de José Marcelo
“Que galinha feia”, disse ela. “É de verdade?”
“É um galo. E sim, é de verdade.”
“Não parece”, ela ajeita o cabelo com um gesto distraído. “Parece de plástico.”
“Não, é real. Um galo real. Um galo de briga real.”
“De briga? Como um boxeador?”, pergunta ela.
“Mais como um gladiador. Quem perde acaba morto.”
“Ah. Parece cruel.”
“E é.”
“Como?”
“É cruel.”
“Por que você faz isso então?”
“Sou um homem cruel.”
“Sempre te achei estranho, mas não mal.” Ela parece incomodada. Provavelmente passaram por sua cabeça as imagens de penas ensanguentadas e gargantas cacarejando sangue e bicos em feridas expostas e homens uivando e gritando de prazer em círculo ao redor da carnificina. “Não cruel.”
Ela desaparece no banheiro e eu fico me olhando no espelho: o terno branco, respingado de sangue, o taco de golfe velho e as luvas peludas e a cara amarrada. Eu não pareço assustador. Talvez bizarro, mas não assustador. Pareço um ator em um filme antigo, a película gasta e amarelada.
Solto o galo e ele salta do sofá e fica andando pela sala e defecando e abrindo e fechando as azas.
Ela volta usando um vestido branco e curto e sorri. Ela é linda, não há discussão quanto a isso. Não é esperta ou algo assim, mas é linda.
“Onde vai me levar?”, ela pergunta.
“Aonde quer ir?”
“Ao cinema”, ela responde, sentando-se no meu colo.
“Ver qual filme?”
“Um bem artístico, desses quase chatos, meio hermético, bem longo”, ela diz, entusiasmada.
“Tudo bem. Só preciso fazer uma coisa antes.”
Saímos. Ela dirige. É uma noite calma. Quase não há transito. Quase não há pessoas nas ruas. Uma camada de poluição oculta as estrelas e a lua. Eu indico o caminho.
“É aqui. Eu não demoro.”
Eu pego o galo e desço do carro. A placa diz AÇOUGUE SÃO FRANCISCO, e eu entro por uma porta de metal que range como uma alma desmorta ao ser empurrada. Atrás da porta há um corredor estreito, onde o odor de animais mortos me atinge como uma cusparada. E no fim do corredor, há um velho sentado em uma cadeira. Um velho de óculos escuros como os de um cego. Ele me olha e sorri. Enfia a mão no bolso e tira um punhado de dinheiro. Enquanto ele conta as notas, eu olho ao redor: carcaças, sangue, lâminas de vários tamanhos.
“Aqui está.” O velho me entrega algum dinheiro e olha para o galo. “Eu pago um bom preço por ele.”
“Não está a venda.”
“Por que não? Ouvi dizer que você vai se aposentar, certo? Não vai mais precisar do galo. Então?”
“Não está a venda. Ele também vai se aposentar.”
“É o que ele quer? É um verdadeiro guerreiro, esse aí. Nunca vai se acostumar a uma vida tranquila. Nunca. Nem ele, nem você.”
“E quanto a você, velho?”
“Eu?”
“É. Você.”
“O que tem eu?”
“Ouvi algumas coisas.”
“Que coisas?” O velho tira os óculos escuros, desconfiado. “Que coisas?”
“Bom”, eu dou de ombros. Solto o galo e puxo a faca. É tudo tão rápido que o velho sequer tem tempo de se mover. A faca entra em sua garganta e eu a torço de modo a aumentar o corte e estraçalhar os músculos e as veias do pescoço. Ele cai um instante depois, já morto. Eu deixo a faca em sua garganta e ele fica lá, no chão, espalhando sangue ao redor. Tiro meu paletó e minha camisa, limpo meu rosto e pego o galo que ficara ali parado, olhando a cena, meio hipnotizado, meio apreciando. Talvez fosse verdade e ele não suportasse se aposentar.
Volto para o carro e ela me pergunta, “Cadê sua camisa?” e eu respondo que minha camisa se sujara e eu resolvera tirá-la. Deixo o galo se acomodar no banco de trás.
“Eles não vão te deixar entrar no cinema sem camisa”, ela diz.
“Tudo bem.”
Eu me viro e a beijo. Ela passa a mão em meu peito. “Todas essas cicatrizes. Você nunca me contou…”
“Não é nada demais. Esqueça. Me empresta teu celular.” Disco um número. “Tá feito”, falo e desligo.
“Era só isso que você tinha para dizer? Você é engraçado.”
“Vamos a outro lugar, antes do cinema.”
Agora, paramos diante de uma casa velha em uma parte velha da cidade. Dessa vez, ela vem comigo. Eu bato na porta e uma mulher usando apenas uma camisola que não esconde seus peitos caídos abre a porta. Sonolenta. Cabelos desarrumados. Eu entrego o galo para ela. Não dizemos nada. Ela assente com a cabeça. E fecha a porta.
Agora, no carro, indo para o cinema. “Quem era aquela?”
“Ela vai cuidar do galo. Ele vai envelhecer tranquilamente e morrer de velhice. Vai ser bem cuidado”, eu falo. “Ele merece.”
“E você?”
Eu sorrio. Olho para minhas mãos, ainda com luvas peludas e que se sujaram de sangue. “Eu não me acostumaria.”
“E agora?” ela pergunta. “Vamos ao cinema?”
“Para quê? Vamos fazer nosso próprio filme.”
“Que filme?”
“Vamos viver o pouco que nos resta.”
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