sábado, 30 de outubro de 2010

O LIVRO DAS PROVAS

John Banville

a  P Bonnard  Nu no banho, com cão  1941 -46

Um trecho

Quando o senhor mandar que eu conte tudo diante do júri, com minhas próprias palavras, é isso o que vou dizer. Vivo enjaulado aqui como se fosse um animal exótico, último sobrevivente de uma espécie que já julgavam extinta. Deveriam permitir que as pessoas viessem me ver - o devorador de meninas, esbelto e perigoso, a caminhar de um lado para o outro da jaula, lançando meu terrível olhar esverdeado por entre as grades. Isso lhes daria algo com que sonhar à noite, aconchegados em seus leitos. Logo que me capturaram eles disputavam a patadas um lugar de onde pudessem me ver. Teriam até pago por esse privilégio, aposto. Gritavam todo tipo de ofensas, brandiam seus punhos cerrados para mim, mostrando-me os dentes. Parecia que aquilo não estava acontecendo de fato. Não sei dizer como, mas era ao mesmo tempo aterrorizante e engraçado vê-los ali a se movimentar pela rua como figurantes de um filme, rapazes em suas capas de chuva baratas e mulheres carregando sacolas de compras, além de uns dois personagens que permaneciam, imóveis, a me olhar fixamente, ansiosos, pálidos de inveja. Então um policial jogou uma coberta sobre minha cabeça e me levou, embrulhado, para o camburão. Não pude conter o riso. Aquilo tudo era irresistivelmente engraçado. A realidade, banal como sempre, estava concretizando minhas piores fantasias.

E por falar na coberta, eles a teriam levado especialmente para mim, ou será que sempre têm uma à mão? Perguntas desse tipo não param de perturbar minha cabeça. Não dá para parar de pensar. Que figura interessante eu devo ter ficado para quem foi me espiar. Lá estava eu, sentado no banco de trás como uma espécie de múmia, quando o carro da polícia partiu em alta velocidade pelas ruas molhadas e iluminadas pelo sol que surgia. A sirene soava alto e imponente.

Depois foi este lugar aqui. A princípio o que mais me impressionou foi o barulho. Uma algazarra terrível - gritos e assovios, gargalhadas, bate-bocas, gemidos. Mas há momentos também em que se faz um silêncio insuportável, como se um medo enorme, ou uma tristeza infinda, desabasse sobre nós deixando-nos sem fala. Nessas ocasiões o ar fica parado nos corredores, e é como se estivéssemos imersos em água estagnada. Sente-se então um leve odor de ácido fênico, como que num cemitério. No começo pensei que fosse eu, isto é, pensei que aquele cheiro fosse meu, uma contribuição minha. Ainda tenho minhas dúvidas. A luz do dia também é estranha aqui, mesmo no lado de fora, no pátio, como se alguma coisa tivesse acontecido com ela, como se tivessem feito algo com ela antes de deixarem que ela penetrasse aqui. Tem uma tonalidade ácida, de limão, e chega até nós em duas intensidades: ou não é o suficiente para que se possa enxergar ou é tão intensa que parece cauterizar tudo. Das várias modalidades de escuridão eu não vou falar.

Minha cela. Minha cela está aí e não tenho mais nada a dizer sobre ela.

Os veteranos ficam nas melhores celas. É justo. Afinal de contas, podem chegar à conclusão de que sou inocente. Ai, eu não posso nem rir porque dói demais. Sinto uma fisgada horrível, como se alguma coisa apertasse meu coração. Talvez seja o peso da minha culpa. Acho que é. Tenho uma mesa e uma cadeira de braço que eles chamam de poltrona. Aqui tem até um aparelho de televisão que raramente ligo, agora que meu caso está subjudice e não se fala mais de mim nos noticiários. As instalações sanitárias deixam a desejar. Balde de despejos: que nome sugestivo. Preciso arranjar uma bichinha para mim. Pode ser neófito mesmo. Algum sujeito jovem, jeitoso e que esteja a fim. Mas que não seja impertinente. Isso não deve ser difícil. Preciso também ver se arranjo um dicionário.

O que mais me incomoda aqui é o cheiro de esperma por toda a parte. Este lugar fede a esperma.

Confesso que tinha umas expectativas meio românticas sobre o que encontraria aqui. De certa forma eu me via como uma espécie de celebridade, mantida à parte dos demais prisioneiros em alguma ala especial, onde receberia grupos de pessoas solenes e importantes com as quais discutiria as grandes questões do momento, deixando os homens impressionados e as mulheres encantadas comigo. Que sensibilidade!, diriam em espanto. Que visão do mundo! Disseram-nos que o senhor era uma fera, insensível e cruel, porém agora que o vimos e ouvimos, ora -! E lá estaria eu, em uma pose elegante, com meu perfil ascético erguido contra a luz da janela de grades, os dedos a brincar tranqüilamente com um lenço perfumado, e um sorriso levemente afetado: Jean-Jacques, o assassino intelectual.

Nada disso. Absolutamente nada disso. Mas também não é nada do que todo mundo espera que seja. Onde estão as badernas de refeitório? As tentativas de fuga em massa? Essas coisas todas que a gente vê na telinha prateada? Onde está aquela cena no pátio de exercício na qual o delator é apagado com um estilete enquanto uma dupla de pesos-pesados mal-encarados inventa uma briga qualquer para distrair as atenções? Quando é que as disputas entre as gangues vão começar? A verdade é que tudo aqui dentro é como lá fora, só que mais exacerbado ainda. Nós vivemos obcecados com o conforto físico. Aqui há sempre aquecimento demais; é como se estivéssemos numa chocadeira. Mesmo assim há gente se queixando de correntes de ar frio, de resfriamentos súbitos e de pés congelados durante a noite. A comida é importante também. Catamos os pedacinhos de coisas que vêm no nosso angu, cheirando e suspirando, como se fôssemos uma convenção de gourmets. Quando alguém recebe algum pacote, os cochichos se espalham como fogo em palha seca. Psss! Ela mandou uma lingüiça para ele! Feita em casa! É como se fosse um colégio interno, sem tirar nem pôr. A mesma mistura de mesquinharias e miséria, de tagarelice, de desejos amortecidos, de ruídos e, por toda parte, sempre, aquele bafio fedorento, cinza e morno de macho.

Dizem que era diferente quando os presos políticos estavam aqui. Eles marchavam, imponentes, pelos corredores, gritavam uns com os outros e eram uma boa fonte de gargalhadas para os criminosos comuns. Mas um belo dia decidiram todos fazer greve de fome ou algo assim e logo foram levados para uma cadeia só deles e assim a vida voltou ao normal.

Por que é que somos tão cordatos? Será que é porque colocam alguma coisa em nosso chá para aplacar a libido? Dizem que sim. Ou será por causa das drogas? Excelência, eu sei que ninguém, nem mesmo o promotor, gosta de ouvir um delator, mas julgo sei meu dever dar ciência a esta corte do ousado tráfico de substâncias proibidas que se processa nesta instituição. E há carcereiros envolvidos nisso. Posso informar seus números se me for assegurada a necessária proteção. Consegue-se qualquer coisa - pra ficar doidão, pra ficar tranqüilo, pra apagar, baseado, branquinha, crack, o que for. Vossa Excelência não deve estar familiarizado com essas expressões que a ralé usa. Eu mesmo aprendi várias delas ao chegar aqui. Como se pode supor, são principalmente os jovens que vão fundo nessas coisas. É fácil identificá-los ao caminharem sem firmeza pelas passarelas como se fossem sonâmbulos, com aquele sorrisinho estúpido nos lábios, típico de quem está pirado. Há alguns, porém, que não sorriem e que, pelo jeito, parece que nunca mais na vida vão sorrir. Esses já se perderam para sempre. Já não estão nem mais aí. Ficam imóveis, com o olhar perdido, sem qualquer expressão, ou melhor, com a expressão ausente de um animal ferido que nos ignora como se não existíssemos. Seu sofrimento se passa em um mundo que não é o nosso.

Mas não são só as drogas. Quem dera. Alguma coisa essencial é arrancada da gente. Alguma coisa de dentro de nós. já não somos mais homens na acepção plena da palavra. Fico olhando aqueles velhos internos, gente que foi capaz de fazer as coisas mais terríveis. Andam rebolando como velhas matronas, pálidas e flácidas, as ancas largas. Vivem em briguinhas ridículas por qualquer coisa. Por livros da biblioteca! Alguns até fazem tricô. Os jovens também vão se apegando a seus trabalhos manuais. Aproximam-se de mim na sala de recreação, com seus olhos lacrimejantes de bezerro, e exibem, tímidos, seu artesanato. Se eu tiver que apreciar mais um naviozinho dentro de uma garrafa, acho que perco a cabeça. Mas eles são tão tristes, tão vulneráveis, aqueles assassinos, aqueles estupradores e espancadores de criancinhas. Quando penso neles sempre me vem à mente uma imagem. Não sei por quê, mas sempre me lembro de um pedacinho de grama rala com uma árvore que posso entrever da minha janela quando forço a cara contra a grade e espio em diagonal por cima da fiação e do muro.

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