terça-feira, 17 de novembro de 2009

Trecho inicial de "O Seminarista", novo livro de Rubem Fonseca. (Se o submarino.com cumprir com o que combinamos, sexta recebo o meu...)

Sou conhecido como o Especialista, contratado para
serviços específi cos. O Despachante diz quem é o freguês,
me dá as coordenadas e eu faço o serviço. Antes de entrar
no que interessa – Kirsten, Ziff , D.S., Sangue de Boi – eu
vou contar como foram alguns dos meus serviços.
O último foi na véspera do Natal. O Despachante deu-
-me um endereço e disse onde encontrar o freguês, que
estava dando uma festa para um monte de gente. Bastava
chegar com um embrulho de papel colorido que eu entrava
na casa. O Despachante era um cara magro e alto,
muito branco, louro, e estava sempre de terno preto, camisa
branca, gravata preta e óculos escuros. Ele me pagava
bem.
“O freguês está vestido de Papai Noel e tem uma berruga
no rosto ao lado direito do nariz.”
Sempre odiei, desde criança, esses papais-noéis fazendo
Ô! Ô! Ô! Sei que o ódio é um surto de insanidade, como
disse Horácio, Ira furor brevis est, mas ninguém está livre
dele. Vesti uma roupa alinhada, peguei uma caixa vazia e fi z
um enorme embrulho de presente. Coloquei sob a camisa
a minha Beretta com silenciador e toquei a campainha da
casa do freguês.
Para sorte minha quem abriu a porta foi o Papai Noel.
“Entra, entra”, ele disse, “feliz Natal!”
“Faz Ô! Ô! Ô! pra mim”, pedi, enquanto constatava a
berruga ao lado do nariz.
“Ô! Ô! Ô!”, ele fez. Dei um tiro na sua cabeça. Sempre
dou um tiro na cabeça. Com esses coletes novos à prova de
bala, aquela técnica de atirar no terceiro botão da camisa
para furar o coração pode não funcionar.
Ah, me lembrei de outro trabalho que fi z, não digo sentindo
prazer, mas com uma boa disposição. No princípio
senti certo escrúpulo, o sujeito era cheio de fi lhos, meninos
e meninas.
Nesse caso vigiei o freguês antes de fazer o serviço. Ele
chegava de carro e a porta automática da garagem demorava
para abrir. Dentro do meu carro, do outro lado da rua,
tinha oportunidade de observá-lo. Era um cara nem magro
nem gordo, bem-vestido. Devia gostar dos fi lhos, estava
sempre acompanhado de um deles. Foda-se, pensei,
vou fazer o meu serviço. Mas dentro de mim sentia certo
mal-estar, creio que estava começando a fi car frouxo, e para
um matador profi ssional a pior coisa do mundo é ter uma
consciência, não existem coisas erradas e coisas certas, é
tudo a mesma merda.
Eu nunca olhava as crianças com atenção, o que era um
erro, nós temos que ver tudo, o assassino profi ssional não
olha, , essa é a sua principal virtude: ver, videre acrius,
como dizia Cícero, ver bem. Eu, estupidamente, não via que
as crianças, meninos e meninas que variavam entre nove e
onze anos, nunca eram as mesmas. Algumas estavam malvestidas,
outras eram mulatas e certa ocasião o menino era
um chinesinho ou coisa parecida. O puto do freguês era um
pedófi lo. Nenhum era fi lho dele. Há quem diga que isso é
normal, que cerca de dez por cento dos homens são pedó-
fi los, e há quem diga que pedofi lia é uma doença. Não me
interessa, seja lá o que for não gosto de pedófi los.
Entrar na garagem do freguês não foi difícil. Embiquei
o meu carro atrás do dele assim que a porta da garagem
abriu e entrei grudado no seu carro. Quando paramos os
carros ele disse que o que eu fi zera era proibido, devia entrar
um carro de cada vez. Respondi que ele tinha razão,
que eu era novo no prédio. Ele estava acompanhado de um
menino que não tinha mais de nove anos.
Saltei no mesmo andar que ele, o corredor estava vazio
e eu enfi ei com força o cano da pistola nas costelas do puto.
“Abre a porta do seu apartamento”, eu disse.
Entramos.
“Você quer dinheiro, não quer?”
“Quero”, respondi.
Fomos até um cofre, que ele abriu. Havia um montão
de dinheiro lá.
“Põe num saco”, eu disse.
Ele botou a grana dentro da saca de uma loja grã-fi na.
Eu disse para o garotinho, “me espera lá na sala”.
Ficamos eu e o freguês em frente ao cofre aberto. Sem
pressa, atarraxei o silenciador no cano da pistola.
“Eu lhe dei toda a grana que tinha”, ele disse.
“Foda-se”, respondi, dando um tiro na cabeça dele.
O garotinho me esperava na sala. “Vamos embora”, eu
disse.
Na garagem, peguei no carro do freguês o controle remoto
da porta da garagem, entrei no meu carro com o menino
e saímos. Perguntei ao moleque onde era a casa dele.
Era um barraco na favela.
Assim que entramos, uma mulher gorda que devia ter
trinta anos, mas parecia ter cinquenta, agarrou o garoto pelas
orelhas.
“Onde você se meteu, hein?”
“O moço me levou para comer doces na casa dele”, o
menino respondeu.
“Não posso sair que esse moleque fi ca vadiando”, suspirou
a gorda.
“Onde foi que a senhora se meteu e largou o menino
sozinho?”, perguntei cutucando o peito da mulher com o
cano da pistola.
“Eu tenho que trabalhar para comprar comida para esse
moleque e os dois irmãos pequenos dele, o meu marido se
mandou”, ela respondeu com os olhos arregalados, a voz
trêmula.
“Então agora vai parar de trabalhar”, eu disse colocando
a saca cheia de dinheiro na mão dela.
“Abre uma poupança e fi ca em casa cuidando dos seus
fi lhos, ouviu?”
Apertei o cano da pistola no rosto dela, para deixar uma
marca. Ela gemeu.
“Vou voltar aqui. Se você não tomar conta direito dos
seus fi lhos eu te arrebento, entendeu? E se for viver com
um gigolô que vai roubar a sua grana eu mato vocês dois.”
Claro que nunca mais voltei lá. Aquela favela estava repleta
de mulheres infelizes, cheias de fi lhos, abandonadas
pelos maridos. Foda-se.

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