo de golfe e de pista de corrida de carruagens. O parque separava Weequahic das fábricas e dos terminais portuários que se sucediam ao longo da Route 27, bem como do viaduto da Ferrovia Pensilvânia, mais para leste, e do aeroporto florescente, mais para leste, e da beirinha dos Estados Unidos, mais para leste — os armazéns e o cais do porto da baía de Newark, aonde chegavam carregamentos vindos do mundo inteiro. Na extremidade oeste do bairro, a mais afastada do parque, onde morávamos, vivia um ou outro professor ou farmacêutico, mas de modo geral havia bem poucos profissionais liberais na nossa vizinhança, e sem dúvida lá não morava nenhum membro das famílias ricas de empresários e industriais. Os homens trabalhavam cinqüenta, sessenta, até setenta horas por semana, ou mais; as mulheres trabalhavam o tempo todo, sem contar com a ajuda de quase nenhum eletrodoméstico, lavando roupa, passando camisas, cerzindo meias, ajeitando colarinhos, pregando botões, embrulhando agasalhos de lã com naftalina no fim do inverno, passando lustra-móveis na mobília, varrendo e lavando assoalhos, lavando janelas, limpando pias, banheiras, privadas e fogões, passando aspirador de pó nos tapetes, cuidando dos doentes, fazendo compras, cozinhando, dando comida a parentes, arrumando armários e gavetas, supervisionando trabalhos de pintura e consertos domésticos, organizando atividades religiosas, pagando contas, administrando o orçamento doméstico e ao mesmo tempo tomando conta das crianças, cuidando de sua saúde, roupa, limpeza, educação, nutrição, conduta, de seus aniversários, de sua disciplina e de sua moral. Umas poucas mulheres trabalhavam ao lado dos maridos em lojas nas ruas comerciais do bairro, sendo ajudadas, depois do horário escolar e nos sábados, pelos filhos mais velhos, que faziam entregas e cuidavam dos estoques e da limpeza.

Para mim, era o trabalho, muito mais do que a religião, que identificava e distinguia nossos vizinhos. Ninguém no bairro usava barba nem vestia aqueles trajes europeus antiquados, tampouco andava de quipá na rua e nas casas em que eu entrava e saía todos os dias com meus amigos de infância. Os adultos minimamente religiosos já não observavam os costumes judaicos de maneira ostensiva, identificável, fora um ou outro homem mais velho, como o alfaiate e o açougueiro kosher — e os avós doentes ou decrépitos que eram obrigados a morar com os filhos adultos —, quase ninguém ali falava com sotaque. Em 1940, os casais judeus e seus filhos conversavam entre si num inglês americano mais parecido com a língua falada em Altoona ou Binghamton do que com os dialetos notoriamente utilizados do outro lado do Hudson pelos judeus nova-iorquinos. Havia inscrições em hebraico na vitrine do açougue e nas pequenas sinagogas do bairro, mas era só nesses lugares (e no cemitério) que encontrávamos o alfabeto do livro de orações em vez das letras bem conhecidas da língua nativa, utilizada o tempo todo por praticamente todos nós para todas as finalidades, elevadas ou humildes. No jornaleiro em frente à bonbonnière da esquina, a revista de turfe, Racing Form, vendia dez vezes mais exemplares do que o diário em iídiche, o Forvertz.

Israel ainda não existia, seis milhões de judeus europeus ainda não haviam deixado de existir, e a relevância da longínqua Palestina (sob mandato britânico desde que os aliados vitoriosos dissolveram, em 1918, as últimas províncias remotas do extinto Império Otomano) era para mim um mistério. Quando um desconhecido barbudo que jamais fora visto sem chapéu começou a aparecer regularmente em nossa casa, com intervalos de alguns meses, ao cair da tarde, pedindo, num inglês macarrônico, contribuições para a criação de uma pátria para os judeus da Palestina, eu, que não era uma criança ignorante, não entendia o que ele estava fazendo à nossa porta. Meus pais davam algumas moedas a mim ou a Sandy para que as colocássemos em sua caixa de donativos, generosidade essa, pensava eu, motivada pelo desejo de não magoar os sentimentos de um pobre velho que nem mesmo com o passar dos anos conseguia enfiar na cabeça que havia três gerações já tínhamos uma pátria. Todas as manhãs, na escola, eu prestava o juramento à bandeira nacional. Com meus colegas, nas cerimônias, cantava hinos que louvavam as maravilhas de nosso país. Observava religiosamente os feriados nacionais, e jamais me ocorreu questionar minha empolgação com a queima de fogos do Dia da Independência, pelo peru do Dia de Ação de Graças ou pela partida dupla de beisebol no Dia do Soldado. A nossa pátria era os Estados Unidos da América.

Nesse momento os republicanos lançaram a candidatura Lindbergh, e tudo mudou.

Havia mais de dez anos que Lindbergh era um herói tão adorado em nosso bairro quanto em qualquer outro lugar. Sua chegada a Paris, após voar sozinho durante trinta e três horas e meia sem parar, partindo de Long Island num pequeno monomotor chamadoSpirit of St. Louis, por acaso coincidiu com o dia da primavera de 1927 em que minha mãe descobriu estar grávida de meu irmão mais velho. Assim, o jovem aviador cuja ousadia emocionara toda a nação e o mundo, cujo feito apontava para um futuro de progressos aeronáuticos inimagináveis, passou a ocupar um lugar todo especial na galeria de casos familiares que origina a primeira mitologia coerente de uma criança. O mistério da gravidez e o heroísmo de Lindbergh se misturaram na minha cabeça para conferir uma distinção quase divina à minha mãe, já que a encarnação de seu primeiro filho veio acompanhada de nada menos do que uma anunciação global. Sandy viria a registrar esse momento com um desenho que representava a justaposição desses dois eventos magníficos. No desenho — que ele concluiu com nove anos de idade e que demonstrava uma afinidade inconsciente com os cartazes de propaganda soviéticos — Sandy a imaginava a alguns quilômetros de nossa casa, em meio a uma multidão delirante na esquina das ruas Broad e Market. Uma moça esguia de vinte e três anos, de cabelo negro e sorriso escancarado, ela aparece surpreendentemente desacompanhada, usando seu avental de florzinhas no cruzamento das duas principais artérias da cidade; tendo uma das mãos aberta diante do avental, por trás do qual os quadris estreitos ainda não indicam seu estado, enquanto com a outra é a única pessoa na multidão a apontar para o céu, na direção do Spirit of St. Louis, que passa sobre o centro de Newark no exato instante em que ela se dá conta de que, num feito tão triunfal para um ser humano quanto o de Lindbergh, concebeu Sanford Roth.

Sandy estava com quatro anos e eu, Philip, ainda não era nascido quando, em março de 1932, o primogênito de Charles e Anne Morrow Lindbergh, um menino cujo nascimento, um ano e oito meses antes, fora comemorado em todo o país, foi raptado da casa da família, que vivia isolada num lugarejo chamado Hopewell, em Nova Jersey. Cerca de dez semanas depois, o cadáver já putrefato da criança foi descoberto por acaso no meio do mato, a alguns quilômetros da residência. O bebê havia sido assassinado ou morto por acidente depois de ser retirado do berço e, na escuridão, ainda envolto nas roupas de cama, carregado pela janela para fora de seu quarto no andar de cima da casa por meio de uma escada improvisada, enquanto a ama e a mãe se entregavam a seus afazeres noturnos habituais em outros cômodos da residência. Quando o julgamento por rapto e morte em Flemington, Nova Jersey, chegou ao término, em fevereiro de 1935, com a condenação de Bruno Hauptmann — um ex-presidiário alemão de trinta e cinco anos que morava no Bronx com a esposa, também alemã —, a bravura do autor do primeiro vôo transatlântico solitário já estava impregnada por um sentido trágico que o transformava num herói martirizado comparável a Lincoln.

Após o julgamento, os Lindbergh partiram do país na esperança de que, graças a uma estada no estrangeiro, o novo bebê Lindbergh corresse menos riscos e eles próprios recuperassem algo da privacidade que desejavam. A família se instalou numa cidadezinha da Inglaterra, e Lindbergh, por iniciativa própria, começou a fazer as viagens à Alemanha nazista que o transformariam em vilão para a maioria dos judeus americanos. No decorrer dessas cinco visitas, durante as quais viu com os próprios olhos a magnitude da máquina bélica alemã, foi ostensivamente recebido pelo marechal Göring e cerimoniosamente condecorado em nome do Führer, e manifestou de modo inequívoco o elevado apreço que tinha por Hitler, dizendo que a Alemanha era "a nação mais interessante" do mundo e seu líder, "um grande homem". E todo esse interesse e admiração foram manifestados depois que as leis raciais aprovadas por Hitler em 1935 privaram os judeus da Alemanha de seus direitos civis, sociais e de propriedade, cancelaram sua cidadania e proibiram casamentos mistos com arianos.

Quando entrei para a escola em 1938, o nome de Lindbergh provocava em nossa casa o mesmo tipo de indignação evocado pelos programas radiofônicos dominicais do padre Coughlin, de Detroit, que publicava um hebdomadário de direita chamado Social Justice, cuja virulência anti-semita atiçou as paixões de um público considerável durante todo o período da Depressão. Foi em novembro de 1938 — o ano mais negro, mais terrível dos últimos dezoito séculos para os judeus da Europa — que o pior pogromdos tempos modernos, a Kristallnacht, foi instigado pelos nazistas em toda a Alemanha: sinagogas incendiadas, residências e propriedades comerciais de judeus destruídas e, no decorrer de toda uma noite que foi um presságio do futuro monstruoso, milhares de judeus retirados à força de suas casas e transportados para campos de concentração. Quando sugeriram a Lindbergh que, diante daquela selvageria sem precedentes perpetrada por um Estado contra seus próprios cidadãos nativos, talvez fosse o caso de ele devolver a cruz de ouro enfeitada com quatro suásticas que lhe fora conferida em nome do Führer pelo marechal Göring, ele se recusou a fazê-lo, argumentando que, para ele, devolver publicamente a Medalha da Cruz de Serviço da Águia Alemã seria "um insulto desnecessário" à liderança nazista.

Lindbergh foi o primeiro americano famoso vivo que aprendi a odiar — assim como o presidente Roosevelt foi o primeiro americano famoso vivo que me ensinaram a amar —, e assim sua indicação pelo Partido Republicano para disputar a Presidência com Roosevelt em 1940 abalou, como nada abalara antes, a imensa segurança pessoal que eu sentia como coisa natural, sendo um menino americano filho de pais americanos que estudava numa escola americana e morava numa cidade americana num período em que a nação americana estava em paz com o mundo.

Nenhum comentário: