terça-feira, 5 de outubro de 2010

O FIO DA NAVALHA

William Somerset Maugham

razorsedge3

1º Capítulo

Nunca senti maior apreensão ao começar um romance. E se digo romance é por não saber de que outra maneira chamá-lo. Não tem grande enredo, não acaba com morte nem com casamento. A morte põe termo a todas as coisas e é, portanto, fim lógico para uma história; mas também o casamento é solução muito correta e os blasés fariam mal em escarnecer daquilo que comumente se diz que “acabou bem”. O instinto popular anda acertado ao afirmar que, com isto, tudo o que devia ser dito foi dito. Quando, depois de inúmeras vicissitudes, macho e fêmea finalmente se reúnem, sua função biológica foi cumprida e o interesse passa à geração vindoura. Mas estou deixando o meu leitor no escuro. Este livro consiste das recordações que tenho de um homem com quem, em épocas muito espaçadas, tive íntimo contato; mas pouco sei do que lhe aconteceu nos intervalos. Creio que, recorrendo à imaginação, eu poderia preencher plausivelmente as lacunas e tornar mais coerente a minha narrativa; mas a tal não me sinto atraído. Quero unicamente relatar fatos de que tenho conhecimento.

Há anos escrevi um romance intitulado Um gosto e seis vinténs. Nele destaquei um famoso pintor, Paul Gauguin, e, valendo-me do privilégio do romancista, imaginei vários incidentes, no intuito de ilustrar o tipo que eu criara inspirado nos escassos fatos que conhecia da vida do artista francês. Na obra atual nada tentei de semelhante. Não inventei coisa alguma. Para poupar constrangimento a pessoas que ainda vivem, dei aos personagens desta história nomes fictícios e procurei, por outros meios, evitar que sejam reconhecidos. O homem sobre quem escrevo não é célebre; talvez nunca chegue a sê-lo. É possível que, ao atingir o fim da vida, não deixe, de sua passagem pela terra, vestígio maior que aquele que a pedra, atirada ao rio, deixa na superfície das águas. Neste caso, se o meu livro for lido, sê-lo-á exclusivamente pelo interesse intrínseco que possa ter. Mas é possível que o gênero de vida que esse homem escolheu para si próprio e a singular força e doçura do seu caráter tenham uma influência sempre crescente sobre seus semelhantes, de modo que, mesmo muito tempo depois de sua morte, talvez se compreenda que nesta época viveu uma criatura extraordinária. Ficará, então, claro sobre quem escrevi neste livro, e aqueles que desejarem conhecer alguma coisa dos primeiros anos da existência desse homem talvez aqui encontrem algo que lhes satisfaça. Creio que o meu livro, dentro de suas possibilidades, que reconheço limitadas, será uma útil fonte de informações para os biógrafos do meu amigo.

Não é minha intenção fazer crer que as conversas foram registradas literalmente. Não tomei nota sobre o que foi dito nesta ou naquela ocasião, mas tenho boa memória quanto ao que me diz respeito e creio que, embora expressas em minhas próprias palavras, essas conversas representam fielmente o que foi dito. Há pouco declarei nada ter inventado; quero agora modificar essa asserção. Tomei a liberdade, que desde o tempo de Heródoto os historiadores têm tomado, de pôr nos lábios dos meus personagens palavras que eu, pessoalmente, não poderia ter ouvido. Agi pela mesma razão que os fez agir; para dar vida e verossimilhança a cenas que teriam sido incolores se apenas relatadas. Quero ser lido, e creio estar no meu direito quando faço o possível para tornar agradável a leitura do meu livro. O leitor inteligente facilmente perceberá em que ocasiões me vali deste artifício e tem toda a liberdade de rejeitá-lo.

Outro motivo que me fez iniciar esta obra com apreensão foi o fato de eu aqui lidar a maior parte do tempo com americanos. É difícil a gente compreender bem as criaturas e não creio que possamos conhecer ninguém a fundo, a não ser os nossos próprios compatriotas. Pois os homens não são somente eles; são também a região onde nasceram, a fazenda ou o apartamento da cidade onde aprenderam a andar, os brinquedos que brincaram quando crianças, as lendas que ouviram dos mais velhos, a comida de que se alimentaram, as escolas que freqüentaram, os esportes em que se exercitaram, os poetas que leram e o Deus em que acreditaram. Todas essas coisas fizeram deles o que são, e essas coisas ninguém pode conhecê-las somente por ouvir dizer, e sim se as tiver sentido. Só pode conhecê-las quem é parte delas. E, por não se poder conhecer as pessoas de um país estrangeiro a não ser por observação, é difícil torná-las reais nas páginas de um livro. Mesmo um observador sutil e cuidadoso como Henry James, embora tivesse vivido quarenta anos na Inglaterra, jamais conseguiu criar um inglês que fosse cem por cento inglês. Quanto a mim, a não ser em alguns contos, nunca tentei manejar a não ser os meus próprios compatriotas; e, se nas histórias curtas me aventurei à exceção, foi porque nelas o escritor pode tratar os tipos mais sumariamente. Dá ao leitor indicações gerais e deixa por conta dele os detalhes. Possivelmente perguntarão por que motivo, já que transformei Paul Gauguin em inglês, não pude fazer o mesmo com os personagens deste livro. A resposta é simples: não pude. Eles não teriam sido quem são. Não quero dizer que sejam americanos como os americanos vêem a si mesmos; são americanos, sob o ponto de vista inglês. Não tentei reproduzir as singularidades do seu modo de falar. A barafunda que fazem os escritores ingleses quando se atiram à empreitada só pode ser comparada à confusão que fazem os escritores americanos quando tentam reproduzir o idioma inglês como é falado na Inglaterra. A gíria é a grande arapuca. Nos seus contos ingleses, Henry James sempre fez uso dela, mas nunca da mesma maneira que os ingleses; assim sendo, em vez de conseguir o desejado efeito coloquial, a maior parte das vezes dá ao leitor inglês um desagradável sobressalto.

2

Aconteceu-me estar em Chicago em 1919, a caminho do Extremo Oriente, pretendendo, por motivos que nada têm com esta história, ali me demorar durante duas ou três semanas. Pouco tempo antes eu publicara um romance que obtivera sucesso; estando, portanto, em evidência, fui entrevistado assim que desembarquei. No dia seguinte meu telefone tocou. Atendi.

- Quem fala aqui é Elliott Templeton.

- Elliott? Pensei que você estivesse em Paris.

- Não; vim visitar minha irmã. Queremos que você venha almoçar conosco.

- Com muito prazer.

Ele indicou a hora e o endereço.

Meu conhecimento com Elliott datava de quinze anos. Na ocasião em que me telefonou ele devia estar perto dos sessenta anos, homem alto e elegante, de traços agradáveis e espessos cabelos escuros e ondulados, com a nota grisalha apenas suficiente para acentuar a distinção de sua aparência. Ele comprava os acessórios de toalete em Charvet, mas seus ternos, chapéus e sapatos eram de Londres. Tinha em Paris um apartamento na Rive Gauche da elegante Rue St. Guillaume. As pessoas que não o apreciavam diziam que ele era negociante, acusação que o indignava. Elliott tinha gosto e entendia de arte, não se importando de confessar que, em anos idos, quando pela primeira vez se instalara em Paris, dera a ricos colecionadores o favor de sua opinião; e, quando devido às suas relações sociais ouvia falar de algum fidalgo arruinado, inglês ou francês, que estava disposto a vender um bom quadro, ficava satisfeito de poder pô-lo em contato com os diretores de museus americanos que, acontecia ele saber, estavam à procura de uma obra-prima de tal ou tal mestre. Havia na França e na Inglaterra muitas famílias antigas cujas circunstâncias as obrigavam a dispor de uma peça assinada, de Buhl, ou de uma escrivaninha feita pelo próprio Chippendale, se o negócio pudesse ser feito sem alarde, e que gostavam de conhecer um homem de grande cultura e finas maneiras que saberia tratar discretamente do assunto. Supunha-se, naturalmente, que Elliott lucrava com essas transações, mas a boa educação não deixava que se tecessem comentários a respeito. Pessoas pouco generosas afirmavam que em seu apartamento tudo estava à venda e que, depois de ter oferecido a milionários americanos um ótimo almoço, com vinhos velhos, uma ou duas de suas valiosas telas desapareceriam, ou uma cômoda de madeira entalhada seria substituída por uma outra, laqueada. Quando lhe perguntavam por que razão sumira determinada peça, ele muito logicamente explicava que não a achara bem à sua altura e resolvera, portanto, substituí-la por outra de superior qualidade. Acrescentava que era enfadonho estar sempre a ver as mesmas coisas.

- Nous autres américains, nós, americanos, gostamos de variar – dizia ele. – É, ao mesmo tempo, a nossa fraqueza e a nossa força.

Algumas das senhoras americanas residentes em Paris, que se gabavam de saber tudo a respeito de Elliott, diziam que sua família era muito pobre e que, se ele conseguia manter-se no padrão em que vivia, era por ter sido muito hábil. Não sei a quanto montava a sua fortuna, mas o duque de quem era inquilino certamente o fazia pagar muito pelo apartamento que, além do mais, era mobiliado com peças de valor. Havia, nas paredes, desenhos dos grandes mestres franceses, Watteau, Fragonard, Claude Lorraine e outros; tapetes Savonnerie e Aubusson exibiam sua beleza em soalhos de parquete; e na sala de visitas havia um conjunto Luís XV, em petit point, de tal elegância que poderia ter pertencido, como afirmava ele, a madame Pompadour. Em todo caso, Elliott possuía bastante para viver no estilo que considerava correto para um cavalheiro, sem precisar para isso ganhar dinheiro, e o método que no passado usara para consegui-lo era assunto que, a não ser que se quisesse romper relações com ele, era conveniente evitar. Liberto assim de preocupações materiais, ele se dedicou à paixão máxima de sua vida – relações sociais. Suas transações comerciais com os fidalgos empobrecidos, tanto na França como na Inglaterra, consolidaram a posição que ele conseguira ao chegar à Europa, moço, com cartas de apresentação a pessoas importantes. Sua origem o favorecia aos olhos das titulares americanas a quem vinha recomendado, pois ele pertencia à antiga família da Virgínia, e do lado materno podia reclamar parentesco direto com um dos signatários da Declaração da Independência. Tinha boa aparência, era vivo, dançava bem, atirava regularmente e sobressaía no tênis. Era elemento que valia a pena ter-se em qualquer festa. Ninguém mais pródigo, em se tratando de flores e caixas de bombons. Embora recebesse pouco, quando o fazia era com originalidade que agradava; aquelas ricaças achavam divertido ser convidadas a restaurantes boêmios em Soho ou bistrôs no Quartier Latin. Ele estava sempre pronto a servir e não havia favor, por maçante que fosse, que se lhe pedisse, que ele não fizesse com prazer. Esforçava-se bastante por ser agradável a senhoras maduras e rapidamente se tornava o ami de la maison, o queridinho de muita mansão imponente. Era extrema a sua gentileza; nunca se ofendia por ser convidado à última hora, quando alguém deixava a dona da casa em apuros, e a gente podia colocá-lo ao lado de uma velhota enfadonha, tendo certeza de que seria espirituoso e amável como só ele sabia ser.

Dentro de dois anos, tanto em Londres – para onde ia durante a última parte da temporada, e no princípio do outono para fazer algumas visitas a casas de campo – como em Paris, onde se instalara definitivamente, Elliott conhecia todas as pessoas que era possível a um jovem americano conhecer. As senhoras que o tinham introduzido na sociedade surpreenderam-se ao verificar como se alargara o seu círculo de relações. Os sentimentos dessas senhoras eram confusos. Por um lado, ficaram satisfeitas com o sucesso do seu protégé e, por outro, um tanto despeitadas ao vê-lo em tais termos de intimidade com pessoas com quem elas continuavam a manter relações de absoluta cerimônia. Embora Elliott continuasse a ser obsequioso e serviçal, elas tinham a desagradável impressão de que ele as usara como escada para o seu avanço social. Desconfiavam que ele fosse esnobe. Claro que o era. Incrivelmente esnobe. Um esnobe sem a menor vergonha. Ele engoliria qualquer afronta, ignoraria qualquer desfeita, toleraria qualquer descortesia para ser convidado a uma festa a que desejasse ir ou para conseguir aproximar-se de alguma rabugenta duquesa-mãe. Neste particular era incansável. Quando fixava o olhar na presa, perseguia-a com a tenacidade do botânico que, para conseguir uma orquídea rara, desafia enchentes, terremotos, febres e nativos hostis. A guerra de 1914 deu-lhe a sua oportunidade decisiva. Logo no início, entrou para o Corpo de Saúde e serviu, primeiro em Flandres, depois em Argonne; voltou ao fim de um ano com uma fita vermelha na lapela e conseguiu um posto na Cruz Vermelha de Paris. Nessa época, já estava em ótima situação financeira e contribuiu generosamente para obras de caridade patrocinadas por pessoas importantes. Com seu fino gosto e dom de organização, estava sempre pronto a trabalhar para qualquer festa de caridade que fosse amplamente anunciada. Ficou sócio de dois dos mais seletos clubes de Paris. Era ce cher Elliott para as maiores damas da França. Finalmente vencera.

Vi no tigredefogo

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